Como escrever ao galope

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Há vezes que damos em ler vários livros a um tempo. Há vezes em que um se coloca numa tempa, anjinho bom, outro noutra, anjinho mão, e damos em cruzar ideias e sensações das páginas de um às páginas do outro. Há vezes em que esses cruzamentos são gozosos e iluminadores. 

Aconteceu-me neste mês passado. Andei no bolso com um ensaio de Joanna Russ, Cómo acabar con la escritura de las mujeres, para ler nos tempos mortos da vida: o café sem jornal livre, a espera no centro de saúde, a quenda do embutido no super. Outro pousava na mesa de noite, para o desvelo noturno ou o despertar madrugueiro: o Vivir ao galope de María Xosé Queizán.

Como acabar con la escritura… é um ensaio de… 1983! no qual Joanna Russ faz uma reflexão sobre as estratégias que o(s) sistema(s) literário(s) utiliza(m) para obstaculizar o trabalho das autorAs. 

Como em muitos outros aspetos da vida, as proibições explícitas (mulher, não escrevas!) deixaram de ser funcionais e mesmo necessárias. Funcional é o controlo, a colocação de obstáculos, muitas vezes invisíveis, que façam desistir a autora de continuar com esse labor ou tão sequer iniciá-lo. É claro que para as mulheres sempre funcionou a falta de acesso a estudos e a tempo (já o dizia Virginia Woolf, ai o quarto próprio, ai, as três guinés!). Mas como afirma Joana Russ, mesmo assim, escrevem. Que fazer, então? 

Ao longo dos capítulos vai debulhando todas as estratégias de controlo e restrições que fomentam o abandono da escrita ou da mesma ideia de pretender escrever: a primeira, uma mulher-mulher, uma mulher de verdade, não precisa escrever, precisa casar, precisa ser mãe, precisa ajudar a manter a família, mas escrever, escrever, não. Aquela que o faz é porque não é normal. Excéntrica!

E mesmo assim há mulheres que escrevem, mas não. Porque não escreveram elas, escreveram os seus homens, os seus pais, os seus irmãos. O vizinho do quarto, se faz falta. Mas esses textos não podem ser dela. 

E mesmo assim há mulheres que escrevem, mas não, porque olha que parvadas conta, para escrever sobre essas trivialidades melhor ficar calada. Só fala de experiências limitadas, porque nunca casou, casou mui nova, não foi mãe, só atendeu crianças, nunca saiu da casa, saiu demasiado, puta. 

Bom, admitimos, escreve, mas é porque em realidade leva um homem dentro, viriloide ela. Ou repara, só fez essa obra, foi uma casualidade, macaco que tecleia o Quixote sem dar por isso. Ai, vergonhento, escreveu, mas olha que porcalhada, como pode ser que escreva essas coisas, sempre ideologizando e a meter-nos o seu feminismo polos olhos. Ademais, que faz?, literatura infantil, ciência ficção, ou dessas de amores, isso não é nem arte nem farrapos de gaitas. 

Bom, admitimos, escreve, mas é impossível que ela pudesse fazer semelhante redondeza sozinha, ajudou-na o editor, o pai, o irmão, mesmo o sogro. Ou, vale, admitimos, escreve, mesmo escreve bem, mas olha que pendanga. 

Joanna Russ vai acompanhando todas estas estratégias que explica com exemplos concretos e reais e autênticos: entrevistas com autoras, revisão de resenhas literárias, ensaios, histórias da literatura. A dificuldade, para mim, como leitora, foi o feito de muitos desses exemplos ser-me afastados e desconhecidos, pois ela analisou a situação na literatura ocidental em língua inglesa. Ouh sim, a Woolf, as Bronte, a Shelley, a Dickinson, a Plath, a Sexton, são-me familiares, mas muitas outras autoras não, nem sequer a própria Joanna Russ, reconhecida escritora de ficção científica. Por isso, na leitura eu ia trazendo as estratégias para o meu campo e escolhendo exemplos nos sistemas literários galego e espanhol que confirmassem a teoria de Russ, recordemos, de 1983. María Mariño, ligada sempre a Uxío Novoneira, Rosalía de Castro, reclassificada e despolitizada, María Reimóndez, autora ideológica, Gloria Sánchez, que faz simples literatura infantil. 

E chegou, a galopar, María Xosé Queizán. 

Porque nesse jogo de procurar exemplos, as memórias de María Xosé Queizán (e a sua receção crítica) oferecem citas de autoridade quase para cada um dos capítulos de Cómo acabar con la escritura de las mujeres

María Xosé Queizán decide contar-nos aquilo que considera importante e necessário na sua vida em mais de 800 páginas. Afirmar que não escreve é inútil. Escreveu, e muito. 

María Xosé Queizán decide contar-nos aquilo que considera importante e necessário na sua vida em mais de 800 páginas. Afirmar que não escreve é inútil. Escreveu, e muito. 

Mas, deveria? Parece que não, porque escreve coisas que só a ela mesma interessam1. Fala de pessoas que já estão mortas, e não devera. Conta intimidades que não deveriam ser contadas, que tanto tem que acedesse a pílula anti-conceptiva ou que fosse objeto de um poema de escárnio ou que deixasse as crianças com a avó para estudar em Santiago? Afirma Joanna Russ que o que antes era considerado imoral, indecente, foi substituído pola ideia de confessional. Silvia Plath não é poeta de verdade, porque aquilo que escreve são intimidades que a ninguém interessam. 

Mas a nosoutras interessa-nos: interessa-nos porque outra estratégia do sistema para que não escrevamos é a de deixar-nos sem referentes, sem modelos a seguir. Que María Xosé Queizán narre a sua trajetória, com as dificuldades e obstáculos e sucessos e acertos e erros serve-nos de guia e estímulo às que hoje andamos na escrita. 

A sua origem é importante. É contextualizadora. Não. Não vás ser a mesma nascendo em Vigo, numa família bem vinda a menos, que nascendo em Santiago filha de solteira. E a autora leva-nos da mão por esse Vigo industrial e trabalhador da posguerra no que aprendeu a mover-se em liberdade e traz a nós o tato do ferro para o fazer nosso. Não vás ser a mesma acedendo a uma biblioteca republicana que educando-te entre as estantes de uma sacristia. E sabemos das suas primeiras leituras e da sua educação literária. Não marca isso o seu futuro de escritora? Não vás ser a mesma entrando na adolescência como num cárcere que passando a adolescência num cárcere. 

Mas se algum feito marca a trajetória literária, sim, a literária, de María Xosé Queizán, este vai ser o do seu emparelhamento com X. L. Méndez Ferrín. Lembremos que uma das estratégias anuladoras do sistema é colocar-nos, sempre que pode, à sombra de um homem. E María Xosé Queizán deixou de ser Queizán para virar esposa de Méndez Ferrín. Escreve ela as cousas que escreve, ou escreve-lhas ele? São próprias as ideias ou são dele? Insisto. Não é anedótico. Faz parte das operações invisibilizadoras, e por isso deve de ser narrado. 

Mas de súbito devém em ex-esposa, é se há algo pior que a sombra é pretender tronçá-la. E na narrativa encontramos a pendaga. A que merece ser vítima de folhetos insultantes, a moça que já não tinha virgo. A que é feminista de mais para cuidar as crianças. A que já não é resenhada porque fez o que fez. Que necessidade de contar estas misérias? Pois por isso mesmo, porque esse é o tratamento que recebem as mulheres que não cumprem o rol social, e por exemplo, escrevem. Uma pendanga que ademais desfaz um matrimónio e decide fazer a sua vida pola sua conta. Nessa vileza não há lugar para o perdão. 

Que necessidade de contar estas misérias? Pois por isso mesmo, porque esse é o tratamento que recebem as mulheres que não cumprem o rol social, e por exemplo, escrevem. Uma pendanga que ademais desfaz um matrimónio e decide fazer a sua vida pola sua conta.

Diz-nos Joanna Russ que outra das estratégias invisibilizadoras das violências sistémicas é reduzir estas a assuntos de inimizades pessoais, a casualidades ou a qualquer outra questão concreta do aqui e o agora. Que um escritor declare num juízo2 que o amor, nos poetOs, não é estável mas apaixonado e circunstancial e que por essa razão não deve ser acreditadas as suas promessas de compromisso, para apoiar a demanda de nulidade matrimonial de um amigo poeta contra uma poeta, também, não é só anedótico, privado, circunstancial. É mostra de como funciona o sistema, com a sua carga de valores patriarcais e as alianças masculinas em quanto alguma dessas masculinidades é questionada. E bem o aclara Joanna Russ: a única maneira de combater estas técnicas “moralmente atrozes e terrivelmente estúpidas”3 é contá-las. 

María Xosé Queizán é feminista de longa data. Carrega ao lombo experiências e leituras. E tem mui claro que o privado é político e que a única maneira de vencer as estratégias de controlo social é explicitando-as. Desbotar a narrativa de feitos por ser de carácter privado, cousas de casal, etc. é participar no ocultamento da maioria das violências que sofremos as mulheres. A autora nega-se a fazê-lo. Mesmo que essa exposição pública tenha custo pessoal. 

Na trajetória literária e vital de María Xosé Queizán damos com outro elemento que trata Joanna Russ no seu ensaio. O seu carácter anómalo. Aparece ela em muitas atividades como única mulher entre homens. A crica testemunhal no meio do nabal, que dizemos as segadoras. O processo de restrições imposto faz que o sistema (Russ analisa histórias literárias de diferentes épocas) admita entre um 5 e um 8% de mulheres. Nunca mais4. Tanto têm os avanços em educação, em direitos ou em redes. Nunca mais de um 8%. Isto coloca sempre às mulheres na marginalidade. Na diferença. Na outredade. E assim se nos presenta María Xosé Queizán na participação partidária, na literária5. E obrigada a ser a primeira em tantas cousas. Porque não houve romancistAs antes ( e se as houve, foram menores), porque não houve ensaístAs antes (e se as houve eram menores), porque não houve dramaturgAs antes (e se as houve, foram menores) cumpre o repto de ser pioneira quando não devera. Carrega com a responsabilidade e cumpre-a. E conta-o. 

E no contar racha com outro tópico categorizador das escitoras: a humildade. Faz-se estranho ler a uma autorA afirmar-se com um EU, em várias ocasiões continuado com um FUI A PRIMEIRA. Soberba. Altiva. Porque as autoras podemos escrever, excéntricas, mesmo podemos perseverar, mesmo podemos escrever mui bem, mas sempre pedindo desculpa e sabendo que a nossa presença não deixa de ser uma concessão, um permissão. E devemos ao sistema a modéstia. 

Um elemento biográfico do que gostamos é da narrativa de danças, festas e viagens. Outra vez o privado desnecessário a ocupar espaço narrativo! Porém, outra vez está a autora a colocar-lhe armadilhas às estratégias anuladoras do sistema. Porque este (e outra vez o explica às maravilhas Joanna Russ) classifica as anómalas autoras em categorias limitadas: a Esposa de, a Dama Aborrecida, a Solteira Infeliz, e, como sempre, a Puta. A María Xosé Queizán, ex-esposa, autora silenciada, corresponderia-lhe comportar-se, e escrever, por enquanto, como uma solteira infeliz e frustrada, que mesmo poderia evoluir a Dama Louca (Anne Sexton, Silvia Plath). E ela apresenta-se perante nós como mulher feliz e divertida, com vida social e amizades. Com vínculos afetivos e família extensa. Porque se o sistema quis colocá-la na margem, ela mostra, em vida e feitos e obra, que o centro não existe.

Há vezes que damos em ler vários livros a um tempo. Há vezes em que um se coloca numa tempa, anjinho bom, outro noutra, anjinho mau, e damos em cruzar ideias e sensações das páginas de um às páginas do outro. Há vezes em que esses cruzamentos são gozosos e iluminadores. E não sabemos qual o anjinho bom, qual o mau, se os dous por junto e misturados.

Vivir a galope, de María Xosé Queizán oferece citas de autoridade quase para cada um dos capítulos de Cómo acabar con la escritura de las mujeres. E mesmo assim, escreve(mos).

Essa é a vitória.

María Xosé Queizán: Vivir a galope. Xerais 2018.

Joanna Russ: Cómo acabar con la escritura de las mujeres.

(trad. por Gloria Fortún) Barret/Dos Bigotes 2018.

1 https://www.galiciae.com/blog/jaureguizar-cabaret-voltaire/blanco-amor-vestido-manchas-humidas/20181126170235047171.html

2Vivir ao galope, pág 435.

3Cómo acabar con la escritura de las mujeres, pág. 56.

4Seria interessante fazer um estudo do estilo no sistema literário galego.

5 Só não é assim no feminismo, é claro.

[Este artigo foi publicado originariamente na Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins