Senhoras que leem siborgs por Susana S. Arins

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Lapislázuli. O regreso das superguerreiras camiña entre os eidos do new weird de China Miéville, da fantasía épica de Robert E. Howard, Emily Rodda ou Andrezj Sapkowski, e sobre todo do sentai de Akira Toriyama e do mahōshōjo de Naoko Takeuchi”, explica a editora na contracapa da obra. E a leitora fica pampa perante a ignorância que reflete esse espelho de palavras. Desconheço absolutamente todos os referentes que guiaram o trabalho da autora. E como sou senhora de verdade e quase não atendo a podcats, pois nunca escuitei o Baleiro Perfecto, onde Alba Rozas (e outras) nos introduzem nestes mundos. 

E foi assim, a cegas, levada só pola força e capacidade narrativa da autora, que entrei no romance. Percebim, parva de todo não sou, que está artelhado como as telas dos vídeo-jogos, mas como só joguei Donkey Kong em toda a minha vida, não sei até que ponto se pretendeu transliterar os jogos de batalhas e luitas, que é o que protagoniza esta obra. Percebo também que a narrativa progride como nesses ecrãs em que damos com muitas portas e temos que escolher qual abrir, aguardando que seja talismã e não demo o que aguarde na outra banda. 

Lapislázuli. O regreso das superguerreiras coloca-nos numa Galiza distópica tomada por uma praga de moscas-robós. Para defender-se delas, a gente do comum depositou a sua confiança em uma caste de feiticeiras, que com os seu conjuros estendem capas de proteção das vilas. A situação permanece inalterável desde há quase cem anos. Porém, umas aprendizas de feiticeiras viram superguerreiras ao se converter em depositárias de candasua pedra mágica e demostram que podem acabar com as moscas. Viram também um perigo para o statu quo: se vencem as moscas a cacicada perderá também o seu poder, baseado só na capacidade de defesa da povoação civil.

O título da obra coloca-nos no meio da trama, ou no terceiro livro da suposta trilogia: uma para a origem, outra para a primeira batalha e perdida e esta para o feche. Lembro que comprovei no web que não havia romances prévios. Para mim é este um dos acertos da autora, lá onde mostra a sua destreza construtiva: são esses três os momentos da história que vamos conhecendo em paralelo tirando de flashbacks, narrados cada um deles por diferentes personagens, o que outorga ao texto diversidade de vozes. Viajamos de 2010 a 2021 levadas polos elefantes pretos (adoramo-los) ou as lembranças da cacica de Lalim. Viajamos também por toda a geografia galega, pois as batalhas entre superheróis e robôs precisam de muito céu e muita terra. 

O caso é que a senhora que nunca jogou vídeo-jogos, que não lê new weird, pouco manga e menos ainda visiona anime, enredou na leitura e continuou a ler, rindo com a sua superhoine preferide, Coralia, flipando com esse apiário corroído em que se converteu Compostela, querendo saber do ranger e a sua natureza cíborg, e admirando a capacidade da autora de integrar mitos e lendas da cultura popular galega com a cultura pulp chegada de fora, e com a história do país, que incorpora com naturalidade e sem maneiras enciclopédicas à trama. Ao tempo, divertiu-se com a funda retranca que lateja por toda a obra: a universidade como ninho de vilões, a aventura do saber transformada em um campo de minas, superheroínas que têm que fazer paradinhas para mijar ou para papar uma empada, os gêmeos Zalo Torrente e Gonza Ballester como irmãos espúrios, o castigo às dissidentes e as torturas, o desprezo à diversidade e as feiticeires… 

Como tantas narrativas distópicas, a obra traz consigo a reflexão ética: até onde podemos levar a ciência? Quais os limites no controlo da humanidade? Vale todo para ganhar? Compensa uma morte uma vitória? Pode um cíborg ter humanidade?

E sobre todo isso: a arte de narrar. Porque Lapislázuli. O regreso das superguerreiras conta com um estilo tremendamente cuidado, em que cada palavra está escolhida para quadrar com as outras, onde os diálogos fluem, onde as descrições nos trazem a realidade fantasiada à cabeça, onde as vozes das personagens têm e deixam marca. 

E a senhora que lê chega ao final do livro, consulta os códigos qr com as músicas que nem conhece, fecha o volume e pensa: Bem interessante o mundo este dos new weird, sentaimahō shōjo.

Alba Rozas: Lapislázuli. O regreso das superguerreiras
Boadicea Editora 2024

[Este texto foi publicado originariamente na Plataforma de Crítica Literária A Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins