Lera de Cristina Rivera Garza Había mucha neblina o humo o no sé qué (2016), que me pareceu uma obra brilhante: a autora combina pesquisa, viagem e fabulação para seguir os passos no mundo de Juan Rulfo. Uma biografia que não é biografia, uma leitura crítica da obra que não é leitura crítica da obra, uma road movie que não é road movie. O livro aparece classificado na secção de ensaio, mas é outra cousa: é poesia, é fábula, é submersão profunda em um clássico, é reflexão ética, é literatura.
Quando soube que ganhara o Prémio Pulitzer com uma obra sobre a violência de género não hesitei em mercar e ler. E se o anterior livro (lido) me parecera brilhante, para El invencible verano de Liliana não tenho palavras.
O livro levou o prémio na secção de memórias/autobiografias, porém não é autobiografia, porém, não é um livro de memórias. É pesquisa, é road movie, é leitura crítica, é reflexão ética, é literatura, é submersão profunda na vida de Liliana Rivera Garza.
A autora, uma das narradoras da história, volta a México DF e inicia uma peregrinação polos gabinetes jurídicos da cidade à procura do expediente do assassinato da sua irmã, acontecido trinta anos antes, em 1990. Liliana Rivera, estudante de arquitetura, foi assassinada pola sua (ex?)parelha, Ángel González Ramos, quem fugiu da justiça e nunca foi detido nem julgado. Ao tempo, a autora, revisa cadernos e pertenças da irmã, guardados em caixas durante trinta anos, e faz também por localizar amizades e familiares que lhe podam contar qualquer cousa, um algo, um quê.
Ao se tratar de um crime sem resolver, podemos pensar que a pesquisa de Rivera Garza procura responder perguntas e questões sobre o mesmo, uma cronologia, uma causa final, uns antecedentes, mas não é isso (melhor, não é só isso) o que encontramos nesta obra. Aquilo que procura a autora é apresentar-nos o âmago de uma moça com vontades de viver, de fazer, de crescer, de ser além da relação que tem com um moço da sua vila. Esta é uma das escolhas autoriais que cintilam neste livro: a decisão da autora de não usa as vímbias da vitimização para construir a biografia da sua irmã: a Liliana que nos apresenta é uma pessoa vivaz, ativa e com futuro.
Para isso utiliza a técnica do escalpelo: descreve minuciosamente os materiais que conserva da irmã, sejam aqueles óculos que encontrou em um mercado, seja o póster da Marilyn Monroe, seja o conteúdo da lacena do seu pequeno andar em México DF. Dessa descrição microscópica nascem as memórias, a anedotas, as pequenas estórias.
Acompanha esta técnica a diversidade de vozes. A autora oferece espaço para contar às pessoas que conheceram Liliana, muitas delas alheias ao seu próprio mundo, pois fizeram parte do daquele da irmã que nunca partilharam. Uma das vozes principais que podemos ler é a da própria Liliana. Liliana Rivera tinha o feliz costume de escrever, de escrever muito, de escrever mui bem, mesmo melhor que a ganhadora do Pulitzer:
La letra de Liliana siempre fue muy bonita.
Sobre hojas arrancadas de cuadernos escolares, usualmente Scribe forma francesa de cuadro chico, Liliana pasó horas escribiendo y reescribiendo cartas que a veces mandaba y a veces no. Escribió notas para sí misma, con frecuencia en tercera persona, en las que sostenía diálogos señeros con un yo que era, a la vez, un otro. Escribió a lápiz y con la punta de colores de los bolígrafos, y en ciertas ocasiones en la tinta café, casi guinda, de una pluma fuente. Escribió a máquina también, en hojas de papel revolución que provenían de las oficinas de la UAEM -donde para entonces trabajaba nuestra madre- o en hojas tamaño carta originalmente destinadas a pasar en limpio algún trabajo escolar pero que, por algún error o dedazo, iban a terminar en el bote de la basura. Escribió en la emoción del momento, con un arrojo lingüístico que no evadía el chiste o la derivación. Y también en ratos tranquilos en que el cansancio o el aburrimiento la llevaban a elaborar listas de nombres de amigos o cosas por hacer. Escribió cotidianamente y en instantes de celebración. Escribía en sucio y pasaba a limpio. Revisaba una y otra vez. Repetía una nota o una carta, con cambios a menudo mínimos, hasta que su redacción estaba a su gusto y entonces, sólo entonces, la dejaba ir, no sin conservar las copias en su archivo personal. Su relación con esos textos era de expresión – más de una vez hizo hincapié en la necesidad que tenía de aliviarse a sí misma con este ejercicio -, pero también de producción: lo que escribía, incluso lo que estaba destinado únicamente a sus ojos, respondía a criterios de forma y de fondo que en mucho excedían la mera tarea de la confesión individual y que, sin embargo, ponían en jaque nociones convencionales de lo literario. Transcribía también, y con mucha frecuencia. Poemas. Citas de libros. Párrafos enteros. Liliana era, con mucho, la verdadera escritora de la familia1.
É ao apresentar uma moça sensível, sociável, inteligente, que chegam as perguntas: como pôde acontecer, como ninguém viu, como não soubemos, como não saltaram as alarmas. Rivera Garza lê cartas e cadernos à procura da pista, da petição de auxílio, do sinal de socorro. Nada disso há. Nada. E parte daí a outra decisão autorial que fulgura na obra: as reflexões da autora sobre o desconhecimento absoluto que da violência de género, as suas marcas e as suas características se tinha na década de noventa. Relegada aos crimes de paixão, crescidas na cultura do amor romântico e ciumento, não saltaram alarmas porque não foi percebido perigo algum. Por haver, nem palavras havia. El término feminicidio no existía en 19902. Perante a ausência de terminologia, a realidade resulta muito mais difícil de analisar, quantificar, sopesar. Perceber. A autora renuncia, quase sempre, a se fazer as perguntas revitimizadoras que tantas vezes nos fazemos quando sabemos de uma relação sentimental tóxica: e por que não o deixou? E por que não disse nada? E por que não pediu ajuda? Em vez disso, e ajudada tanto polos escritos da protagonista, que muitas vezes transcreve, como polos testemunhos de amizades e família, vai debulhando para nós o quotidiano de uma adolescente feliz e nadadora, depois sobresaliente estudante de arquitetura, que faz do seu apartamento lugar de encontro para companheiros e companheiras de estudos, que constrói intimidades ao tempo que desenha maquetas, que goza na viagem e na música, que vai ao cinema e conhece a vizinhança. Quando as perguntas assaltam, quando as perguntas invadem o espaço até abafar, encontra respostas alternativas que nos ajudam a construir outra olhada sobre as violências. Porque Liliana, como tantas vítimas que antes e depois foram, tomou decisões para evitar o final homicida. Decidiu continuar estudos longe da parelha, mudou-se de vila, procurou novas amizades, iniciou novas relações sentimentais, manteve as ligações com a família. Em nenhum momento aceitou o statu quo. Hasta el último momento, mi hermana pensó que podía ganar. Hasta el último momento, Liliana pensó que se podía enfrentar sola al patriarcado y que podía ganarle3.
Las voces viriles de Javier Solís y de José Alfredo Jiménez han acompañado las rupturas amorosas en México décadas enteras. Son canciones cursis, dolidas, teatrales hasta la ignonimia. Más que despecho, estas canciones refrendan un amor que se sabe no correspondido pero que, aún así, o tal vez por eso, no termina. El amante humillado, dejado atrás, se regodea en su dolor, y jura no dejar de amar a la mujer querida. Esas son las canciones que Liliana escuchaba un 24 de mayo, entre lágrimas.
El sábado 26 de mayo, Liliana anotó en el margen superior de una hoja suelta color mamey, con una letra inusualmente pequeña, algo que había sucedido un día después de su sesión de canciones románticas de José Alfredo Jiménez y Javier Solís:
Ayer sucedió. Y hoy parece haber desaparecido. La euforia pasó. No hay desencanto, todavía soy feliz. Todavía. Ahí estás, a pesar de todo… Te encontré. Tú eres el conocimiento, tú eres, ¿eres?, el amor y la pasión y el deseo de conocimiento. Tú eres. Tú, Liliana.
El cambio era mayor ahora. No apostaba por alguien más después de otra ruptura, sino por ella misma. Ella y el conocimiento. Ella y su futuro. Tal vez, ese mayo, Liliana estaba lista para partir. Tal vez, ese mayo, Ángel se dio cuenta de que, ahora sí, la intención era firme. Tal vez ese mayo supo que ya no podía controlarla más, y que la había perdido4.
Se essas decisões não foram suficientes foi porque falhou o sistema, institucional, social, político.
Há outro fio essencial que faz deste um livro resplandecente. Porque há uma ligação emocional evidente entre autora e protagonista: são irmãs. Cristina Rivera Garza é a irmã mais velha que não estava em México quando o assassinato, é a moça que perdeu a irmã como nunca pensou que aconteceria. A sobrevivente. A que não fez (ou sim?) nada. A que não viu os sinais. A que não pôde salvar Liliana.
Vão por junto luito e culpa neste livro.
Durante muchos años no supe qué responder a la pregunta ¿cuántos hermanos tienes? La mera posibilidad de escucharla me ponía a temblar. Y la contestación, cuando me decidía a darla, no era más que un galimatías en crescendo: había tenido una hermana, pero ya no la tenía; no la tenía ya, pero tendría para siempre una hermana; tuve una hermana; tendría una hermana5.
A conjugação verbal como marca de angústia. Porque com a explicação vêm as dúvidas: por que a deixaram viver sozinha em Ciudad de México? Por que consentiram que tivera esse moço? Por que não leu bem as cartas para dar com o medo? Por que não a obrigavam voltar a casa os fins de semana? Tanto Rivera Garza como Antonio Rivera, pai, e Ilda Garza, mãe, ingressaram no território da falta, do pecado, da responsabilidade no mesmo velório da irmã e filha. A luita contra esse sentimento de culpa vai-se debulhando por todo o livro, que não é outra cousa que um exorcismo.
¿Por qué me tarde tanto? Pasan tantas cosas en treinta años. Pasa la muerte, sobre todo. No deja de pasar. La muerte de miles y miles de mujeres. Sus cadáveres aquí, rondando. Atrás del hombro. En los pliegues de las manos, que se aprietan. En la comisura de los labios. Atrás de las rodillas, cuando se flexionan. Pasan aquí, al lado, a mi lado. No dejan de pasar. Sus imágenes en los papeles que cubren los postes de la luz, en las páginas de los diarios, en los reflejos de todos los aparadores y las ventanillas: los rostros que tenían antes del crimen, antes de la venganza o el soborno, antes del amor. El tiempo se agolpa y se contrae. Luego se distiende otra vez. Un año. Tres años. Once años. Quince años. Veintiuno. Veintinueve. Luego se contrae de nueva cuenta. Estamos siempre en el mismo punto del inicio: los pies adheridos a un duro pegamento hecho de duelo y de culpa mientras el cuerpo se estira, horizontal, hacia un asomo de secuencia. La emoción es la misma: ni se refina ni madura ni se aquilata. Agacho la cabeza y miro el borde perfectamente horizontal del escritorio por el que pasea, con gran lentitud, con toda la parsimonia del mundo, la yema del dedo índice. Suspiro, derrotada. ¿Quién tiene derecho a decidir cuánto tiempo es mucho tiempo y cuánto es poco? Levanto el rostro otra vez, la barbilla, las cejas. Y la ausculto: su piel lisa, sus cabellos lacios, los dientes muy blancos, el delineador negro que enmarca sus ojos tranquilos. ¿Los habrán obligado a tomar talleres de atención al público? ¿ O saben nada más por la experiencia que todos los que llegamos aquí traemos el corazón en vilo y la vergüenza al hombro?6
Quando não há palavras, o melhor é procurá-las, sacudi-las e dar-lhes forma nova. Construir uma nova maneira de contar a violência, colocando uma distância narrativa que permite focar, a meia distância, a emoção enorme que bate em cada entrelinha. Escrever a irmã viva para todes, assim passem trinta anos.
Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021
1Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021, págs 55-56. Permito-me uma citação tão longa só polo gosto de partilhá-la.
2Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021, pág. 120.
3Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021, pág. 217.
4Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021, pág. 223.
5Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021, pág. 277.
6Rivera Garza, Cristina: El invencible verano de Liliana. Random House Mondadori 2021, pág. 20.
[Este artigo foi publicado originariamente na plataforma de crítica literária A Sega]