Ser uma pessoa ao contrário

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A Mary John ficou chocada já na primeira pergunta: és menino ou menina? E essa questão leva anos a abalá-la. Que é ela? Menina, menino, princesa, pirata? Quem é ela?

A Mary John é questionada polo Júlio Pirata, o vizinho que não é vizinho mas amigo mas não amigo mas namorado mas não namorado mas quê. Não há nome para a relação que há entre eles. O melhor é escrevê-la para lhe dar sentido.

E isso faz a Mary John: escreve ao Júlio Pirata uma carta que não é carta por comprida de mais. E porque não tem as folhas pregadas e não vai num envelope. Não há nome para o texto que escreve. O melhor é lerdes para lhe encontrar sentido.

Para compreender, a Mary John vai enfiando umas anedotas com outras e, através dela, conhecemos a mãe, o pai, o Júlio, a Liliana, a Sónia, a Carolina, o Daniel… A Mary John é quem de fornecer-nos os dados justos para saber de todas as pessoas que a acompanham na casa, na praceta e na outra cidade. Ela tem esse olhar que olha. Menos no espelho. No espelho Mary John não é quem de ver. Desconhece essa menina (menino?) que tem à fronte. Duvida porque o que ela vê não coincide com o que vê o Júlio, com o o que vê a Liliana. E são as suas olhadas, que a ispem e a reviram e lhe colocam as costuras de fora, as únicas que ela percebe.

A Mary John é quem de fornecer-nos os dados justos para saber de todas as pessoas que a acompanham na casa, na praceta e na outra cidade. Ela tem esse olhar que olha. Menos no espelho.

Ès menino ou és menina? E Mary John faz buratinhos nas orelhas para marcar. Gostas de meninos ou de meninas? E Mary John afasta-se da Liliana para marcar. A Mary John não cai na conta de que esses questionamentos são em realidade uma definição. Uma colocação no lugar indeterminado. Na inseguridade. Na dúvida. E ela aceita-o. Até escrever.

Bom. Até pirar.

A mamai consegue um trabalho e Mary John tem que fazer mudança. Encaixota a sua vida, toda, e começa novamente num novo lugar. Sente-se um quarto vazio, mas conta com a oportunidade de enché-lo como ela quiser. Com novas amizades. Que não questionam. Que não perguntam (bom, sim, és a Maria João? Gostas de jogar pingue-pongue?).

Que chamam polo nome.

MARIA JOÃO, assim escrito em letras garrafais.

Somos nomeadas e somos marcadas. Tantas vezes. Escuitar o seu nome real, o seu, não o escolhido polo Júlio, faz com que a Maria João dê com uma porta que abrir, uma janela através da qual olhar. Como em espelho. Para si. E vai se encontrando e sabendo e conhecendo ao tempo que lhe escreve ao Júlio Pirata todo quanto tem que lhe dizer e nunca disse.

MARIA JOÃO

Fico a imaginar os teus olhos a pousar no envelope. Os teus olhos no meu nome. A tua voz a ler a minha carta num sussurro. Tu de pé e eu deitada nesta folha de papel. A tua voz e a minha voz. Seria um bonito encontro, Júlio. Eu de papel e tinta e tu de carne e osso.

A verdade é que adoramos Ana Pessoa1. As suas adolescentes são a adolescente que éramos, que fomos, que somos. A voz que cria neste romance é uma voz ao tempo tão lírica e tão coloquial que exerce como viva mostra de que a poesia acontece no quotidiano. O discurso desenvolve-se como uma enxurrada de pensamentos e reflexões em remoinho com anedotas e cenas dialogadas. È como se a Maria João acabasse de encontrar a sua voz e a ceivasse sem controlo nem paragem. Não há capítulos, não há apartados, não há outra cousa que um agora-vou-dizer-che-todo-quanto-nunca-che-disse.

Dois elementos servem de ligação entre tanto desabafo: as pequenas frases e isoladas que vão marcando as tomadas de consciência da Maria João, as súas decisões, os seus incomodos, e as imagens e metáforas que emergem e submergem no texto como peixinhos a seguir a corrente do rio. E claro é: os chamados de atenção ao Júlio Pirata (a nós, não é?) para que atenda, para que perceba, para que saiba.

Tu também vás no camião, Pirata. Enfiado num caixote, como se estivesses de castigo. Tu e eu dentro de um caixote.

A minha mãe lavou o chão da casa. No final fechamos a porta. A casa ficou trancada no passado, muito quieta e vazia. E já não era bem a nossa casa. Era uma casa sozinha, com sussurros misteriosos de espaço desabitado.

Imagina isto, Pirata:

uma casa vazia.

Levámos os últimos objetos para o carro. A esfregona, o balde, os produtos de limpeza, os panos.

(…/…)

Júlio Pirata, eu sou um quarto vazio.

Nós ficamos mobiladas, decoradas, habitadas, após a leitura.

Ana Pessoa: Mary John.

Ilustrações de Bernardo P. Carvalho.

Planeta Tangerina 2016

1E que dizer da edição da Tangerina, e dos desenhos quase banda desenhada do Bernardo P. Carvalho… Maravilha!

[Este artigo foi publicado originariamente na Sega]

Máis de Susana Sánchez Arins