Aquilo que as odes não lembram temos que recordá-lo nosoutras. E as odes esquecem escravas e pobres e mulheres. E as odes cantam a vitória. Mas por trás da vitória está a verdade de quem, mesmo perdendo, lutou.
Com estas premissas de fundo constrói o seu último romance Marilar Aleixandre, A filla do Minotauro.
Afeitas estamos que a literatura galega feminista revise as figuras e personagens da mitologia grega. A Penélope naveganta de Xohana Torres inicia um caminho que outras seguiram, a própria Aleixandre entre elas. No seu poemário Mudanzas aparecem-se boa parte das personagens que resgata para este romance e já daquela a reivindicar uma outra maneira de escrever a história:
dixera que comías carne humana
e era peixe crú
cumpríalle algunha escusa
ao colonizador
para furar o teu olho
roubar o teu ouro
só che queda, como aos rapaces de Gaza,
arrebolar croios1
Neste fragmento do poema A Polifemo encontramos a ótica desde a qual está narrada A filla do Minotauro. São os vencedores da história quem deturpam a história para contá-la ao seu jeito, colocando às perdedoras na marginalidade dos monstros. Na não humanidade. São as próprias monstras, as silenciadas, as que colhem a palavra no seu livro para oferecer-nos outra visão do assunto.
A filla do Minotauro transcorre na Sicília, em 1944. Recém liberada a ilha do fascismo polas tropas aliadas da II Guerra Mundial, vira em ninho de traficantes e máfias que aproveitam o caos da posguerra para o roubo de obras de arte. Contra elas mobiliza-se parte do povo siciliano, apoiando à clandestina Liga das Gorgonas no seu trabalho de proteger o património cultural da ilha.
Miranda, protagonista da narrativa, moça adolescente e não por isso menos esperta ou conscienciada, une-se a essa liga e participa da salvação duma das peças mais cobiçadas.
Sicília é aqui espaço de refúgio e espaço de perigo. Vemos como boa parte das integrantes da Liga são chegadas de outras terras e reinos, fugidas de guerras, injustiças ditatoriais ou perseguições ideológicas. A taberna do Minotauro é espaço de encontro para estas gentes e aí vive Miranda, filha dos taberneiros. Mas estas pessoas têm que ver-se com a máfia, que aproveitando o desgoverno toma de facto o poder no lugar.
Sicília é aqui espaço de refúgio e espaço de perigo. Vemos como boa parte das integrantes da Liga são chegadas de outras terras e reinos, fugidas de guerras, injustiças ditatoriais ou perseguições ideológicas.
Um dos elementos mais atrativos da obra é o seu tratamento do tempo. O da narrativa é lineal, com pequenas paradas para as personagens contar os seus passados. Todo habitual aí. Mas não acontece o mesmo com o tempo histórico. Como já indicamos a trama está perfeitamente acotada num tempo concreto.
[…] Mira como escribirían os romanos o ano en que estamos, 1944 – e collendo a lousa escolar que había sobre a mesa escribiu nela MCMXLIV -, e compárao coa nosa (pág. 38).
Mas sobre-exposto a esse ano 1944 paira o tempo indefinido do mito, através das personagens e as suas estórias pessoais. Pois encontramos um traficante Oliseus, que não é outro que Ulises, ou um Polieufemio que nos traz ao cíclope até a atualidade, um De Dalus inventor, um mensageiro Narcurio, uma Kalypso protetora ou o pai Asterio, amo da taberna do Labirinto. Também os lugares são reconhecíveis para nós: Cnossos, Creta, Naxos, Atenas ou a ferraria do Etna misturam-se com Agriggento, Caltanissetta, Siracusa, Trapani ou a estrada 115 que cruza Sicília. Colocamo-nos pois, no tempo mítico mas não nele porque a fome da posguerra eis a está e a calçada sem piche também. Mas é a guerra a segunda mundial ou a troiana? Essa ambiguidade no tratamento temporal reduz distâncias de milénios e faz-nos sentir com que as guerras são todas a mesma, e nelas são os mesmos os que ganham e as mesmas quem perdem. Ao tempo iguala os saqueios: que diferença há entre aquilo que Ulises roubou na sua volta a Ítaca e o que procuram os expoliadores no século XX?
Em realidade, aquilo que nos recorda Marilar Aleixandre são duas máximas que deveramos acolher como básicas no feminismo: lá onde há injustiças, há pessoas a luitar contra elas, ainda que ninguém as nomeie, e que a história não é lineal, mas um continuum onde convivem diferentes visões do mundo em confrontação.
Sempre encontraremos Oliseus no nosso caminhar, mas também daremos com Mirandas e Polieufemios e Antelmos.
Marilar Aleixandre: A filha do Minotauro. Galaxia 2018
1Marilar Aleixandre: Mudanzas e outros venenos. Galaxia 2017 (pág. 147).
[Este artigo foi publicado originariamente na Sega]