Foi quiçá a palavra que me deu a chave de leitura das duas obras. Sentir-se na intempérie, mui longe do intempériome de Xela Arias. Sentir-se na intempérie na sua literalidade: ficar indefesa ou desprotegida perante as inclemências da vida, do mundo.
Luz Pichel coloca-nos na intempérie de não pertencer ao lughar, de ser alheia, no medo a incomodar a não perceber: “teño medo de poñer a miña cabeciña / a maquinar à beira da vosa non me quero / meter onde non caiba quero rir com vós / non quero ser unha vella / desaborida.
A poeta passou quinze dias com as vizinhas de Vilar de Bande, e dessa convivência nasce Tu existe, obra ilustrada por María Puertas. Nas páginas convivem também, em mistura aparentemente caótica, os poemas da autora, as suas reflexões sobre a vida no rural, sobre a memória, partilhada ou não, sobre a imagem que quer (ou que sabe, ou que pode) oferecer das vizinhas, sobre a sua própria história familiar, e as vozes dessas habitantes de Vilar de Bande, todas com nome: Camila de Benito, Maruja de Clementina, Marisa de Ricardo, Elvira da Pequerrucha… Todo em conjunto forma um palimpsesto, de escrita sobre escrita sobre escrita, que nos permite fazer uma imagem geral daquilo que nos quer contar: as pessoas do rural existem, são.
Um fio percorre e une todo o relato: a reflexão sobre a língua. Tem-nos afeitas Luz Pichel, desde o Casa Pechada / Cativa en su lughar ao jogo com as palavras, os fonemas, os dizeres. Esse uso literário do castrapo que a coloca na intempérie do(s) sistema(s): escreve ela galego, escreve ela castelhano, que é que escreve?
O Tu existe é reflexão sobre a variedade linguística desde o mesmo título, uma frase que a autora mal-interpreta (não vamos estripar para que leiades) por desconhecer a fala do lugar. A autora entra-nos na aldeia de Vilar de Bande perguntando-se polo nome das cousas: “como dicides aí a pranar as patacas?”, e durante todo o texto assomam palavras novas, descobertas, maneiras de dizer que a ela chamam a atenção e a levam às suas vivências no Além, lá em Lalim. A atenção à palavra, a escuita atenta, a ânsia de colocar o il e não o ele vem dada pola necessidade de ser fiel às outras vozes. E nesse ser fiel chega a decisão de introduzir texto em castelhano, porque assim falam algumas, a Manuela que enviaram às Josefinas de Ourense a estudar e riam dela por falar galego. A Manuela que enviaram às Josefinas porque a mãe estava na Venezuela. E damos com o fio real que une todo o conto: a dor intemperiada das meninhas abandonadas da emigração: “Así se explicou a muller que aínda leva dentro unha nena dorida que pode com ela. Hai moitas maneiras de sentirse en familia. Con Manuela volvinme sentir na miña casa. As feridas lingüísticas contra unha criatura cicatrizan mal”.
E liguei esta dor encarnada, e a ledícia genuína de dar com alguém que pode percebé-la, porque isso acontece em Tu existe, com o Tríptico do Silencio. À intemperie, de Brigitte Vasallo.
Outra vez um texto híbrido, um texto multilíngue, um palimsesto em que emergem as vozes múltiplas das outras: as filhas da emigração.
A autora utiliza uma figura mitológica para nos situar: a Ariadne abandonada em Naxos, um lugar que não é o seu. A Ariadne que não pode voltar a Creta porque atraiçoou a família, a classe, a origem; a Ariadne que não pode instalar-se em Atenas porque Teseu não a quer, porque as atenienses não a aceitam: Ariadne à intempérie.
O Tríptico do Silencio traz-nos a dificuldade, a impossibilidade de falar aquilo que não toca. E a dificuldade de não ter língua para isso: que faz a migrante? Usa a língua do país de chegada? A que lhe aprenderam pai e mãe sem ser deles? A de pai e mãe, que nunca lhe aprenderam? Como contar? Quando? A quem importa o que tenha que dizer uma txarnega? A quem importa o que tenha que dizer uma retornada de verão? Nem a Galiza nem a Catalunya dão abrigo. Instalemo-nos em Naxos e falemos em um falar novo, intemperiado.
Em aparência, o Tríptico do Silencio, é uma obra tatral: Ariadne fala, em monólogo e reflexiona para o público sobre a sua identidade, sobre as suas experiências como filha de migrantes. Porém, o livro conta com enjertos, necessários para lhe dar força ao resultado: depoimentos de outres filhes da emigração, que partilham com a autora as suas experiências (impactou-me em especial o testemunho de María Ptqk).
E encontramos algo que lemos também no Tu existe, e que visionamos no documentário Andoriña. Muller de ida e volta, de Cristina Pascual, sobre as experiências migrantes das suas vizinhas de Maceda: o silêncio absoluto das protagonistas. Quase todas admitem não ter enunciado aquilo que as marcou das suas experiências como migrantes, como filhes de migrantes. Quase todas ficaram na intempérie, incapazes de partilhar a nena dorida que levavam dentro.
Eu non quero reparación, diz Brigitte Vasallo, quero vinganza. Porque isto que nos aconteceu a nós non é reparable.
E eu reflexiono. E dou-lhe voltas à questão da língua. À questão do lugar. Na sorte que gozamos aquelas que temos língua e lugar. E no espaço, brando e quente, que lhe devemos, no nosso sistema literário, àquelas que chegam da intempérie.
Porque as feridas linguísticas contra uma criatura cicatrizam mal.
Luz Pichel: Tu existe.
Ilustrações de María Puertas
La uña rota & Crémilo 2023.
Brigitte Vasallo: Tríptico do Silencio. Á intemperie.
Ilustrações de Tonina Matamalas
laovejaroja 2023
[Este artigo foi publicado originariamente na Plataforma de Crítica Literária A Sega]