Castelhano-atlântico

Partilhar

Por Fernando Vázquez Corredoira

Em começos da década de ’90 aportou na Universidade da Crunha um professor de origem castelhana. Dedicava-se à Linguística e professou lá três ou quatro cursos. Folhei-lhe alguns trabalhos. Chamou-me a atenção que para nomear o castelhano que se fala entre nós usasse o termo español atlântico. Se foi ele o inventor ou se o colheu algures, não sei dizer ao certo. Inclino-me pela colheita, mas tanto fai. De qualquer maneira reparei no termo.

Castelhano-atlântico, logo (naqueles dias dizia espanhol. Hoje prefiro dizer castelhano). O falado agora e aqui. Ridiculizá-lo com azedume não me interessa. Recurso popular e inofensivo, aliás. Recordemos os propensos ao escárnio que aprender línguas não é fácil, ainda que possa ser divertido.

Na minha casa não andávamos apenas a aprender línguas. Não era bem isso ou só isso. Como em tantas outras do bairro, na minha casa a orientação era também esquecermos. Em certa maneira, até poderia dizer-se que o tal castelhanoatlântico não é senão a dose de galego não esquecido, um remanescente vernáculo no nosso castelhano em progresso.

 

 
Crunha e Lisboa , duas cidades atlânticas | Fotos tomadas de aqui e aqui

Três verbos me vêm à memória juntos: escangalhar, escarranchar, escaralhar. Todos três similares no significante e no significado, como se vê. Usavamo-los entre nós, os rapazes do bairro: construíamos uns artefactos com rodas com que nos lançávamos com alegre temeridade costa para baixo. Acidentes aparatosos eram frequentes, de maneira que também era frequente escaralhar-se, escangalhar-se ou ficar escarranchado.

Um dia dixem a minha mãe que Fulado quedara todo escangallado (isso aí é castelhanoatlântico). Fez ela má cara: eso no se dice, que es muy feo. As crianças não são de vidro, são de plasticina, ouvim dizer uma vez muito mais tarde. Acho que calha bem aqui repeti-lo.

Dez ou doze anos virados andava eu por Lisboa à procura de morada. Entrei em contacto com uma senhora nova, cenógrafa no São Carlos (como logo vim a saber), que alugava um quarto. Fum ter. Aprontou chá. Conversámos. Era de Lisboa, «da gema», gabou-se. Senhora muito distinta me pareceu. A dada altura, apontando para a televisão observou que cumpria mandá-la consertar porque estava escangalhada. Não dixo, é claro, cumpria mas sim escangalhar.

E (como hei-de dizer?) foi-me impossível não sentir que não condizia.

 

 
 O Bairro de Monte Alto (Crunha), sobranceiro ao Oceano Atlântico | Foto: Panoramio