Canção de Natal

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Estava morto e isso não tem volta. Várias décadas atrás algumas pessoas viram a vida lhe sair do corpo doente, deixando-o seco e lívido. Sim, morrera. Ademais, disseram no TV. Com toda certeza, Franco estava morto. Há que deixá-lo claro porque é indispensável para entender o pavor do juiz Scrooge quando o espetro de Franco se lhe apareceu, na intimidade do quarto, a reverberar entre infernais chamas para adverti-lo de mudar o rumo e de que nessa noite receberia a visita de três fantasmas.

Até esse momento Scrooge tinha sido um juiz implacável. Tinha feito do seu lugar de trabalho, o Tribunal, um castigo de delinquentes. Ele atinha-se à letra dos informes policiais. E sobre eles aplicava as leis, impiedosamente, na procura da justiça nacional. Nada fazia tremer a mão de ferro do juiz que ao escutar o desejo de Bom Natal respondia com um ríspido: Tolices!
Aquela noite no quarto de Scrooge apareceu-se o fantasma dos Natais passados. As imagens que lhe mostrou tinham a ver com a infância. Viajaram até aos tempos da escola e ali reconheceu os seus amigos da alma. Scrooge ria e comia bolo de Natal. Depois viu como o seu melhor amigo era falsamente acusado por outro neno. E o menino Scrooge quisera defendê-lo mas os adultos não lhe deixaram. Anos mais tarde aparecia debruçado sobre uns apontamentos de Direito: “Não poderá haver condenação sem a existência de provas lícitas”. O jovem Scrooge lembrava-se do seu amigo injustamente expulso, das báguas que ambos verteram e a dolorosa separação. Onde estaria ele agora?

papo-ruivoDepois disto o juiz ficara com pesar no coração, quando se lhe apareceu o fantasma dos Natais presentes. Com urgência arrebatadora levou-o ao interior duma prisão onde um jovem numa estreita cela escrevia num envelope: “à minha família”. Pairavam na mesa coloridos livros de história, sociedade, língua, contrastando com as grisalhas e sujas paredes. O debuxo do papo-ruivo tranquilamente pousado na grade dizia que é impossível encerrar o pensamento. O juiz Scrooge pensou que a cadeia não era lugar para a alma dum artista e desejou-lhe a liberdade.

Esta visão tinha-o deixado num estado de completa tristeza. Bruscamente um ar gélido entrou e um estrondo de sinos a defunto retumbou nas paredes do quarto de Scrooge. O terrível fantasma dos Natais futuros tinha chegado. Mostrou-lhe um funeral, um caixão e, dentro, o correspondente morto. Scrooge achegou-se para ver quem era, mas um véu lhe tapava o rosto. Em volta, escutou um falar baixinho: E pois finou o velho raposo. Finou, mas já ocuparam seu posto. Quem? Esse que o cuidou nas últimas semanas. Ah, e não seria ele…? Sim, fala-se que lhe “adiantou” a morte. Total, ia morrer igual. Isso. Rei morto, rei posto. Dura lex, já sabemos. Scrooge, horrorizado pela ideia do assassinato, correu junto do fantasma a exigir explicações. Não saber quem era o morto perturbava-o imenso. Quis fugir dali. Mas o fantasma assinalou de novo o caixão onde uma inscrição dizia: Juiz Scrooge. O terror trespassou-lhe o corpo. Não acreditava. Seu único amigo nos últimos tempos, tudo quanto tinha, teria provocado a sua morte? Que raio fizera ele para merecer tal! Scrooge rilhava e zunia e no climax da desesperação acordou enchoupado em suor e lágrimas.

No quarto matutino entrava uma clara luz invernal. Ofegante, Scrooge abriu a janela e perguntou a um vizinho que dia era hoje. Dia de Natal, senhor juiz. Então, Bom Natal, vizinho! O vizinho olhou-o de esguelho. Scrooge comprovou com júbilo que estava vivo! Então entendeu a advertência dos fantasmas. Agradeceu a oportunidade de emendar-se. Reconheceu as suas más ações. Quis festejar a vida, a liberdade, a justiça! Vestiu-se e dirigiu-se veloz ao Tribunal com um único objetivo: anular as injustas condenas de tod@s @s pres@s polític@s no dia de Bom Natal!