Comentários ao livro Assim nasceu uma norma. Pequena história da corrida linguística na Galiza entre 1970 e 1983, de José João Rodrigues.
1: METODOLOGIA E TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO
São escassos os estudos que perspetivam a questione da língua na Galiza com metodologias essencialmente documentais. E este livro é um caso notável polos abundantes registos citados, a bibliografia escolhida e a clareza expositiva.
A questão pode ser observada e analisada em diversos planos, que vão do sociopolítico ao mais restritamente filológico. Claramente, um tema como o escolhido tem mais lados dos que podem ser abrangidos numa só publicação e de uma só tentativa. Calha bem aqui a figura do prisma cujos lados refletem a luz em diferentes direções. Todos são necessários para fazer uma composição cabal da questão e do problema.
Vá pola frente os parabéns ao investigador polo esforço de acometer esta obra, este empenho, do qual até agora existiam abordagens diversas, mas nenhuma tão ampla e focada como esta na parte documental. A estratégia investigadora utilizada, coerente e impecável, apenas deixa margem para a especulação ou a interpretação subjetiva. Esta é a sua maior virtude. Relativamente ao estilo da redação, o uso escasso dos (des)qualificativos, como é habitualíssimo nos textos sobre o assunto, transmite uma sensação de rigor e distanciamento a respeito do tema sob análise, deixando um agradável sabor, nos antípodes do saudosismo e do lamento, constituindo uma mais-valia para a publicação.
O autor mantém-se no empenho da procura de provas claras, e em não tirar conclusões nem avaliações sem factos verificáveis, o que pode ser enquadrado numa metodologia positivista, com a certeza que isto acarreta. Ora bem, nem tudo são vantagens.
O autor mantém-se no empenho da procura de provas claras, e em não tirar conclusões nem avaliações sem factos verificáveis, o que pode ser enquadrado numa metodologia positivista, com a certeza que isto acarreta.
Cabe lembrar as limitações deste método quando se entra no terreno das ciências sociais em geral, e da língua em particular, pois o objeto de estudo contém uma indissolúvel partilha com os principais factos e processos sociopolíticos, sendo que as mais influentes decisões dos responsáveis nem sempre aparecem registadas, tornando-se preciso fazer inferências a partir dos seus efeitos, dos factos. Como a alma humana, da qual dizia Llull, Raimundus Lullus Majoriquensis, que não a podemos ver fisicamente, mas afirmamos a sua existência porque podemos ver as suas operationes.
Mesmo assim o autor percebeu que nem tudo pode ser explicado em função dos documentos disponíveis, de modo que recorreu a outra técnica, a das entrevistas, para esclarecer aspetos, passagens ou reuniões das quais não ficou constância ou certeza, como foi o caso de Xosé Luís Barreiro Rivas. Demonstra-se facilmente a importância de utilizar vários instrumentos de investigação simultâneos para aproximar-se da verdade, como a procura nas hemerotecas, onde pode achar-se, além de artigos de opinião refletindo as posições de cada sector em disputa, alguns factos culturais e políticos possivelmente determinantes para o processo estudado, como das páginas 211-212, em que cita a reunião na Casa Grande de Janzeda do casal Fernández España – Fernández Latorre, que juntou Manuel Fraga Iribarne, Ramón Lorenzo, Augusto Assia e Maria Victoria Fernández España. Informava esta última num artigo no jornal La Voz de Galicia terem decidido, nessa ocasião e para o futuro, “nada de reintegracionismo”. Factos expostos e comentados no livro Silêncio Ergueito, de António Gil Hernández, provavelmente a publicação que melhor sintetiza o processo anti-reintegracionista até à data.
Outro aspeto a considerar – leia-se sempre em termos de crítica positiva – e que permitiria uma perceção mais clara do processo, descobrindo talvez coincidências ou causalidades, seria incluir um quadro sinóptico com duas colunas paralelas, uma contendo as decisões no processo de padronização da língua, e outro com factos de indiscutível relevância política. Surpreende neste sentido que não tenha citado a criação das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal em 1981, ou o Golpe de Estado protagonizado em 23 de fevereiro nesse mesmo ano, entre outros militares, polo Teniente Coronel Tejero, da Guardia Civil da Espanha, e alguma das suas consequências. Costuma citar-se, neste contexto, a Ley Orgánica de Armonización del Proceso Autonómico (LOAPA), que fora objeto de recurso dos governos autonómicos basco e catalão, publicada finalmente em outubro de 1983. Nessa altura o que estava previsto no âmbitos político era, no mínimo, a estagnação do desenvolvimento de algumas políticas linguísticas das chamadas ‘comunidades periféricas’.
Poderia servir também como elemento de reflexão o facto de, nas semanas posteriores ao 23 de fevereiro de 1981, circular na clandestinidade “listas negras” de ativistas culturais, sindicais e políticos. Com maior ou menor credibilidade, essas listagens existiram e acabaram sendo publicadas no semanário A Nosa Terra. Caberia também citar nomes de pessoas que, na tarde e noite do dia do golpe de estado se refugiaram apressadamente, principalmente em direção a Portugal, em previsão de represálias. O medo como arma política não é uma novidade. Seria preciso indagar se estes factos contribuíram a uma decisão ‘conservadora’ ou ‘não arriscada’ entre alguns dos agentes que deveriam tomar alguma decisão sobre a norma linguística do galego. Anos voltados, em julho de 2019, uma operação policial, com ampla difusão em toda a comunicação social, levaria por nome “operación lusista”.
O título do livro indica que o período de estudo escolhido polo nosso investigador começa em 1970, mas apresenta um processo iniciado com o final da guerra civil espanhola, com um certo desequilíbrio informativo entre os precedentes e os consequentes. E finaliza em 1983, ano da aprovação da Lei de Normalización Linguística, que ampara o Decreto 173/1982 de 17 de novembro, em plena continuidade com o statu quo político vigorante nessa altura.
Nos anos posteriores iniciou-se a etapa de consolidação dessa norma, da qual uma vertente importante, um fator determinante, foi a política de marginalização e tentativa de erradicação social do reintegracionismo, alias ‘lusismo’, tendo como protagonistas principais – mas não únicos – a Secretaría Xeral de Política Linguística da Xunta de Galicia e o Corpo de Inspetores do Ensino. O próprio autor, J. J. Rodrigues, acrescentou um capítulo no final do livro a modo de chamada de atenção a um outro escritor, Carlos Callón, a respeito do seu Libro negro da lingua galega, numa espécie de ato de justiça que complementa, num plano mais comprometido, a primeira parte do seu texto. Um Libro negro que ignora a repressão contra o reintegracionismo que, como já foi dito, tinha como beneficiária a consolidação do papel preponderante das entidades isolacionistas, e particularmente do Instituto da Lingua Galega (ILG).
O tema mereceria outra investigação e outra edição. A documentação é abundante e só o silêncio pode dar aparência de nunca ter acontecido. As provas da perseguição arbitrária e ilegal por motivos linguísticos contra os utentes ou simples simpatizantes da norma lusófona são indiscutíveis. O processo de exclusão já estava em funcionamento antes de 1983. O silenciamento na comunicação social ou nos concursos literários; linhas editoriais na comunicação social orientadas a criar notícias tendenciosas; e a exclusão como política institucional sistematicamente praticada, não podem ser apagadas.
As provas da perseguição arbitrária e ilegal por motivos linguísticos contra os utentes ou simples simpatizantes da norma lusófona são indiscutíveis.
A verdade, mesmo que se pretenda ocultar por todos os meios, acaba saindo à luz mais cedo ou mais tarde. Atualmente, uma certa palavra de ordem presidida pela afirmação “o passado não interessa”, parece ter-se instalado em determinados espaços do reintegracionismo linguístico, o que é uma opção legítima, mas não inocente, contribuindo a esse esquecimento. O poder absoluto e a ausência de registos de acesso público cria as condições para a impunidade.
Numa altura foi criada a associação Docentes contra a Repressão Linguística, em que mantiveram atividade pessoas como Jesús Sanches Sobrado, Manuel Lopes Zebral e Mário Nozeda Ruitinha, entre outras pessoas. Durante os anos em que esteve ativa, dedicou-se principalmente a defender o direito de cátedra e a liberdade individual de coletivos de docentes, nomeadamente no ensino secundário. Ao automatismo do procedimento de exclusão das ‘dissidências’ acrescenta-se anedotas que vale a pena citar, como a seguinte.
Na mesma época em que o presidente Manuel Fraga Iribarne respondia por escrito a José Luís Fontenla Rodrigues, presidente das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, que não iria apoiar economicamente as suas publicações por “non cumprir a normativa linguística vixente”, saía do prelo um livro seu em português com orçamento público e chancela do seu governo, a Xunta de Galicia, no intuito de ganhar um prestígio no país vizinho, com um pequeno detalhe, uma gralha no título: Galiza e Portugal no marco europeu.
Por isso faria todo o sentido uma segunda parte de Assim nasceu uma norma, no período que de 1983 a 2014, estabelecendo um prudente distanciamento com os acontecimentos mais recentes.