Comentários ao livro Assim nasceu uma norma. Pequena história da corrida linguística na Galiza entre 1970 e 1983, de José João Rodrigues.
4. O QUADRO CONCEPTUAL DA LÍNGUA
Continuando a linha argumental suscitada pola leitura do livro de J J. Rodrigues, para entender o relativo sucesso do isolacionismo como modelo para o galego, é importante comentar as ideias mais comummente divulgadas na linguística e a sociolinguística na década de 1970 e 80 na Galiza, que criaram e mantiveram o substrato em que puderam prosperar as ideias “peregrinas e extremistas (consideradas assim por vários dos autores citados e que, num princípio, pareciam condenadas ao fracasso)” do Instituto da Lingua Galega (ILG), organismo investigador da Universidade de Santiago.
Caberia incluir em primeiro lugar como fator contribuinte, pola escassa atenção que se costuma prestar, à divulgação e receção generalizada de uma espécie particular do naturalismo, o discurso da mística da falsificação (Josep Conill, citando Climent Roset). Uma ideia de língua intimamente vinculada com a natureza, como se esta fosse dada de uma vez para sempre, entendendo que qualquer mudança na fala popular através de via culta seria uma espécie de falsificação ou degradação. Qualquer novidade não melhoraria o antigo, só o deturparia. Repare-se no argumento geralmente utilizado de aludir a uma forma dialetal determinada para legitimar o seu uso.
Deverá considerar-se também, na sociolinguística, o papel de diversas autoras com grande peso no campo cultural mais comprometido com a língua, que contribuíram a abonar o terreno, divulgando uma ideia de diglossia de Fishman, entendendo o conceito como a sobreposição de uma língua A (o castelhano) sobre outra língua B (o galego), afastando-se do modelo original de Ferguson, quem descreve o caso de línguas como o árabe ou o alemão, em que coexistem uma variedade alta e outra/s baixa/s de uma mesma língua, em situação de correlação e distribuição de usos sociais. Caso frequente em línguas de vasta extensão territorial e longa história da língua escrita.
O razoamento, muito simplificado, poderia ser este: Se a diglossia é negativa para o galego, talvez não seja oportuno dedicar esforços a construir uma norma culta que, necessária e inexoravelmente, estará distanciada de algumas variedades das falas populares, devido à sua progressiva castelhanização. Isto poderia provocar uma sensação de estranheza e de inferioridade nos utentes, talvez inoportuna para alguns projetos políticos.
Na mesma linha, algo semelhante aconteceu com a posição de Francisco Rodrigues exprimida no seu livro Conflito linguístico e ideoloxía en Galiza (1978-1991) no apartado “As teses de Rodrigues Lapa ou o culturalismo e o cosmopolitismo intelectual”, que podem ter contribuído ao mesmo caldo de cultivo, atribuindo a autenticidade e legitimidade da língua à fala popular e facilitando, no fim das contas, a legitimação de factos consumados. Desqualificar a possibilidade de um modelo de língua culta com base no padrão internacional do português, por ser uma “solución individualista e culturalista” não deixa de ser uma opção interessada e demagógica.
Cabe pensar o que teria acontecido e qual poderia ser a situação atual da comunidade linguística galega se alguns destes dirigentes, com indiscutível influência no campo cultural galego, tivessem tomado uma posição coerente com a história das línguas nacionais europeias, favorável a um modelo de língua exemplar.
Por outra parte convém prestar atenção ao modelo de conflito linguístico, utilizado como elemento central de uma escola, divulgado até ao ponto de ser canónico para a maior parte dos autores da sociolinguística galega. Reconheça-se que tem elementos positivos como a capacidade de criar nos utentes, recetores e destinatários das mensagens, uma consciência da dinâmica em que estão inseridos, um mapa da situação, uma explicação da sua discriminação social num espaço em que concorrem duas línguas. Este é o seu ponto forte.
Porém este modelo dinâmico, muito ajustado a situações de contacto de línguas, fica incompleto porque não contribui a definir ou perspetivar como seria, ou teria sido, uma situação de normalidade, ou de estabilidade, a priori desejada. E como não se percebe nem define nem se explica, também não parece prioritária a reflexão e a discussão pública sobre os caminhos, meios e instrumentos para a atingir. Aliás, com a experiência acumulada nas últimas décadas, confirmamos que acarreta o inconveniente de facilitar o desvio da atenção para o exterior. Parece que sempre a causa, a fonte de iniciativas, a responsabilidade e a perceção de ‘poder’ ficam fora do alcance da comunidade linguística menorizada.
O populismo e o academicismo populista constituem outro capítulo repleto de bibliografia. Podemos ver uma expressão concentrada deste tipo de argumentação no artigo “A lingua extravagante” de X. Dobao, publicado primeiramente em 1999 no semanário A Nosa Terra, na altura da primeira tentativa de entendimento entre entidades oficialistas e os defensores dos “Mínimos reintegracionistas”, para a reforma das normas da Real Academia Galega, verificada finalmente em 2003. Uma das frases que mereceria atenção deste texto é a afirmação “o pobo galego xa fala unha língua de cultura”. Não muito diferente do que Marco Bagno no seu livro O preconceito linguístico. O que É, como se Faz. Outra alusão que pode merecer reflexão neste artigo é a sua afirmação sobre o papel principal que devem ter os “labregos e mariñeiros”. Suficiente para identificar uma forma de pensar.
Houve uma época da cultura europeia em que existia uma diferenciação clara entre as palavras e as cousas mas, atualmente, mergulhados no Pós-modernismo, não parece merecer grande importância. Dado que tudo é relativo, aceita-se facilmente como válida a afirmação de que qualquer cousa é igual a qualquer outra. Contra esta lassitude devemos reivindicar o conceito de língua de cultura, mesmo a ideia de Cultura (Terry Eagleton), e o que significa na história da ocidental, que não deveria usar-se de forma tão ligeira como neste texto de Dobao: exemplo de desimbricação e síndroma de singularidade.
Outro dos erros comuns, e que se torna necessário evidenciar, é esse pressuposto conforme ao qual declarar o galego única língua oficial seria equivalente a convertê-lo em língua nacional, confundindo ambos os conceitos e esquecendo ou preterindo o processo necessário para chegar a tal propósito. O grave deste tipo de suposições é contribuírem a transmitir a ideia de ser possível aforrar o esforço individual e coletivo, delegando nas instâncias públicas a responsabilidade e a iniciativa.
De outro ponto de vista, em termos funcionais, seria preciso citar também no livro de José João Rodrigues o facto, dificilmente discutível, de no século XX a notabilidade galega não ter cumprido a responsabilidade inerente de criar um modelo de língua culta bem identificado e homologado com as línguas mais próximas. Isto apresenta uma alta correlação com a valorização negativa do “culturalismo e cosmopolitismo intelectual” denunciado por Francisco Rodrigues. Não parecia uma tarefa muito popular na altura do ano 1979. Não teria sido fácil ‘vender’ em termos políticos porque não era uma aposta de rentabilidade imediata. Antes ao contrário, implicava pedir um esforço de aprendizagem e colocar num lugar principal uma exigência de correção linguística, o que parecia em contradizer o discurso reivindicativo da língua como construção popular. Portanto, não entrava na equação e era perfeitamente descartável, de concordância com outra ideia ou palavra de ordem para contornar o reintegracionismo: “primeiro normalizar e despois normativizar”.
Este sintagma nominal foi utilizado proficuamente na sessão constituinte da Mesa pola Normalización Linguística em 1986, para evitar a incomodidade da “cuestión normativa” e, no fim de contas, continuar na mesma prática escrita castelhanizada previamente adotada. Justamente no sentido contrário ao que reivindicava Carvalho Calero: “primeiro normativizar, para poder normalizar”. Presentemente, a coerência deste sector cultural chega ao ponto de afirmar-se herdeiro do pensamento carvalhano, aderindo ao diassistema galego-português e, simultaneamente, pedindo a oficialização do galego como uma nova língua nos organismos da União Europeia. Basta o exemplo da eurodeputada Ana Miranda, que utiliza os serviços de tradução já existentes para a língua portuguesa. Em Bruxelas, oralmente, é a mesma língua. Porém no Parlamento de Santiago de Compostela não se reconhece de forma explícita que na Galiza falamos uma variedade do português. Temos dito num artigo anterior que transladar aos organismos internacionais iniciativas contra a unidade da nossa língua, fazendo o jogo ao isolacionismo, é um grave erro que só traz prejuízos para a Galiza, além de constituir um péssimo precedente para outras comunidades linguísticas do nosso continente.
Continuando com a última parte do livro e, na mesma linha argumental, podemos dizer que em 1982, a brecha colossal citada por J. J. Rodrigues não se produziu entre o ILG e o reintegracionismo de Ricardo Carvalho Calero, Manuel Rodrigues Lapa, Ernesto Guerra da Cal ou Genaro Marinhas del Valle. Estes estavam situados no modelo clássico de língua, em que o critério de correção está implícito, numa distinção clara entre fala e escrita comum a toda a cultura europeia. Os ataques contra eles e sua passagem ao ostracismo poderiam ser lidos como o ataque do ILG à centralidade da Grammatica. É aqui onde se situa realmente a brecha principal. De facto a década de 1980 é o período de maior desenvolvimento de ideias e conceitos que iriam tomar um lugar central no discurso antilusófono, ou antigramatical, ou antilinguístico, como a ‘fala viva’ ou a ‘deriva natural’. Inventar conceitos alegadamente novos parecia ser necessário nessa altura, para contornar o paradigma da Linguística Românica, que assentara a ideia universalmente consensual de o galego ser uma forma de português, ou vice-versa, e não línguas diferentes. Uma verdade desconfortável que era preciso fazer desaparecer mesmo na organização dos departamentos universitários. Simultaneamente, a promoção de uma nova orientação da Filologia Dialetal ao lugar mais alto do Parnasso das ciências cumpria o papel de legitimador universitário.
Para finalizar poderíamos dizer, emulando o sociólogo Lluís V. Aracil, que o processo degradante descrito no livro (gerúndio) iniciado em 1982 com o Decreto Filgueira, só poderia dar como resultado uma situação degradada (particípio) como a atual. A contagem mais recente dos utentes da nossa comunidade linguística não dá margem para grandes dúvidas. Os efeitos perniciosos do isolacionismo linguístico foram advertidos repetidamente por Carvalho Calero em numerosos artigos. A mais recente análise da obra do primeiro catedrático de língua galega na Universidade foi apresentada polo académico Joel Gomes no seu discurso de tomada de posse como numerário da AGLP, o 5 de outubro de 2024.
Naturalmente que, além do modelo de língua como fator acelerante desta degradação, é preciso aludir a uma complexidade de causas que nos conduziram ao momento presente, como a desigualdade jurídica constitucional, que situa o espanhol numa posição de superioridade hierárquia, como língua comum ou nacional a que se aplica o direito e o dever de conhecer, face às “demás lenguas”, que nos estatutos de autonomia são denominadas “lenguas próprias”, a respeito das quais só cabe o direito a conhecer. Como também as políticas que acentuam deliberadamente a discriminação, levadas a termo por vários governos autónomos do Partido Popular. Entre elas, o mais recente, denominado Decreto do Plurilinguismo.
Em suma, não teria sido possível este processo de degradação sem as facilidades de num contexto cultural circundante, em que se podia perceber e constatar a fraca implantação de uma ideia de língua forte nos principais escritores galegos, correlativa da sua insegurança no uso da língua escrita, num contexto de formação autodidata; ação meritória, mas insuficiente. Para demonstrar tal afirmação bastaria a revisão algumas publicações originais, constatando a ausência de regularidade morfológica, lexical e no paradigma verbal dos principais escritores da década de 1970. E podemos afirmar que o problema continua parcialmente, até à atualidade.
Cabe perguntar-nos, finalmente, se estamos a tempo de corrigir tanto erro e engano sobre a língua no sistema cultural galego, dominado por um monopólio da ‘verdade legítima’. Em parte, depende de todos nós mudar o rumo. Oxalá que instrumentos como a Lei para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a lusofonia, aprovada pola unanimidade dos deputados do Parlamento da Galiza em março de 2014, ou o Observatório da lusofonia Valentim Paz-Andrade, posto em funcionamento recentemente, servissem para o propósito com que foram criados. Tenho as minhas dúvidas razoáveis, porque o entusiasmo e a boa vontade não conseguem apagar os factos. A experiência diz-nos que a maior garantia de futuro é o reforço da iniciativa da sociedade civil.
Na sua Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo Bechara distingue e define, entre outros, os conceitos de língua histórica e língua funcional. Dialeto, língua comum e língua exemplar. Sempre vale a pena reler para conseguir uma perspetiva da nossa situação. Como também o Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure. Nunca defraudam.