Assim nasceu um investigador (2/4)

Partilhar

Comentários ao livro Assim nasceu uma norma. Pequena história da corrida linguística na Galiza entre 1970 e 1983, de José João Rodrigues.

2: NORMA ESCRITA, NORMA ORAL E LÍNGUA EXEMPLAR

Se ninguém pode pedir ao autor de Assim nasceu uma norma o que este não pretendeu tratar, também não está fora de lugar sugerir a consideração de outras dimensões da norma. Uma primeira constatação é que o livro analisa a língua escrita, deixando sem comentar, mesmo sem citar, a oralidade, a ortofonia e prosódia.

Tratar-se-ia dos usos orais correlacionados com essas Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego de 1982, reformadas em 2003. Claro que as pronúncias são menos uniformes do que a escrita, ao longo da geografia e dos estratos sociais, especialmente no caso galego, por ausência de uma escolarização eficaz na língua do país. Ou, dito em termos de processos históricos, porque não funcionou socialmente como língua nacional. Para não ferir suscetibilidades recuperamos um princípio da Escolástica: pode sê-lo em potência, mas não é de facto. Assim, qualquer observador externo pode constatar que a eficácia “normalizadora” está indiscutivelmente do lado do espanhol, do qual se aproxima mais cada vez a fala das novas gerações. Para uma avaliação sucinta não se precisa de uma técnica de transcrição fonética. Bastaria citar links de vídeos na internet, comparando o falar quotidiano e espontâneo de pessoas de diferentes idades e épocas.

Foram muito comentadas, nesse sentido, as entrevistas a marinheiros divulgadas na altura do desastre do navio Prestige em novembro e dezembro de 2002, e a consequente contaminação das costas galegas. Uma pequena janela em que se pôde ouvir os falantes das Rias Baixas sem a ‘modulação’ que exercem conjuntamente a tal Norma Galega alegadamente oficial, transmitida pola maior parte dos professores de galego no sistema de ensino obrigatório, e os de castelhano, ambos ‘normalizando’ o thetacismo, fonema interdental representado na escrita como ‘z’ ou com ‘c’ diante de ‘e’ e de ‘i’. Houve quem interpretou como estrangeirice essa marca oral da “paisanagem galega sesseante” reagindo à tentativa do Governo espanhol de ocultar a gravidade dos factos, da contaminação com piche. O que importa salientar aqui é que falaram espontaneamente, com uma oralidade muito próxima do português nortenho. O quid da questão é que se perdoa o ‘pecado’ por ser o povo. Porém, teria sido qualificada como Lusitanitatis delicto, se os falantes tivessem sido identificados como universitários; como lusistas desvairados.

Uma pequena janela em que se pôde ouvir os falantes das Rias Baixas sem a ‘modulação’ que exercem conjuntamente a tal Norma Galega alegadamente oficial, transmitida pola maior parte dos professores de galego no sistema de ensino obrigatório, e os de castelhano, ambos ‘normalizando’ o thetacismo, fonema interdental representado na escrita como ‘z’ ou com ‘c’ diante de ‘e’ e de ‘i’.

O debate que poderia ter-se suscitado, nessa altura, sobre a pronúncia padrão galega, passou como flor de um dia nos foros de debate habituais na internet. Para obter as respostas certas devemos começar polas perguntas adequadas. A que pronúncias atribui estrangeirice a atual política línguística do Governo autónomo, as instituições culturais oficiais, a comunicação social e o sistema de ensino oficial? Que falantes estão ‘dentro’ do galego legítimo e quem está ‘fora’?

Para exemplificar o problema evitaremos os casos mais facilmente identificáveis e criticáveis, à vista de todos, nos canais de TV oficiais, como a Televisión de Galicia, ou mesmo o Parlamento autónomo. Viramos a atenção a um caso mais difícil por ser mais próximo. O capítulo Galego vs. Português do Brasil (com leitura de Nélida Piñon) do programa “Galego de todo o mundo” no canal de Nós TV na internet. Iniciativa louvável e à qual desejamos continuidade. Com o intuito de contribuir ao seu melhoramento convém patentear, contudo, alguns posicionamentos questionáveis. Observa-se que o professor Eduardo Maragoto fala sob o rótulo “em galego pronuncia-se assim”, enquanto a professora brasileira Bruna Lago faz o equivalente para o português do Brasil. Apoiamo-nos neste ponto no conceito de língua exemplar (Coseriu 1992: Competencia lingüística. Elementos de la teoría del hablar, pp 164-166) e a distinção entre o exemplar como realização da língua histórica, e o correto, “que é um juízo de valor, fala-se de uma conformidade com uma tal ou qual estrutura da língua funcional de qualquer variedade diatópica, distrática ou diafásica” (Evanildo Bechara, Moderna gramática portuguesa, 2005, p. 51).

Inferimos que o esquema pretendido, neste capítulo do documentário audiovisual, foi apresentar e contrastar a língua exemplar para o Brasil, realização da língua histórica conhecida no plano internacional como língua portuguesa, com a língua exemplar para a Galiza no momento presente. Observa-se como Maragoto usa sempre o thetacismo apresentando-o como “a pronúncia galega”, sem citar a outra opção, coincidente com o português. E refere a conjunção “e” de uma só forma entre as registadas nas isoglossas. Uma hipótese é que o professor estivesse a exemplificar uma forma entre várias da língua popular, em cujo caso talvez deveria modificar-se a legenda do vídeo e indicar “Uma pronúncia popular na Galiza”. Se a pretensão for realizar oralmente uma norma correta galega, (juízo de valor), nesse caso, mostra proximidade com a denominada ILG/RAG. Mas não é a única realização possível, nem muito menos podemos considerá-la ideal.

A pergunta necessária é se esta opção fónica nos aproxima ou afasta do resto da comunidade linguística lusófona, e se é admissível na língua exemplar. Considerada, também, de forma paralela aos modelos exemplares na literatura, quer clássica, quer mais recente, resultando um instrumento imprescindível para contrapor à galopante deriva castelhanizadora. Não se trata de nenhum prurido elitista ou culturalista; antes, é uma necessidade comunicacional sentida por muitas pessoas do âmbito académico e universitário, que fazem parte do conjunto das falantes reflexivas (Coseriu). Ou, mais genericamente, as pessoas com vontade de língua, cumprindo uma papel ou função modelar.

O Movimento Lusófono Galego deve ter um perfil identificável em relação a isto. Porque uma posição de responsabilidade social e de liderança não admite indefinições, e porque o impasse na ausência de ação é uma forma de facilitar a consolidação dos processos em andamento, que não correm precisamente a favor. Somos conscientes de que José-Martinho Montero Santalha afirmou, já na década de 1970, do reintegracionismo, atender só à escrita, não afetando a fala. Julgamos que esta afirmação é válida só no plano da adequação a um uso correto em determinados espaços comunicacionais internos. Pode ser contraproducente se for utilizada, num discurso populista, para invalidar ou eludir o exemplar, o ideal. Ainda mais se for utilizado para marcar um diferencialismo desnecessário a respeito do português que, como a experiência dos últimos 40 anos demonstrou, acarreta um pesadíssimo custo para o país.

A problemática da ausência de vontade, ou incapacidade, para marcar um critério de correção oral, associa-se, entre outras causas, à falta de modelos identificáveis e ao predomínio do populismo socialmente generalizado (Coseriu, 1995: “A língua literária”). Também ao que Lluís Aracil explicara na sua intervenção que teve por título “A sociolinguística da experiencia e da acción”, in A.A.VV, 1978: Problemática das linguas sen normalizar, a respeito da ‘raia’. O que é possível fazer da fronteira para baixo parece mentalmente impossível da fronteira para cima. Como se a divisão administrativa causasse uma incapacidade de atuar. Motivo de reflexão que continua a ser do máximo interesse e atualidade.

Vejamos outro fator que pode contribuir a completar o quadro da situação. A dinâmica de grupos ilustra fenómenos de mudança e substituição linguística. A Psicologia Social fornece os conceitos de grupo de pertença e grupo de referência, cuja explicação excede a pretensão deste texto. Considere-se a indiscutível tendência à conformidade com as normas estabelecidas, a ceder à pressão do grupo percebido como dominante, que costuma ser o de referência, como acontece visivelmente nas aulas do ensino obrigatório. Aqui os falantes do português da Galiza tendem a usar no relacionamento com os seus pares a língua percebida como associada ao prestígio e o poder: o castelhano. O mesmo fenómeno explica o uso do thetacismo, na faixa costeira galega, só nos âmbitos formais. Também nas aulas de língua galega em que, numa espécie de sarcasmo, o programa oficial e os livros de texto, incluem a aprendizagem das isoglossas do território galego, numa uma espécie de mitificação da ‘autenticidade’ da fala popular, mesmo do “seseo”. Contudo, só a benefício de inventário e para assinalar o seu caráter particular.

Aqui os falantes do português da Galiza tendem a usar no relacionamento com os seus pares a língua percebida como associada ao prestígio e o poder: o castelhano. O mesmo fenómeno explica o uso do thetacismo, na faixa costeira galega, só nos âmbitos formais.

Claramente, o aspeto da norma oral vai além do previsto por J. J. Rodrigues neste livro. Contudo, caberia ter incluído um breve comentário de rodapé, dada a sua importância no processo de identidade da comunidade linguística numa situação de concorrência com outra língua de posição hierárquica superior. E polo seu peso na tomada de consciência dos falantes em relação a outras comunidades linguísticas próximas. Os parágrafos anteriores contribuem a conformar uma ideia mais completa da Norma em questão e da política linguística que se seguiu.

Finalmente poderá afirmar-se que, para cada modelo, existe ou seu contraponto num anti-modelo ou contra-modelo. Basta para isto citar as ideias do brasileiro Marcos Bagno (1999), para quem a língua exemplar é uma espécie de imposição que conduz ao preconceito linguístico: um constrangimento. Dizem Marcelo de Jesus de Oliveira e Debora Rodrigues Ribeiro, numa análise muito generosa das ideias do Sr. Bagno, que este escreve “ambicionando a deconstrução do perfeccionismo” (Revista Philologus, Ano 26, N. 76. Rio de Janeiro: CiFEFiL, jan. /abr. 2020).

O tema mereceria outro artigo e uma necessária crítica das falácias bagnianas, não muito distantes dos mitos e falsidades utilizadas na Galiza polo isolacionismo praticante. Para já, basta assinalar o facto de os casos galego e brasileiro ser marcadamente divergentes. Enquanto aqui ambicionamos a continuidade da comunidade, a própria sobrevivência cultural, no Brasil, sem qualquer medo a perder falantes, podem dar-se ao luxo de duvidar da unidade da língua.

[Uma primeira parte desta artigo foi já publicada aqui]