Comentários ao livro Assim nasceu uma norma. Pequena história da corrida linguística na Galiza entre 1970 e 1983, de José João Rodrigues.
3. UM SENTIDO ALARGADO DE COMUNIDADE
Contra o hábito de, nas questões do galego considerado como língua, fazer só referências a autores próximos, considerando uma história da língua escrita da Galiza reduzida aos últimos duzentos anos, e como se fosse um caso único e isolado do resto do mundo, parece necessário e até saudável lembrar que, na realidade, os processos vistos aqui têm precedentes e paralelismos na literatura de outros países.
Do ponto de vista histórico, a questão tratada em Assim nasceu uma norma poderia ser qualificada como um caso local de um processo geral da cultura europeia (Aracil, 2014), ou do espaço europeu, se quisermos dar seguimento à moda de desmentir e desacreditar a unidade cultural europeia assinalada por Ernst Robert Curtius. Portanto, para uma cabal compreensão do que vem acontecendo com a língua da Galiza resulta útil um estudo histórico comparativo, facilitando a compreensão do problema. Porque sendo lógico o relato histórico baseado nos factos registáveis (novamente o positivismo em foco), o reconhecimento da ausência de forças ou causas endógenas no campo cultural, observável em todos os livros de história da Galiza, aconselha pôr também num lugar destacado as ausências, as carências, os desaparecimentos, sem as quais, insisto, será tarefa impossível perceber como é que chegamos até ao momento presente. Se não for suficiente este razoamento, acudiremos à epistemologia.
A questione della lingua, alcunhada em Itália pela sua dilatadíssima história de debates desde a criação da Accademia della Crusca, fundada em Florença, em 1583, tem bibliografia abundante em que reparar, e à que aludir. Para contribuir a enquadrar a questão podemos comentar telegraficamente alguns processos e debates culturais reconhecidos, com os seus correlatos em formas de lugares-comuns. Assuntos que passam geralmente inadvertidos e podem resultar particularmente úteis para os fins destes comentários divulgativos. Convém trazer à tona:
– O papel dolatim europeu como instrumento de transmissão de conhecimentos e fonte de tecnologias da qual beberam todas as línguas europeias. Primeiramente no processo de gramaticalização nos séculos XVI e XVII, e seguidamente na transmissão de modelos literários. Sobressai aqui a tradução da Arte Poética de Horácio para as línguas vulgares como exercício inescusável dos estudantes de estudos superiores em toda a geografia ocidental. Passando pola criação da Respublica litterarum, da qual Erasmo de Roterdão foi um dos principais promotores, para posteriormente constituir essas repúblicas literárias as diversas línguas nacionais, chegando nos fins do século XIX e início do XX à criação das ‘línguas modernas’. Veja-se a este respeito o excelente Diccionario hispánico de la tradición y recepción clásica, colectânea dirigida por Francisco García Jurado.
Na literatura galega costuma citar-se algumas posições de Benito Jerónimo Feijoo em relação ao galego como língua (igual à portuguesa) e aos seus falantes, como também de outras partes da geografia espanhola. Com alguma honestidade é preciso dizer que essa parte da sua obra é uma anedota no conjunto da sua obra. Reparem no Teatro Crítico Universal: uma obra de um sábio endereçada à divulgação da república literária do castelhano. O detalhe não é menor. Caso similar ao de Gregório Maians i Siscar em València. O que têm em comum ambos, entre outras qualidades pessoais, é um bom conhecimento do latim e as leituras dos escritores clássicos. Essa é uma condição fundamental do seu bom uso do castelhano escrito.
Mas não é só o latim como fonte de conhecimento. É a questão da sua perda como língua de comunicação das classes letradas, e na sua função de língua comum, a partir de meados do século XVIII, iniciando-se na França ilustrada, o que abriu uma época na que ainda estamos, mergulhados numa tendência ao solipsismo. E disto se derivam linhas de discussão sob o rótulo ‘língua perfeita’, com propostas como o Esperanto. Veja-se a este respeito uma publicação interessante de Andrea Chiti-Batelli e Guy Héraud: Quale “lingua perfetta”? Imperialismo dell’inglese e soluzioni federale europea Este último tinha participado num dos seminários organizados pola AGAL em Ourense, na altura da presidência de Maria do Carmo Henríquez.
– A dicotomia ou oposição entre “antigo” e “moderno” (querelle des anciens et des modernes) que se registou nas classes letradas de muitos países europeus, e que mudaria o nome a começos do S. XIX por “Clássicos e românticos” (Madame de Stael: De l’Allemagne), sendo “Romantismo” equivalente a “Modernidade”. Posteriormente, no século XX, à oposição básica entre “clássico” e “proletário”, em que a posição clássica assenta nos autores canónicos, que perderam o lugar central com a proliferação da imprensa e o domínio dos critérios quantitativos. Também a isto chegou tarde a Galiza. Ver l’Homme de quantité de Bernard Ronze.
Entre as múltiplas utilidades de levar em linha de conta estes aspetos da história cultural do mundo ocidental, encontra-se a tomada de consciência de que a cultura galega, portanto a língua da Galiza, esteve durante séculos desvinculada, à margem, dos processos que aconteceram e guiaram os países do entorno. Carvalho Calero explicava-o do ponto de vista da partição política do território linguístico, e da estagnação da evolução da língua a norte da fronteira portuguesa no artigo ‘História clínica’ do galego (La Voz de Galicia, 04-02-1983). Outro dos ‘pecados capitais’ do escritor ferrolano (lembremos que, para os filólogos positivistas, só conta a realidade da ‘fala viva’ avant la lettre, sem ponderar o processo histórico em que se insere a comunidade linguística. Conta só o que eles podem registar no seu tempo, numa nova contagem de zero.
Negar esta realidade histórica, ou atuar como se não tivesse existido, é uma forma de cegueira, um auto-engano que obriga a lidar com as consequências sem perceber as causas. O relato oficial do período dos Séculos Obscuros – amplamente divulgado, e lecionado sem oposição no sistema de ensino obrigatório (por exemplo, Bieito Silva-Valdivia: A Sociolinguística, 2000, p.38) explicado como um vazio, apresentando a Galiza sem qualquer relação com os processos que conduziram à criação das línguas nacionais constitui, para alguns de nós, uma narrativa escurecedora. Permita-se a licença da reiteração. Não contribui a perceber como e por que o português da Galiza chegou à situação atual. Serve, talvez, para fazer tabula rasa, esquecer o passado e justificar a tríade Rosalia Castro, Curros Henríquez e Eduardo Pondal, como escritores fundacionais. Alguém decidiu: o que existiu anteriormente, e paralelamente, em Portugal, não interessa. Camões e a sua obra foi incluído em algum dos livros de texto no início da autonomia galega, como foi explicado por António Gil em vários artigos. Mas foi decretada a sua ‘desaparição forçada’.
Moral do assunto: se é verdade que, esta tomada de consciência da posição relativamente excêntrica da Galiza no conjunto da cultura europeia deixa uma sensação de perda e vazio, poderia ter, no entanto, um sentido de utilidade, como contrapeso a essa tendência geral ao facilitismo e aos atalhos fáceis.
Como último apontamento não podemos passar sem comentar o seguinte. Existe o costume de atribuir estes fenómenos a causas estritamente políticas. Assim, seria a imposição do Estado Espanhol ou a ausência de estruturas políticas próprias a causa única, ou principal, da falta de desenvolvimento da cultura galega. Com isto pareceria fechar-se qualquer debate. O problema desta posição é como explicar que outras comunidades linguísticas, em situações similares, produziram resultados bem diferentes.
Se observássemos estas questões através das palavras de ordem do Campo Cultural galego legitimado, usufrutuário do que temos denominado ‘monopólio da verdade’, poderíamos dizer que este texto é um puro divertimento. Porém, visto da experiência dos reintegracionistas sujeitos a uma dupla exclusão, a leitura é outra. O que nos trouxe a este terreno não é uma fidelidade partidista nem o proveito pessoal. Também nada tem a ver com o currículo escolar oficial. Trouxe-nos a curiosidade e a necessidade de entender, partindo de uma realidade difícil que nos obrigou a um esforço, muitas vezes autodidata, para obter uma formação inexistente na Universidade. Uma curiosidade que chegou a implicar algum risco pessoal. O livro de J. J. Rodrigues apenas insinua a situação; o contexto social e político abafante da década de 1980 no ensino, e não só, em que se censurava por toda a parte e de forma unânime a ‘dissidência’. A ‘heterografia lusista’, como qualificaram na tese isolacionista do livro Que galego na escola? (Encontros Labaca). Um dos últimos espaços em que se contrastaram ideias sobre a questione do galego.