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O binormismo e a inoportunidade do passado

carvalho-caleroPor um conjunto de razões que não cabem neste artigo (entre as quais pode ter importância a Lei Paz-Andrade) a continuidade do regime linguístico de 1983, assente no Decreto Filgueira, pareceu abalar quando a RAG declarou que o Dia das Letras Galegas de 2020 seria em honra de Carballo/Carvalho Calero, 30 anos depois do seu falecimento. Isso gerou algumas expectativas de mudança e diálogo, conduzindo a alguns encontros públicos e privados para tentar perceber até que ponto isso podia trazer alguma novidade que facilitasse um novo clima, no intuito de deixar para os livros de história a divisão do campo cultural galego. Houve quem pensou que podia abrir-se o caminho para ultrapassar o encerramento quadriprovincial da língua, um dos principais lastres que conduzem a comunidade linguística galega ao esvaziamento de utentes, que não o único.

Houve quem pensou que podia abrir-se o caminho para ultrapassar o encerramento quadriprovincial da língua, um dos principais lastres que conduzem a comunidade linguística galega ao esvaziamento de utentes, que não o único.

O primeiro indício de o caminho estar cheio de obstáculos foi a hesitação e a duplicidade entre o uso institucional das formas Carvalho e Carballo Calero, em evidente falta de respeito à vontade do homenageado e antigo membro numerário dessa instituição centenária. Foi uma clara mensagem: Carvalho sim, ma non troppo. Não ficou o ferrolano afetado por isso, foram outros quem ficaram retratados, mais uma vez. Poderia também tomar-se essa anedota como exemplo de uma categoria identificadora de uma parte notabilidade galega, a mesma que dizia em 1982 elaborar as Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego em nome do “pobo”, e agora parece deitar a culpa ao povo, explícita ou implicitamente, de estar a abandonar a língua.

Verificamos em diversos contextos que algo não funcionou corretamente nesta celebração. Por exemplo quando oferecemos de borla, a diversos centros escolares do ensino médio, um número determinado de exemplares do romance Scórpio, e observamos as respostas de algumas diretoras, entre o silêncio, o explícito “non interesa”, e o “déixame ver o texto da noticia antes de publicar”.

Celebradas em pandemia as Letras Galegas dedicadas a Carvalho, podemos dizer que passou o dia e passou a romaria? Cabe perguntar-se se mudou algo de essencial, e se estamos no caminho de acabar com o apartheid que, por outras palavras menos rotundas, já denunciara o primeiro catedrático de língua e literatura galegas da história da Galiza, nos seus últimos anos de vida.

O primeiro indício de o caminho estar cheio de obstáculos foi a hesitação e a duplicidade entre o uso institucional das formas Carvalho e Carballo Calero, em evidente falta de respeito à vontade do homenageado e antigo membro numerário dessa instituição centenária. Foi uma clara mensagem: Carvalho sim, ma non troppo.

Mais recentemente, no contexto produzido por esta aparente abertura do lado da legitimada posição académica antilusófona, apareceu em foros de debate na internet, especialmente no Portal Galego da Língua uma aparente novidade, que a alguns nos faz lembrar um velho lugar-comum das assembleias da AGAL da década de 80, que levava por nome “convivência normativa”. Mutatis mutandi, agora leva o título “binormativismo”, ou “binormismo”.

Admira a linha de atuação discursiva, que não passaria da categoria de anedota se não fosse pela sua reiteração. A ausência de discussão ou de posições publicamente discordantes poderia transmitir a sensação de existir um alargado consenso neste tema, ou uma aceitação tácita. Passado um tempo, dou a minha opinião enquanto membro da AGAL.

A ideia ou projeto binormista tem, quando menos, três problemas associados que batem à porta de quem o lança. Primeiro, uma viragem tão acentuada no rumo da associação tem uma gestão muito difícil, muito arriscada, tanto interna como externamente, porque a AGAL não atua num sistema cultural ou editorial onde tenha o controle dos significados, antes ao contrário, continua fora do jogo institucional, sem influência em nenhum dos seus mecanismos. A questão vai além do uso de normas ou de ortografias, pois vai intimamente ligada à conceção da língua, à sua unidade territorial e às dinâmicas que daí se derivam. Não se pode estar dentro e fora da língua portuguesa ao mesmo tempo, defendendo uma ideia e a contrária. Porque, nesse momento, abandona-se a sua própria causa, o próprio campo.

Não se pode estar dentro e fora da língua portuguesa ao mesmo tempo, defendendo uma ideia e a contrária. Porque, nesse momento, abandona-se a sua própria causa, o próprio campo.

Não há discursos que vão ser lidos e lidos e entendidos só por um sector da sociedade, salvo que se utilizem técnicas especializadas nas redes sociais. Mesmo assim, transcendem os limites previstos. O que se afirma na Crunha é o mesmo que se lê no Porto, especialmente quando se divulga na internet. Aplicando a lógica do binormismo, poderíamos ver a AGAL defender como legítima e válida o uso da norma RAG numa futura e hipotética representação da Galiza na CPLP, por exemplo?

Segundo, o isolacionismo institucionalizado não precisa da nossa legitimação, como resulta evidente. Já foi legitimado polo estado espanhol e por 40 anos de história. É tarde para isso, salvo que se queira jogar a obter alguma classe de retribuição, a meu ver, discutível e improvável.

Terceiro, seria muito conveniente aproveitar as lições da história da associação, da história recente do país e da realidade presente, perante a evidência de que a guerra à unidade da língua continua, tanto em Santiago como em Lisboa ou no Rio de Janeiro. Cabe perguntar, portanto, se é oportuna a decisão de dar por bom o desequilíbrio atual, a imposição da lógica do estado e os factos consumados de 1983 como irreversíveis. Este é um debate que não pode ser furtado ao corpo associativo nem menos substituído por uma consulta por internet. Fechar em falso os temas e criar tabus sobre o passado, evitando a necessária catarse, além de constituir uma torpeza, não vai contribuir a consolidar os projetos.

Quando se copiam argumentos falaciosos e populistas qualificando as normas da RAG como “próximas do galego oral”, consegue-se dar uma chicotada na linguística. Ora a linguística não se vai ver afetada por isso. Entrar na linha de aceitação de factos consumados, dos quais carecemos totalmente de responsabilidade, não compensa a perda e o esvaziamento do próprio campo. Alhear-se em relação à própria história associativa não é exatamente um ganho, é uma perda notável que é preciso assinalar. Será que o passado de perseguição e repressão do reintegracionismo, entre os quais numerosos sócios da AGAL, é uma verdade incómoda e inoportuna?

Entrar na linha de aceitação de factos consumados, dos quais carecemos totalmente de responsabilidade, não compensa a perda e o esvaziamento do próprio campo. Alhear-se em relação à própria história associativa não é exatamente um ganho, é uma perda notável que é preciso assinalar. Será que o passado de perseguição e repressão do reintegracionismo, entre os quais numerosos sócios da AGAL, é uma verdade incómoda e inoportuna?

Não passa despercebida a ninguém a dissonância entre o grande esforço nos gestos desta parte, e a constatação dos factos. As autoridades públicas galegas toleram alguma leve mudança na política da língua, mas não a consolidam estruturalmente. Alguém duvida de que a força e as propostas para esta mudança surgem da sociedade civil? É verdade que há um ar diferente, uma atitude mais positiva e mais opções para o diálogo com diversas instituições públicas e privadas. Ora, se existisse realmente essa vontade de mudança, a Lei 1/2014 “para o Aproveitamento da Língua Portuguesa e Vínculos com a Lusofonia” estaria a ser aplicada conforme foi acordada, com o seu correspondente desenvolvimento legal. Que melhor instrumento para demonstrar a vontade de mudança, de passar página e iniciar outras dinâmicas mais participativas e equilibradas? Não nos enganemos: quem tem a responsabilidade e a capacidade de mudar as regras é quem está em posição de decidir.

E mesmo assim, com todas as eivas e problemas, enquanto não houver outro projeto, é preciso não abandonar esta linha de trabalho. Pode haver outras opções e, de facto, estão acima da mesa, mas não seria responsável dar o passo de deitar ao lixo o entendimento de 17 de março de 2014 em troca do vazio ou de decisões unilaterais com menos nível de consenso. Ficar da parte de dentro ou de fora é decisão de cada entidade.

Neste caso o meu erro, e o de outras pessoas que partilham esta preocupação, seria o mesmo dos dirigentes da AGAL que na década de 80 mantiveram o rumo e que, no contexto do debate da “normativa de concórdia” perceberam que isso não conduzia a nenhuma parte, e optaram por construir uma alternativa séria ao isolacionismo.

Posso estar errado eu, também. Neste caso o meu erro, e o de outras pessoas que partilham esta preocupação, seria o mesmo dos dirigentes da AGAL que na década de 80 mantiveram o rumo e que, no contexto do debate da “normativa de concórdia” perceberam que isso não conduzia a nenhuma parte, e optaram por construir uma alternativa séria ao isolacionismo, uma linha que passou por várias etapas, começando por um esforço de criação intelectual nos campos da filologia, a linguística e a sociolinguística com derivadas nos movimentos de renovação pedagógica, o movimento ecologista e os trabalhos para-diplomáticos da Comissão Galega do Acordo Ortográfico. Um projeto partilhado, melhor ou pior, com outras entidades como a Associação de Amizade Galiza-Portugal, as Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, e a Associação Sociopedagógica Galego-Portuguesa, por citar só algumas. Com estes vimes, com estes fundamentos e orientação chegamos aqui.

convocatória da AGAL 1987.
convocatória da AGAL 1987.

Se estou enganado, o meu engano é o mesmo dos que permanecemos apoiando a candidatura de Maria do Carmo Henríquez (1988?) e não a de Francisco Salinas Portugal, que teria implicado uma satelização da associação a respeito de um partido político. Nunca esqueço as palavras de Xavier Vilhar  Trilho nessa assembleia de renovação do Conselho da AGAL. Referia-se às propostas linguísticas de Salinas e à “concórdia normativa” que diluía o reintegracionismo, como uma “concentração para trás”.

Desejo, em qualquer caso, o maior dos sucessos.

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