Uma crítica do romance, Todas as crianças foram antes adultos (mas poucas se lembram), de João Lousada.
“Assim, falta-me o ânimo de apresentar-me aos semelhantes como um profeta, e me curvo à sua recriminaçom de que nom som capaz de lhes oferecer consolo, pois no fundo é isso o que exigem todos, tanto os mais veementes revolucionários como os mais piedosos crentes, de forma igualmente apaixonada””.
O Mal-estar na Civilizaçom. Sigmund Freud
Assim que terminei de ler Todas as crianças foram antes adultos (mas poucas se lembram), recordei, a propósito das crianças e da memória, uma conhecida vinheta de Mafalda na qual a menina sentencia: “Como sempre: o urgente nom deixa tempo para o importante”. Porque é pouco comum, hoje em dia, encontrar uma obra de ficçom que aborde temas elementares da existência humana: o sentido da vida, o amor, o tempo, o destino, a morte… A maioria das histórias que estám na moda reflete o pulsar da nossa época: a procura imediata da espetacularidade e a contínua reciclagem das ideias descartáveis. O que di Mafalda talvez seja algo, si, que acontece desde sempre. Porém, no mundo atual, a novidade radica, do meu ponto de vista, em que a importância das cousas parece ser medida, precisamente, pola sua urgência. Sob este princípio, nom é de estranhar, por exemplo, que haja pessoas que resolvam qualquer questom com um comentário, um like ou um retweet. Polo contrário, o romance, quer de maneira explícita, quer como parte da própria história, mergulha sem complexos nas profundidades dos chamados “grandes temas”.
O outro detalhe que me levou a pensar na tira do grande Quino tem a sua origem nas peculiares vicissitudes que deve enfrentar o protagonista, nomeadamente, no trecho central do relato. O leitmotiv desses capítulos encerra, de propósito ou de maneira intrínseca, uma metáfora que serve ao autor para assinalar uma das caraterísticas que definem melhor a nossa sociedade: o seu infantilismo promovido e institucionalizado a todos os níveis. Com este comentário, nom pretendo, de jeito nengum, desprezar as crianças nem tratar com soberbia uma etapa da vida que as pessoas costumam lembrar com saudade (as que tiverom uma infância mais ou menos feliz, claro). O próprio protagonista manifesta-se no mesmo sentido. O que se passa é que “tudo tem o seu tempo determinado” (diz a Bíblia), e o facto de muitos adultos continuarem a pensar como quando tinham dez anos nom parece que vaia ajudar a solucionar os problemas da humanidade. Obviamente, isto nom seria assim se todos refletissem como Mafalda. Mediante a estratégia de atribuir à menina uma agudeza extrema, o cartunista argentino talvez simbolizasse que, no fundo, as verdades universais som simples e evidentes. O recurso empregado no romance, pola sua vez, consiste em fingir que a idade fai a diferença, que o protagonista pensa de outra maneira porque se converteu num adulto, embora continue a parecer um menino. Porém, todos sabemos que a sua transformaçom é impossível, ainda que quigéssemos acreditar nela, e que o caminho da vida nunca se desanda. Com esta convicçom joga o autor. Se repararmos bem no protagonista, este só atinge a sua maturidade real quando toma as decisões conscientemente e assume o risco de se tornar livre; ou, tal como ele mesmo reclama, tentando fazer algo, na aparência, tám básico (e, no entanto, dificílimo) como pensar por si mesmo.
Porém, todos sabemos que a sua transformaçom é impossível, ainda que quigéssemos acreditar nela, e que o caminho da vida nunca se desanda. Com esta convicçom joga o autor.
Estas som algumas das conclusões que tirei sobre o significado da obra. Mas antes de continuar com outras possíveis interpretações, deveria referir-me ao seu argumento, já que este romance breve se sustenta, como qualquer outro, nas aventuras e desventuras que vivem as suas personagens e que constituem o fio condutor da narraçom. Contudo, nom quero entrar em demasiados detalhes, porque acabaria por desvendar a reviravolta no enredo; uma anagnórise, só revelada a partir do terceiro capítulo, que o autor utiliza para inserir a obra no género fantástico. Podo antecipar, isso si, que nom se trata, estritamente, de ficçom científica, mas desse tipo de relato que se vale de sucessos extraordinários para falar, na realidade, em questões cotidianas ou inclusive existenciais. A modo de exemplo (salvando as diferenças), ocorre-me As Intermitências da Morte, onde Saramago, aliás, também evita mencionar os nomes das suas personagens. E ainda que as temáticas nom tenham muito a ver, lembro-me igualmente dos “replicantes” de Blade Runner, que procuravam as respostas que o protagonista de Todas as crianças descobre por acaso. Se calhar, porque talvez nom esteja tám longe o dia em que a inteligência artificial comece a fazer as mesmas perguntas (De onde venho? Para onde vou? Quanto tempo me resta?), enquanto o ser humano grava vídeos no Tik Tok e sobe as fotos das férias ao Instagram.
Este recurso narrativo a que me estou a referir nom foca apenas no episódico; torna-se a base argumental do romance, uma vez passada a surpresa preparada no segundo capítulo, cuja ambiguidade só se descobre no seguinte. A estratégia funciona bem, pois permite ao autor fazer algo que, polo especial uso da temporalidade, de outra maneira pareceria forçado: que o protagonista conte a sua biografia, em passado e em primeira pessoa, à medida que a vai revivendo e analisando. Trata-se portanto, de um narrador autodiegético, que conta, de um ponto de vista subjetivo, as suas peripécias, e que emprega o monólogo interior na hora de manifestar perplexidade polas suas circunstâncias, de expressar os seus raciocínios e emoções, os seus temores e dúvidas, o motivo final dos seus atos. A justificaçom interna do romance é resolvida também de maneira hábil: trata-se de um depoimento que o narrador escreve, no momento atual, a fim de demonstrar a veracidade da sua história.
Quanto aos traços de estilo, uma das maiores virtudes deste romance, na minha opiniom, é a claridade da sua prosa, sustentada em frases elaboradas e precisas que permitem uma leitura ágil, mantendo sempre o emprego da linguagem literária. É preciso destacar também certos elementos recorrentes que reforçam a coesom do texto e a sensaçom de estarmos a ler um relato circular: as cenas repetidas das festas de aniversário e na praia, as fotografias (que simbolizam a revisom do passado), as explicações sobre o conceito de “alma” (que reivindicam a universalidade), os momentos em que o protagonista manifesta o seu desejo de congelar o tempo (introduzindo o debate de se este pode existir de forma independente aos acontecimentos), etc. Outro detalhe que nom passa despercebido som as referências a personagens da mitologia grega: Sísifo, Ulisses, Cassandra, Ariadne…, às quais eu acrescentaria, polas semelhanças com a história, embora nom seja mencionado, Íxion: amarrado a uma roda que gira eternamente, só deixa de dar voltas graças ao canto de Orfeu. Em Todas as crianças, é precisamente a música que resgata o protagonista do esquecimento.
Quanto aos traços de estilo, uma das maiores virtudes deste romance, na minha opiniom, é a claridade da sua prosa, sustentada em frases elaboradas e precisas que permitem uma leitura ágil, mantendo sempre o emprego da linguagem literária.
No que di respeito ao conteúdo filosófico, Todas as crianças cita a teoria do eterno retorno de Nietzsche (pág. 45) e uma frase de Sócrates: “Só sei que nada sei” (pág.98). Em princípio, estas seriam as únicas referências explícitas à filosofia. O próprio narrador, embora formule continuamente questões de indubitável natureza filosófica, confessa-se leigo nesta matéria (pág. 26). Chega mesmo a fazer uma declaraçom de princípios negando qualquer implicaçom de caráter doutrinal ao texto (pág. 49). Nom obstante, como referim no começo deste artigo, por causa dos temas tratados no romance, as interpretações filosóficas dariam para um longo debate, com o único limite da profundidade que se quiger dar ao que nom deixa de ser uma obra literária que procura ser amena. Por exemplo, estou a pensar no que dizia Kant sobre a existência de um segundo nascimento no ato de estimular a razom (Metafísica dos Costumes); no sentido da ontologia em Heidegger, de termos de dirigir a nossa vida e de sermos, portanto, uma tarefa para nós mesmos (Ser e Tempo); em Sartre, que explica que as ações passadas já não nos pertencem (som um “ser em si”), e, no entanto, nós somos elas (O Ser e o Nada); ou em Wittgenstein, quando escreve: “Se por eternidade nom se entende uma duraçom infinita do tempo, mas uma atemporalidade, entom vive eternamente quem vive no presente” (Tratactus logico-philosophicus). Aliás, no próprio romance adivinha-se certo jogo metaliterário, com frases inspiradas em citações de filósofos e literatos: “Saber seria, por conseguinte, o mesmo que recordar” (pág. 29, Platão); “Sonhava com alcançar o instante sublime em que, por fim, cada um chega a ser o que é.” (pág. 13, Nietzsche); “(…) ao acaso se une sempre uma necessidade.” (pág. 46, Monod), “Regressou à infância, antes de falecer, que é a pátria de todos nós” (pág. 16, Gabriela Mistral); “(…) o homem é filho do menino.” (pág. 74, Rilke).
Em conclusom, este romance, escrito com desenvoltura e minuciosidade, por um autor novel (apesar da sua idade), oferece, em poucas páginas, a maior parte das caraterísticas que eu considero que deve ter um bom romance: uma preocupaçom sincera em apurar o estilo, uma olhada profunda polas cousas que importam, uma emoçom que fica na memória ao terminar a leitura e uma história interessante, nom isenta, com certeza, de senso do humor (neste caso, a ironia parte já do jogo de palavras do seu título).