A novidade da Através editora é o romance Todas as crianças foram antes adultos (mas poucas se lembram), de João Lousada (Ourense, 1975). Já disponível nas livrarias da Galiza e Portugal e também online, é um livro que traz uma proposta inovadora a respeito de temas como viagem no tempo, a partir de uma narrativa intimista e reveladora.
Em “Todas as crianças foram antes adultos (mas poucas se lembram)”, o leitor poderá encontrar o que acredito ser uma nova perspetiva em relação ao tema da “viagem no tempo”, muito explorada nos livros e filmes de ficção científica. Aqui, talvez, podemos ver uma perspetiva não tão científica, mas sim mais filosófica?
É verdade que a hipótese de “viajar no tempo” se tem tornado um argumento muito batido dentro do género de ficção científica. Eu entendo que, quando a ciência (sem a ficção) fala em viagens no tempo (na sequência da Teoria da Relatividade, por exemplo), nunca sugere que possamos refazer a nossa biografia, pois tal cousa é materialmente impossível, por definição. Porém, a simples conjetura chega para outorgar certa verosimilhança a um romance ou a um filme baseado nesse pressuposto (requisito indispensável, à partida, para qualquer história funcionar). A questão radica em focar o argumento nesse fenómeno insólito, ou antes pelo contrário, servir-se dele como pretexto para tratar outros temas. Ontem mesmo passaram na TV “Planet of the Apes”, de 1968, um filme que aborda o racismo e o ambientalismo. No meu romance, não é tanto a viagem quanto o próprio “tempo” que tem importância. E este conceito encontra-se muito presente, claro, em qualquer cânone filosófico. Assim, o texto, com efeito, tenta refletir na filosofia, enquanto carece de qualquer rigorismo científico ou de pretensão de fazer parte de alguma saga de ficção científica…
Ora (e desculpa que me estenda na resposta), o propósito que atribuo à filosofia é fundamentalmente prático, como um meio para dirigir melhor as nossas vidas. Hoje em dia, temos uns políticos muito preocupados com as chamadas fake news. A solução que propõem é assinalar e censurar os media que, supostamente, mentem. Não seria preferível fomentar o espírito crítico nos cidadãos? E a educação não influi nisso? Pois o estudo da filosofia e das humanidades, em geral, não deixa de perder horas de aulas, alunos e prestígio, com a conivência e inclusive a participação ativa das mesmas pessoas que depois lamentam que o povo seja tão crédulo. Eu não acredito que a filosofia nos vá revelar a verdade. No meu livro há mais perguntas que respostas. Mas quem aprende a duvidar torna-se mais difícil de manipular.
Eu não acredito que a filosofia nos vá revelar a verdade. No meu livro há mais perguntas que respostas. Mas quem aprende a duvidar torna-se mais difícil de manipular.
Como surgiu o personagem principal desta história? A partir da leitura, parece-me que as inspirações podem ser bem pessoais.
A escolha do personagem principal deveu-se, principalmente, a uma decisão técnica. Quis que o protagonista fosse, ao mesmo tempo, o narrador, e que, portanto, contasse a história em primeira pessoa. Para além disso, optei por prescindir, no máximo possível, dos diálogos, e empregar, sobretudo, o monólogo interior. Acho que dá, por assim dizer, um caráter mais “íntimo” à narração. Ora, estou consciente de que também pode provocar que se identifique a voz do narrador com a do autor, e que as pessoas pensem que se trata, pelo menos em grande parte, de um texto autobiográfico. Não é assim, em absoluto (imagina o que se passaria se o relato, com o seu componente fantástico, fosse real…). Mas, bom, obviamente, criar do nada só está ao alcance da divindade, e até a imaginação tem os seus limites. Não sei onde li que os romancistas fazem passar a ficção por realidade e a realidade por ficção. Talvez se pareça bastante com um sonho: tem certa base real (alguns sucessos, pessoas, lembranças…), mas tudo aparece desordenado, misturado e transformado. Às vezes, nem eu mesmo sei o que aconteceu de verdade.
Ainda nas inspirações criativas, como surgiu a ideia da narrativa? Algo o inspirou, como um livro ou talvez um filme?
Tenho ouvido, muitas vezes, sobretudo a pessoas da minha idade, esse comentário de que gostariam de ser mais novas, desde que pudessem conservar “o que sabem agora”… Se calhar, na sua génese, o romance partiu dessa ideia, que implica uma análise certamente parcial e autossuficiente do próprio passado, e o facto de olhar com arrogância (e inveja, claro) os jovens. Aliás, lembrei-me, com frequência, deste parágrafo de Viagem ao Fim da Noite: “Descobres no teu ridículo passado tanta ridiculez, engano e credulidade, que talvez desejasses acabar de vez com isso de ser jovem, esperar que se desprenda, a juventude, esperar que te ultrapasse, vê-la ir-se, afastar-se, olhar para toda a sua vaidade, levar a mão ao seu vazio, vê-la passar de novo à tua frente, e depois partir tu, ficar certo de que realmente se foi, a tua juventude, e então, tranquilo pela tua parte, voltar a passar muito devagar para o outro lado do Tempo para ver, de verdade, como são as cousas e a gente”.
Contudo, penso que a resposta que dá o romance não vai tanto nessa direção nem é tão categórica. Porque cumpre ter também em conta o absurdo, o sem sentido da vida e a inutilidade da procura de sentido, de que fala Camus, em O Mito de Sísifo (que incluo nas citações), e que nos afeta, a todos, em qualquer momento da nossa existência. Quanto a uma inspiração mais concreta e consciente, o capítulo segundo deve bastante à leitura de De Profundis, de Cardoso Pires.
O ritmo da narrativa é uma das qualidades mais positivas da obra. No processo de escrita, houve sempre o objetivo do enredo ser mais dinâmico e veloz, ou isso foi sendo desenvolvido e evoluindo à medida que as palavras eram escritas?
Alegro-me imenso de que digas isso, porque foi algo procurado desde o primeiro momento. Na minha opinião, numa obra literária, o estilo não é tudo, mas quase. Na maior parte das vezes, na hora de se interessarem por um romance, as pessoas perguntam: “de que trata a história?” E, depois, ouvem-se comentários de especialistas a falar apenas na sua originalidade, na sua atualidade, no bem documentada que é, no seu surpreendente final, etc. Parece que não é dada qualquer importância à prosa, a verdadeira ferramenta do romancista. Talvez porque seja mais difícil de avaliar… Acho que a voz é tão importante para um escritor como para um cantor. A partitura pode ser maravilhosa, a letra muito bonita, mas se o intérprete não sabe cantar o resultado não pode ser bom. Mesmo o Bob Dylan, que não é precisamente um barítono, tem o seu estilo. O único que posso dizer é que me esforcei em escrever com ritmo e claridade. O produto nunca pôde ficar muito bem-acabado, porque eu não sou um profissional da escrita. Mas se percebeste isso que dizes, algo consegui.
Este é o seu primeiro livro. Quais foram os maiores desafios ao estruturar uma narrativa como está pela primeira vez? Estás satisfeito com a nova experiência?
Bom, realmente este não é o meu primeiro romance, mas o primeiro em ser publicado. Escrevi mais dous, ao longo dos anos. E também alguns contos, dos quais um par deles receberam prémios, há muito tempo. Tenho mesmo uma pequena obra de teatro premiada (com um accessit?) pela Universidade de Vigo… Eu sou leitor antes de mais, claro, e o maior desafio sempre foi escrever um romance que gostasse de ler. Nesse sentido, confesso que fiquei bastante satisfeito, sobretudo se o comparo com os anteriores. Tentei publicar outro e não o consegui. Alguém poderá pensar que, se calhar, me rendi demasiado cedo, que as editoriais, às vezes, se equivocam… Isto último é certo, mas neste caso concreto a obra não possuía a qualidade suficiente. Uma pessoa deve aplicar o espírito crítico de que falei antes também a si mesma ou consistiria num sentimento falso, numa pose. De resto, escrever precisa, acima de tudo, de tempo e de esforço. Anteriormente falavas em inspiração. Como dizia Picasso, a inspiração existe (e o talento, acrescento eu), mas tem de te encontrar trabalhando.
Sem revelar muito a trama, gostarias de ter a oportunidade dada ao protagonista?
Em criança, dos dez aos quinze ou dezasseis anos, joguei bastante xadrez. Participei inclusive em vários campeonatos com pessoas de todas as idades. Suponho que ainda existe o costume de “analisar” a partida ao terminar. Consiste em que ambos os jogadores coloquem, outra vez, as peças no tabuleiro e revejam todos os movimentos desde o princípio. Pois bem, havia um homem que na análise, embora tivesse perdido, encontrava sempre uma posição na qual tivera o jogo ganho. O motivo da derrota nunca fora a sua limitada habilidade, nem que o rival jogasse melhor. Nalguma altura cometera um erro, sofrera uma distração, simplesmente má sorte… Com isto quero dizer que ver uma “oportunidade” no que aconteceu ao protagonista só faz sentido se contemplarmos a vida em termos de ganhar ou perder. Na verdade, tudo é muito mais complexo e nem merece a pena imaginar a sério tal hipótese. Rever o passado só ajuda para aprendermos dos erros cometidos. Porém, na maioria das vezes, o único que fazemos é pensar no quanto parvos éramos ontem e quanto espertinhos somos hoje (antes de mudar de opinião amanhã).
Agora que acabaste de publicar um livro, tens vontade de voltar a escrever? Se sim, imaginas algo em concreto?
Eu gostei de publicar na Através, com certeza! O que faz toda a equipa (só conhecia parte dela), com os meios que tem, é realmente admirável. Um bom exemplo de como funciona a AGAL: graças ao voluntarismo, ao trabalho e à imaginação das pessoas que estão dentro (sei-o porque sou uma delas, não tenho reparo em o dizer). Ora, quanto a debruçar-me outra vez sobre o teclado do computador, ainda que sejam umas poucas horas, depois de o ter feito no escritório todo o dia, tenho muitas mais dúvidas. Com frequência, a literatura, mais que parte da vida, parece uma alternativa. Aliás, na minha experiência, o vazio torna-se outra das ameaças que pairam sobre quem está a escrever. E não estou a falar apenas da famosa “página em branco”. Refiro-me a esses momentos, que já tive enquanto tentava relatar esta história, em que paras de teclar, encostas na cadeira, olhas para o ecrã e perguntas-te: “E tudo isto para quê?…”. Por isso não imagino ainda nada em concreto. Quando o fizer talvez volte a pensá-lo.