Fontenla e a geração da Lusofonia

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Começo esta breve intervenção dando os mais sinceros parabéns ao José Luís Fontenla e à sua família, em nome da Academia Galega da Língua Portuguesa, que aqui venho representar com o meu colega Joám Trilho, pelo Prémio Meendinho do ano 2018, que a ele honra, e atráves do qual todos nos sentimos partícipes também.

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José Luís Fontenla Rodrigues, filho de Maria Rosa Rodrigues e José Luís Fontenla Mendes, que fora membro das Mocedades Galeguistas, do Partido Galeguista, do Seminário de Estudos Galegos, de Labor Gallega de Ponte Vedra e da editora SEPT, nasceu em Ponte Vedra a 9 de fevereiro de 1944. É escritor, jornalista, poeta, artista, ativista político e cultural, tendo utilizado diversos pseudónimos como João Padrão, Luís Roïz, António Eirinha e outros. Algumas das suas obras foram traduzidas para hebreu, japonês, russo, romeno e inglês. Licenciado em Direito pela Universidade de Santiago, iniciou a sua atividade como advogado em 16 de setembro de 1967, dividindo os seus esforços entre a atividade profissional e a faceta intelectual e de criação, como impulsionador e colaborador de múltiplas iniciativas cívicas que definem uma etapa da Galiza.

No âmbito da atividade profissional e cívica durante a ditadura franquista destaca em 1970 a sua implicação a favor da abolição da pena de morte, pela amnistia e os direitos humanos, a título pessoal e em iniciativas coletivas por meio da Ordem dos Advogados. No terreno político cofundou o Conselho de Forças Políticas Galegas, em reunião realizada no seu escritório de advogado de Ponte Vedra em janeiro de 1976, mantendo relação direta e epistolar com as mais relevantes figuras políticas do âmbito espanhol. Fundou o Partido Galego Social-Democrata, sendo candidato ao Senado espanhol pelo Partido Socialista Galego em 1982. Foi representante da Galiza na Plataforma de Convergência Democrática durante a ditadura franquista, na clandestinidade. Colaborou com o Euskal Sozialista Bitxarrea – Partido Socialista Vasco e o grupo socialista “ex-Reagrupament” de Josep Palach para criar uma Federação de Partidos Socialistas com o PSOE (H) histórico. Elaborou um projeto de Constituição para a Galiza fazer parte de um possível Estado Conferederal Espanhol. Como advogado, fez as gestões em Madrid para a legalização da Asamblea Nacional-Popular Galega (AN-PG) em março de 1978, antecedente do atual Bloque Nacionalista Galego (BNG).

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Como ativista cultural e cívico com atuações iniciadas há mais de 50 anos fundou a Asociación de Amigos da Cultura em 1970, com sede em Ponte-Vedra. Foi cofundador e segundo presidente da Asociación para a Defensa Ecolóxica da Galiza (ADEGA), participando decisivamente, entre outras, na campanha contra os depósitos radiativos no Oceano Atlântico. Contribuiu para a realização de ofícios religiosos em galego em condições politicamente difíceis e colaborou com editorial católica galeguista SEPT. Fundador da Ass. de Amizade Galiza-Portugal, Ass. Cultural Lusófona Irmandades da Fala da Galiza e Portugal (IFGP), Ass. Sociopedagógica Galega, Círculo Republicano Lusófono, Centro Internacional de Estudos pela Paz.

Na sua faceta editorial foi fundador e diretor de A Nosa Terra e, para esse semanário, jornalista da secção internacional. Fundador e diretor das revistas das IFGP: Nós, O Ensino, Cadernos do Povo (Biblioteca de Autores Lusófonos), Temas de O Ensino.

Participou na Comissão Galega do Acordo Ortográfico em 1986, na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, junto de Isaac Alonso Estraviz (representante por delegação de Ernesto Guerra da Cal) e Adela Figueroa Panisse. Em 1990 presidiu à Delegação de Observadores da Galiza participando, com António Gil Hernández, na sede da Academia das Ciências de Lisboa, nas reuniões que conduziram ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, tratado internacional que só começaria a entrar em vigor a partir de 2008. Faz parte do Centro de Estudos Luso-Brasileiros (CELB) da Universidade de São Petersburgo. Em 5 de outubro de 2012 foi nomeado membro de honra e mérito da Academia Galega da Língua Portuguesa.

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Entre os múltiplos encontros internacionais sobre língua e cultura organizados sob a sua direção, com participação dos mais notáveis linguistas e investigadores de todo espaço lusófono, saliento um momento determinante. Já o nosso homenageado tem indicado que a primeira vez a ser utilizado publicamente a expressão ‘lusofonia’, como elemento essencial de uma política de visão ampla, abrangente e multipolar, foi no I Encontro Internacional da Lusofonia, realizado na Casa do Brasil de Madrid, sendo no seu papel de presidente das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal. Foi nos dias 28 e 29 de setembro de 1988, há 30 anos, com assistência do Embaixador da República Federativa do Brasil em Madrid e vários adidos culturais de embaixadas de países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) como Adriano Botelho, representando a República de Angola.

Se o congresso foi um exemplo notável de bom fazer, de abertura e de inovação na conceção das relações internacionais, tenho para mim que o livro mais simbólico dos produzidos nessa etapa é o que leva por título “Ressurgimento galego, essa Lusofonia”, volume VI de Temas de O Ensino de Linguística, Sociolinguística e Literatura, do ano 1990, pelo conjunto e pela mensagem que transmite, um bocado anti-saudosista. “do conceito em construção à ação” por palavras de Fontenla, o que poderia servir como título para um livro de investigação sobre o seu percurso vital.

Merece ser salientada a sua conceção da lusofonia é a visão global, a sua capacidade de análise dos problemas e antecipação estratégica, com o acerto de pôr o foco de especial atenção em África, o que poderá ser verificado na documentação da Comissão Galega do Acordo Ortográfico e das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, que a AGLP irá disponibilizar publicamente em formato digital, mostrando centenas de comunicações epistolares com autoridades galegas e espanholas, com as missões diplomáticas dos países da CPLP e instituições culturais de vários países. Como exemplo, a petição por carta do embaixador brasileiro Aparecido de Oliveira, enviando-lhe o rascunho dos estatutos originais da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, solicitando o seu parecer.

capa-pasta-ao-1990Fontenla é também autor prolífico no terreno da poesia, teatro, ensaio e pintura, com ensaios sobre arte e cultura, provavelmente inéditos, tendo grande influência os seus artigos e conferências sobre política de língua, com artigos publicados na que se denominou “ortografia reintegrada”, pelo menos desde 1980. Referência imprescindível na defesa do papel da Galiza no Acordo Ortográfico de 1990, uma participação galega que não foi resultado do acaso, e cujo valor político e diplomático vai muito além dos aspetos linguísticos, sendo atualmente reconhecida como um símbolo coletivo que pertence a todos.

“Nada pode evitar que uma parte da história cultural e política do país só possa explicar-se pela sua atividade, o que o converte numa espécie de sujeito elíptico na história da cultura galega”

A sua dedicação ao bem público e à dignificação da Galiza implicou um grande sacrifício pessoal e familiar, de que pouco se sabe publicamente, pois não há constância de que tenha escrito as suas memórias, já que continua fiel à ética e lema da sua geração: “As pessoas não importam, o importante é o coletivo”. Como cidadão que defende um modelo de língua coerente com os pontos de vista de Ernesto Guerra da Cal, Manuel Rodrigues Lapa ou Jenaro Marinhas del Valle, sem cedências, é considerado alheio ao sistema cultural galego oficialmente reconhecido, portanto silenciado, ostracizado, como a prática totalidade dos seus colegas e companheiros de geração. Porém nada pode evitar que uma parte da história cultural e política do país só possa explicar-se pela sua atividade, o que o converte numa espécie de sujeito elíptico na história da cultura galega. Ele está, é acessível e sempre atende amavelmente os telefonemas. Até pode comprar-se os seus livros, porém o autor não existe na contagem e bibliografia oficiais.

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Temos aprendido com ele a importância das relações internacionais, do sentido da diplomacia como meio para o reconhecimento do caráter nacional e lusófono da Galiza. Temos aprendido a pôr o interesse do país num lugar destacado, e a ir sempre para a frente, inspirados por uma filosofia do otimismo vital, dando a oportunidade de que tenham sucesso os projetos que iniciamos, por muito difíceis que pareçam ser em teoria. A experiência das Irmandades da Fala da Galiza e Portugal, por ele presididas, demonstrou que não se consegue o que não se intenta. O pessimismo de quem afirma que a Galiza e a sua língua não tem remédio, só serve desmobilizar o pessoal e dar a razão de facto ao vitalismo mortífero, essa ideologia da cratolatria que inspira a pior etapa da história da Europa, e que é predominante na história do século XX na Espanha. Temos descoberto, com Fontenla, o valor do ativismo, da sociedade civil em ação sem dependências dos poderes públicos, contra a superstição estendida de que nada pode subsistir fora das margens estabelecidas pelo Estado Moderno. Temos descoberto, também, a necessidade de as linhas discursivas e mesmo os termos utilizados para explicar a situação galega não serem diferentes de um lado e outro da fronteira. Que um mesmo discurso e uma mesma mensagem tem de ser entendida, percebida, interpretada, da mesma forma por galegos e portugueses, a além.

“Temos aprendido a pôr o interesse do país num lugar destacado, e a ir sempre para a frente, inspirados por uma filosofia do otimismo vital, dando a oportunidade de que tenham sucesso os projetos que iniciamos, por muito difíceis que pareçam ser em teoria”

Acho que as pessoas presentes, e muitas outras que não podem estar fisicamente neste ato de homenagem por diversos motivos, com independência da idade cronológica de cada uma, temos um sentimento de pertença a uma mesma geração, a Geração da Lusofonia, de que Fontenla é um claro exemplo, ao dar impulso ao reintegracionismo e defender a dignidade nacional da Galiza, fornecendo experiência, conceitos e elementos discursivos para convertê-lo no vigoroso Movimento Lusófono Galego que hoje é, com um papel crescente na sociedade.

Falo de uma geração de mulheres e homens com um nível de auto-exigência e de compromisso com a Galiza fora de toda dúvida. Com um sentido especial da ética e da estética, sem cedências, mas com a melhor disposição para o diálogo com todos. Falo de uma demonstrada resiliência, um otimismo com sentidinho assente na experiência, uma predisposição às iniciativas de intervenção social, uma tendência à liderança, e um contrato inquebrantável na defesa da unidade da língua nascida na velha Gallaecia, que podemos chamar legitimamente portuguesa ou galega.

Finalizo esta breve intervenção de homenagem a quem tanto devemos com um desejo. Da mesma forma que Fontenla se definiu, nalguma oportunidade, como continuador das ideias linguísticas e a conceção do patriotismo da Geração Nós, também os mais jovens, aqui presentes, nos sentiríamos honrados em ser considerados continuadores da obra de José Luís Fontenla Rodrigues, bom e generoso.

Bem haja.

 

BIBLIOGRAFIA MAIS SIGNIFICATIVA

Poesia

  • Sememas (Antologia Poética) (Braga, 1990), com o pseudónimo de João Padrão.
  • Tempo Terra khronos kai kairós (Antologia Poética) (Braga, 1992), com o mesmo pseudónimo.
  • Poemas de Paris e Outros Poemas (Braga, 1985) como José Luis Fontenla.
  • A Mátria da Palavra (Antologia de Poetas Galego-Lusófonos (Braga, 1990), como José Luis Fontenla e João Padrão.
  • “A ansiedade da influência -um poeta apresenta-se”, in Antologia de Poesia Lusófona (Braga,1994), como João Padrão.
  • Poemas Lusófonos.Carpe litteraturam (Braga,1997), como João Padrão e Luis Roïz.
  • Poemas para Cynara.(Non sum qualis eram bonae sub regno Cynarae) (Braga,2000), como João Padrão.
  • Sem título, Fragmentos sem nome e Metamorfose(s) (Braga, 2005), como João Padrão. Trilogia de livros de poesia.
  • Cadernos de Poesia do Clube Pickwick, como João Padrão, publicados de 2000 a 2005.
  • A hora do chá. Braga,

Teatro

  • Ítaca e outras peças de teatro (Braga,1989), como João Padrão. 12 pp.