A gestão do acordo

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  • O texto a seguir é a comunicação apresentada no último Colóquio da Lusofonia, no Auditório Municipal de Belmonte, o 8 de abril de 2017, foi redigido para um contexto mais ou menos académico.

Falar ou escrever de factos históricos longínquos sempre é mais fácil que falar dos mais próximos, mais recentes, especialmente quando quem intervém tem uma participação pessoal. Contudo, apoiando-me na experiência própria e alheia das últimas décadas do Movimento Lusófono Galego, vou ter o atrevimento de dar continuidade a uma categoria de textos inaugurada pela minha colega académica Concha Rousia ao referir-se ao fenómeno da “mudança de narrativa” como sinal de uma etapa recente no sistema cultural galego.

Começarei ilustrando processo da Iniciativa Legislativa Popular (ILP) através da citação de alguns momentos importantes que sirvam a modo de guia, não exaustivo, para compreender o processo.

O ano 2012 foi declarado na Galiza o ano de Valentim Paz-Andrade, sendo-lhe dedicado o Dia das Letras Galegas com atos de divulgação da sua obra, especialmente no sistema de ensino. Paz-Andrade é lembrado pelos que acreditamos na unidade da língua como escritor e Vice-Presidente na Comissão Galega do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, sendo Ernesto Guerra da Cal o seu presidente, que participou em qualidade de observadora em 1986 nos Acordos do Rio de Janeiro, com continuidade no Acordo de 1990, acordo agora em vigor na maioria dos países membros da CPLP.

Nesse ano de 2012, um reduzido grupo de pessoas do âmbito do Movimento Lusófono Galego, nomeadamente da Associação Cultural Pró Academia Galega da Língua Portuguesa e da Associaçom Galega da Língua, começou a elaborar uma proposta de Iniciativa Legislativa Popular (ILP) que recolhesse as reivindicações favoráveis à integração no espaço lusófono, coincidentes com a mais genuína tradição cultural galega. E tomou como critério a procura do mínimo comum denominador, em termos amplos, com uma redação em positivo, abrangente da maioria social, de modo que fosse um polo de atração de diversos setores sociais, que pudesse ser aceite por pessoas de todo o espetro político, não redigido contra outros pontos de vista, mas a favor de uma aproximação da Galiza em relação à língua portuguesa e a Lusofonia.

A proposta sofreu várias mudanças e correções, desde uma inicial que incidia só em aspetos linguísticos, a uma mais abrangente que incluísse três áreas de atuação essenciais: Ensino, comunicação social e relações internacionais. Neste processo de elaboração tiveram muito presente a ideia de não colidir com a legislação vigorante, que não fosse discutível em termos jurídicos polo Governo autónomo com sede em Santiago, nem polo Governo central de Madrid.

Depois de uma primeira visita aos grupos parlamentares, consultando sobre a sua disponibilidade para avançar com uma iniciativa deste teor, e com a resposta positiva de todos eles, em 16 de maio de 2012 os promotores entregaram a ILP no registo do Parlamento da Galiza, dando-se início ao prazo para a reunir o mínimo de 15000 assinaturas necessárias, tendo ultrapassado mais de 17000 apoiantes.

Em 9 de outubro de 2013 representantes das entidades promotoras da ILP mantiveram uma reunião no Consello da Cultura Galega, convocada polo seu presidente, para falar da futura lei, com personalidades representativas de entidades que, de longa data, vêm mantendo posições contrárias à unidade da língua, num movimento sustentado politicamente polos sucessivos governos galegos, que recebe o nome de “isolacionismo”. Dessa reunião tirou-se uma conclusão principal. A língua portuguesa deveria figurar no texto legal em qualidade de “língua estrangeira”, fora dos conteúdos e horários dedicados à “lingua galega”. Ser competente em galego não implicaria, portanto, qualquer competência em português. Talvez não perceberam que essa (auto)limitação implicava a sua (auto)exclusão de alguns processos de participação em foros lusófonos, que poderiam iniciar-se nos seguintes anos.

Em 21 de outubro de 2013, convocada polo Grupo Parlamentar do Partido Popular, teve lugar uma reunião na sede desse grupo político, que mantém a maioria absoluta no Parlamento, com o porta-voz da ILP, Xosé Morell, e quem isto escreve. O objeto da reunião foi negociar as propostas de modificação do futuro texto legal, acordando-se uma redação do projeto de que seria praticamente definitiva (e aprovada no Parlamento, por unanimidade, em 11 de março do ano seguinte). Todos os participantes nessa reunião assumimos que era necessário chegar a um entendimento, a um acordo, e isso conduziu a cedências e compromissos por ambas as partes.

Em 31 de outubro de 2013 teve lugar em Lisboa a II Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, em que se incluiu uma sessão sobre “Políticas de Língua na Galiza”, oportunidade em que se apresentou, em nome da Comissão Promotora da ILP, o “Parecer sobre o desenvolvimento da Lei Paz-Andrade”, cabendo essa responsabilidade ao meu colega Joám Evans Pim, de facto o principal redator desse contributo. O Parecer é um dos documentos mais importantes sobre política de língua na Galiza das últimas décadas, contendo diversas opções, com apoio em legislação galega, espanhola e europeia.

Em 11 de março de 2014 foi aprovada a lei no Parlamento, por unanimidade dos deputados. Cito declarações do porta-voz do Grupo Parlamentar do Partido Popular (com maioria absoluta no Parlamento), Pedro Puy Fraga:

«Ten o valor de que, por primeira vez nun texto lexislativo galego, se recolle o principio xeral do carácter estratéxico que ten para Galicia relacionarse co país veciño, co que nos unen multitude de lazos históricos, culturais e, desde a desaparición das fronteiras, económicos e comerciais»,

Em 15 março de 2014 a Comissão Promotora da ILP realizou uma declaração pública, aos pés do Museu do Povo Galego e Panteão de Galegos Ilustres, em Santiago de Compostela, sendo orador o porta-voz José Morell, de cujo depoimento cito o seguinte parágrafo:

«Para além dos objetivos que fixa a Lei, a unanimidade da tomada em consideração da ILP e da aprovação da Lei são signo dum novo e esperançado consenso linguístico no que a sociedade galega decide defender e desenvolver o seu milenar idioma além de pontos de vista conjunturais, partidários, e inclusive de identidade. E para isto a sociedade civil quer contar com todas as potencialidades históricas e de futuro do nosso idioma, que inclui a sua inegável dimensão internacional».

A lei foi publicada no Boletim Oficial do Parlamento da Galiza em 17 de março de 2014, entrando em vigor no dia seguinte.

Em 22 e 23 de junho de 2014 a AGLP, através da académica Maria Dovigo, iria participar numa reunião do Portal do Professor de Português Língua Estrangeira (PPPLE). Postos em contacto com o Diretor Executivo do IILP, Gilvan Oliveira e com o Governo galego, conseguiu-se que duas representantes do departamento de Educação participam nestas reuniões em Lisboa, sobre a elaboração de materiais para o PPPLE. A petição foi tramitada pola Academia Galega da Língua Portuguesa. As representantes do Governo galego foram acompanhadas pola nossa académica Maria Dovigo.

Em 26 de junho de 2014 a AGLP organizou em Santiago o Seminário “A Lei Paz-Andrade e as Políticas de Língua”, em que participaram entre outros, o Presidente da AGLP, José-Martinho Montero Santalha, o Embaixador Eugénio Anacoreta Correia e o Secretário Geral de Política Linguística, Valentín García Gómez.

Em setembro de 2014 produziu-se o primeiro programa “Aqui Portugal” em Ourense, conjuntamente com a TVG. Seguiu-se outro sob o título “Aqui Galiza”.

Em 9 de outubro de 2014 o Governo galego participou oficialmente na Conferência “Perspetivas da Língua Portuguesa” organizado na Universidade do Minho pola Comissão de Promoção e Difusão da Língua Portuguesa, dos Observadores Consultivos da CPLP, intervindo Valentín García Gómez em representação do Governo galego, com a colaboração da AGLP. Durante o processo de organização do evento decidimos que, contrariamente ao que tínhamos realizado na Conferência de Aveiro do mês de abril, e que eu tinha participado como orador, considerando a aprovação da Lei Paz-Andrade, e o compromisso do governo galego de desenvolver esse texto legal, era a altura certa de a AGLP ficar em segundo plano, entendendo tanto a organização do evento como a nossa Academia que, em nome da Galiza, deveria haver um só discurso, intervindo o representante do Governo galego, dando-lhe prioridade sobre outros intervenientes, o que foi possível com o conhecimento prévio e boa vontade dos embaixadores dos países membros da CPLP. Decidimos também que o presidente do Conselho da Cultura Galega fosse integrado no Comité de Honra dessa Conferência.

O SIGNIFICADO POLÍTICO DA LEI

A exposição de motivos, como a totalidade do texto, constituiu uma viragem de 180º no rumo na política institucional galega, porquanto situou a língua portuguesa e a integração no espaço lusófono, o que equivale dizer a CPLP, com desígnio estratégico da Galiza. Converteu em interlocutores aquelas entidades que durante as últimas décadas tinham sido objeto de exclusão sistemática por defenderem precisamente essa aproximação em relação à Lusofonia. Pretendeu iniciar uma nova etapa substituindo conflito por acordo e a colaboração, o que só podia qualificar-se como um passo positivo para todas as partes implicadas. Reconheceu-se o valor instrumental da língua da Galiza, e do português como variedade internacional do galego, definido no texto legal como “intercompreensível” com o português comum. Reconheceu-se no prólogo da lei o valor histórico e político da Comissão Galega do Acordo Ortográfico, que participara em qualidade de observadora nos Acordos Ortográficos de 1986 no Rio de Janeiro e 1990 em Lisboa, que serviu de precedente e justificação da Lei.

O facto de este texto legal se ter publicado no Boletim Oficial do Estado espanhol, entrando em vigor sem qualquer oposição do governo de Madrid, demonstrava o grau de consenso político que o texto legal conseguiu reunir.

SITUAÇÃO ATUAL NA COMUNICAÇÃO SOCIAL

Um dos aspetos mais importantes em que a proposta inicial da ILP ficou minorada foi a questão da livre difusão das TV e rádios portuguesas na Galiza. Durante a negociação, o governo argumentou que esse projeto seria impossível de aplicar em termos práticos, por motivos políticos. Como alternativa, e para conseguir um acordo, acedemos a incluir um artigo específico que implicasse os meios de comunicação públicos, especificamente a CRTVG.

Na prática, o resultado é muito diferente do esperado, pois além de algum programa conjunto entre a RTP e a TVG, pouco se tem avançado. Estamos assistindo atualmente à série ambientada no hotel Vidago. Porém na Galiza não foi possível assistir a alguns capítulos na sua versão original em português de Portugal. Não seria justo dizer que falta vontade da parte da direção da companhia de rádio e televisão galegas, mas a realidade também é teimuda ou teimosa, e cabe perguntar-se por que a legislação europeia, que promove e facilita a divulgação de canais de TV e rádio transfronteiriços noutros territórios europeus com igual ou semelhante modalidade linguística falada, é aplicável no centro da Europa e resulta impraticável entre Portugal e a Galiza.

SITUAÇÃO ATUAL NO ENSINO

Constatando que a o Departamento (Conselharia) de Educação falhava na informação aos centros escolares, as entidades cívicas mais implicadas com o processo de aplicação da lei, a Associação Galega da Língua (AGAL), Associação de Docentes de Português (DPG) e AGLP iniciamos, em 15 de fevereiro de 2016, durante três meses, o primeiro “Projeto Telefonemas”. Uma pessoa contratada polas entidades citadas contactou os centros de ensino secundário da Galiza. A sua tarefa foi informar dos passos a dar para oferecer a matéria de Língua Portuguesa na oferta educativa do centro para o ano escolar 2016/17, bem como encorajar para o fazer. No caso dos centros onde já se ministrava português – informação que a DPG solicitou ao governo autónomo sem sucesso-, pretendeu-se conhecer quantas turmas existiam, a possibilidade de criar um departamento de português, bem como abrir secções bilingues, isto é, lecionar matérias em português como história, tecnologia ou matemáticas. Este ano de 2017 imos pola segunda edição.

SITUAÇÃO ATUAL NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Não é segredo afirmar que a estratégia galega consiste em promover entidades públicas ou privadas para as integrar, em qualidade de observadores num primeiro passo, e membros de pleno direito, quando for possível, nas diversas organizações setoriais abrangidas pola CPLP. É o caso da Confederação Sindical Galega, ou do Consello da Cultura Galega, e em breve a Cidade de Santiago de Compostela, que ingressará na União de Cidades Capitais de Língua Portuguesa em qualidade de observadora, na assembleia geral desta entidade de caráter multilateral que terá lugar em Luanda, ainda durante este mês de abril de 2017.

Este sintagma nominal, o “caráter multilateral”, é uma das fórmulas que poderão vir a garantir o sucesso da CPLP internamente e em direção às sociedades dos países que a integram. E também em sentido inverso, muito especificamente no nosso caso, da sociedade galega em direção aos órgãos diretivos da CPLP. O sucesso da participação galega nesse conjunto internacional não será possível se for restritamente unívoco ou uniforme. Só tendo em conta a diversidade de pontos de vista existentes na sociedade poderá chegar o sucesso, em coerência com os acordos da Lei Paz-Andrade.

A posição de Portugal em relação à participação galega no espaço lusófono tem mantido uma geometria variável, por vezes apoiando e outras colocando entraves de diversa ordem. Permitam-me dizer claramente: É um assunto que devem resolver os portugueses. Os galegos não podemos nem devemos dedicar-nos a convencer as notabilidades ou os políticos do país vizinho em relação às suas escolhas. Não tenho dúvida de que a Galiza vai dar passos firmes em direção ao mundo de língua portuguesa. Neste processo será necessário estabelecer colaborações e parcerias. Quem têm um conhecimento mais próximo da situação galega sabem que a maior parte das iniciativas e os projetos que realmente são eficazes, que têm continuidade e resultados constatáveis além da propaganda mediática, dependem diretamente das entidades do Movimento Lusófono Galego. Todo o impulso, projetos e trabalhos do governo autónomo galego e as entidades que dele dependem em termos políticos e económicos, não vão substituir o trabalho das pessoas e entidades que levam décadas a desenvolver projetos de reintegração. Esta é uma realidade que não convém negligenciar.

GESTÃO DO PÓS-CONFLITO

Quanto aos setores do isolacionismo linguístico e cultural galego, tradicionais beneficiários do apoio institucional na Galiza, uma vez perdido o monopólio da “verdade académica” e a interlocução política privilegiada, toda vez que o discurso pró-lusófono ganhou o espaço político, colocando-se no centro do âmbito cultural, acabou de facto a etapa isolacionista na cultura galega e começa um momento diferente que, por lógica, levará ao que Concha Rousia denominava “mudança de narrativa”. Uma reinterpretação dos factos históricos que permita assimilar a realidade. Cria-se assim as condições para ultrapassar um conflito que marcou e condicionou enormemente as capacidades e possibilidades de desenvolvimento da língua portuguesa, como língua nacional da Galiza, e da própria cultura galega.

Isto não significa que todo o trabalho esteja feito. É preciso pensar no pós-conflito com generosidade e visão de país, por forma a facilitar a integração da maior parte dos agentes culturais neste novo contexto, neste novo discurso, sem necessidade de trazer à tona os erros do passado. Sempre é mais fácil manter-se nas trincheiras e reclamar a própria coerência antes que compreender as posições contrárias.

Nesta situação, a criação de espaços de convivência faz parte da lógica de construção do país, condição para ultrapassar o conflito e deixar atrás a etapa de divisão, para romper os muros que, há menos de uma década, pareciam indestrutíveis. A geração dessa dinâmica permitirá pensar em atingir um novo patamar em que a língua e cultura da Galiza estejam em condições de concorrer com o castelhano, no território em que nasceu a língua portuguesa, com garantias de futuro.

Muito obrigado.

Auditório Municipal de Belmonte.

Belmonte, 8 de abril de 2017