“Temos um problema com os filólogos”, disse-nos um alto dirigente do Partido Popular poucas semanas depois da aprovação da Lei 1/2014 de 17 de março Para o Aproveitamento da Língua Portuguesa e Vínculos com a Lusofonia, comummente conhecida como Lei Paz-Andrade.
O/s filólogo/s em questão parecia/m sentir-se ameaçado/s por esta decisão unânime do Parlamento galego aprovando a Lei que inclui, entre outras medidas, a introdução do ensino do português nos centros escolares da Galiza “dentro das competências em línguas estrangeiras”. Tendo a certeza de que, no âmbito da política, os razoamentos e as decisões não se regem pelo método cartesiano, a pergunta que nos fazíamos era se o Governo autónomo cumpriria o compromisso connosco, os promotores da Iniciativa Legislativa Popular (ILP) Valentim Paz-Andrade, e com os deputados do Parlamento atuando em nome do Povo galego, ou se teria mais força a inércia e os interesses criados a favor de um grupo de professores bem posicionados na Universidade galega e de instituições negacionistas da ideia de uma Galiza lusófona.
É preciso esclarecer, mais uma vez, que a Lei Paz-Andrade pretende (ou pretendia) representar a vontade, sensibilidade e aspirações de uma grande maioria da sociedade galega. Que não é (ou não era), portanto, uma espécie de programa ideal do reintegracionismo linguístico galego, e que a fórmula de «língua estrangeira», indesejada pelos promotores da ILP, foi uma solução de compromisso com os legisladores, como resultado da falta de apoio para outras fórmulas entre os deputados. Foi devida, nomeadamente, à negativa absoluta de membros destacados do sector oficialista a aceitar conteúdos de língua portuguesa dentro do horário e currículo de língua galega. “Nem uma hora à semana”, foi dito. Mesmo assim, com toda a sua imperfeição e condicionantes, pensávamos que a lei tinha, entre outras virtudes, a de facilitar a abertura de espaços de diálogo e entendimento entre partes claramente diferenciadas do Campo Cultural Galego. Que serviria para abrir uma nova etapa mais participativa e aberta, e que só ficaria à margem desse entendimento quem voluntariamente desejasse estar da parte de fora. Os factos parecem indicar que estávamos iludidos de mais, ou talvez enganados.
Recentemente temos visto em vários foros da internet, especialmente no Portal Galego da Língua, discussões sobre a hipótese de um “espaço de dilálogo” entre reintegracionismo e isolacionismo (admita-se esta terminologia, por razões práticas). E parece ser uma linha de trabalho preferente da Associaçom Galega da Língua, a teor de declarações ultimamente divulgadas. Algumas pessoas julgam que o reintegracionismo deveria legitimar instituições que, a teor das opiniões de outras, nada têm a ver com os princípios e as práticas da AGAL. Ou talvez sim. A propósito disto pode resultar útil fazer memória, lembrando que na década de 80 do século passado se repetia com muita frequência, nas convocatórias das assembleias desta associação (sou membro desde 1983), o tema da “concórdia normativa”. Reiteradamente, insistentemente, o tema absorvia grande parte do tempo das reuniões dos sócios à espera do momento oportuno, nomeando ‘representantes’ e discutindo a fórmula para um diálogo e um entendimento com o tandem ILG-/RAG… que nunca chegou.
Temos visto, nos últimos 35 anos, iniciar-se esse tipo de debates várias vezes, e apagar-se o mesmo número de ocasiões por falta de eco ou de resposta. Estamos certos que também as iniciativas de 2019 respondem às melhores intenções dos seus proponentes. Contudo seria muito conveniente não perder de vista a realidade.
Parece pouco discutível que o facto mais negativo em matéria de política linguística na Galiza dos últimos anos é o denominado Decreto do Plurilinguismo, e os efeitos muito negativos que está a produzir na comunidade linguística galega, denunciados recentemente num relatório do Conselho da Europa. Em sentido positivo e com qualidade de motor de consensos, julgamos que só cabe citar a Lei citada no início deste artigo. Esta pode, podia ou poderá ser o melhor motivo, lugar de encontro e ponto de partida, bem claro e público dos que estão a favor do galego como língua nacional e internacional. Porém, a sua fraca aplicação parece indicar que não interessa a quem vive na comodidade de uma posição de vantagem. Que outro teste podia ser mais confiável como prova da vontade de entendimento e colaboração dos sectores que detêm o poder académico e político?
Assumimos, como cidadãos com espírito construtivo, que algum tipo de convivência parece desejável com quem mantém posicionamentos divergentes dos nossos, numa sociedade aberta, madura e democrática. Ora bem, um esquema que inclua o reparto equitativo de culpas como se estivessem em igualdade de condições os excluídos e os que usufruem do apoio institucional, esquecendo a discriminação patente, seria começar da pior maneira possível. É preciso dizer também que, nos casos em que o poder é exercido exclusivamente por uma das partes, como é a situação existente no Campo Cultural Galego, corresponde aos órgãos oficiais dar os passos oportunos para acabar com esse apartheid. Inverter os termos da questão, como já temos visto fazer, colocando a responsabilidade do lado dos prejudicados, dos silenciados, dos excluídos, seria outra perversão discursiva a ilustrar a degradação dos seus anunciantes.
Existem várias fórmulas e modelos para dar passos em positivo, e oxalá vejamos isso acontecer. Há quem diga que já estamos numa transição. Transição à espanhola, poderia dizer-se, em que tudo parece mudar mas tudo continua no mesmo lugar. Não é preciso fazer um grande esforço para demonstrar que o Governo autónomo tem dedicado mais esforço à propaganda que à aplicação e desenvolvimento legislativo (inexistente) da Lei Paz-Andrade. Por dizê-lo em termos positivos, se dermos por suposto que a Lei ainda tem algum futuro, a política que a acompanha tem muito margem para a melhora.
A posta em andamento de um processo de mudança que contribua a resolver os problemas criados por um grupo reduzido de filólogos não depende de decisões tomadas em espaços geográficos longuínquos. Não é tão difícil nem inverosímil. Este é um problema interno galego que, aliás, por um critério de prudência e de pudor, não deveria ser a levado às capitais de outros países. E mesmo assim, há quem se esforça em exportar a Lisboa e ao Rio de Janeiro a guerra contra a unidade da língua, pondo em risco mais do que é capaz de calcular.
Enquanto se imagina uma transição incerta na questione della lingua, sem que nenhuma das figuras do regime ortográfico de 1983 pareça querer exercer o papel de um Adolfo Suárez, as entidades lusófonas galegas só podem e devem continuar a trabalhar com espírito cívico e construtivo, com vocação de serviço público, exercendo o mesmo papel que têm vindo a desenvolver com relativo sucesso nos últimos tempos, dando continuidade à melhor tradição da cultura galega, contribuindo a uma comunidade linguística galega viável e em situação de normalidade. A mesma normalidade de qualquer outro país europeu de referência.