A voz da saudade

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In memoriam

Joaquim Fernandes Pardo

 

Tive o imenso privilégio de ter conhecido e amado o meu bisavô materno, Joaquim Fernandes Pardo, também conhecido como o Jaquim do Prússio, um homem extraordinário nado em 1890 em terras chantadinas. Aos noventa e sete anos morreu no Paço dos Tangueiros, uma casa de aldeia em Pousada, freguesia de Chantada.  Ainda hoje se podem ler as suas iniciais na aira, J.F.P. gravadas na pedra do hôrreo que mandou construir em 1964, a poucos metros do carvalho que deixou medrar e não cortou para fazer uma guilhada, o totem da casa. Quando morreu eu tinha quatorze anos, e obviamente guardo muitas lembranças dele. De fato, numa das primeiras lembranças da minha infância estamos os dous juntos na cozinha, ele ensinando-me a pronunciar o som do erre e eu repetindo-o. Era uma pessoa muito silenciosa, mas em cada palavra que emitia havia uma sabedoria especial, profunda e humana. Falava sempre muito baixo, quase nunca erguia a voz, mas não precisava de fazê-lo, era capaz de falar estando calado. Sentava sempre no mesmo lugar, por trás da cozinha de ferro, quase sempre de boina preta e jaqueta de veludo, e costumava a pousar o queixo por riba dos dous punhos, um por cima do outro. Esse silêncio arredor do seu corpo abraiava-me, havia qualquer cousa mágica impossível de definir, só se podia sentir, e eu tinha a sorte de ser o seu bisneto.

Com o tempo foi perdendo a vista, mas enquanto sabia que eu andava perto, o silêncio desaparecia e as palavras nasciam, palavras enchoupadas na saudade do agarimo, palavras vindas dum coração nobre e generoso, enormemente sensível.  Escoitar falar galego o meu bisavô, era escoitar uma gaita tremendo, ouvir o leve rumor dum regato, o borbulhar da água nas pedras. Era uma música tão formosa que acho que nunca voltarei a escoitar ninguém falar a nossa língua desse jeito. Cada sílaba dos seus lábios namorava os ouvidos, havia uma saudade terna e húmida, as sílabas quase eram lágrimas derramadas, e aquela voz emocionava-me, fazia com que amasse com paixão a sua maravilhosa origem, humilde e transparente, cheia de grandeza e de verdade.

Sempre dizia que tinha dez anos do outro século, reafirmando com orgulho a sua velhice e a sua experiência, mas nunca o ouvi dizer que era um velho, apesar da sonoridade carinhosa da palavra galega, muito diferente com o som áspero e desprezativo da palavra castelhana. Ele não era nem sequer um velho, essa venerável instituição tão nossa, ele tinha dez anos do outro século e por enquanto ainda estava ali sentado num banco de madeira, a tornar arte o silêncio e a palavra, dando lições humildemente quando for necessário. E as lições eram para não esquecer. Uma das lições era a lição da língua, a lição do polvo. Quando comíamos polvo na casa, de preferência aos domingos, empregávamos todos o vocábulo pulpo. Ao escoitar-nos falar, corrigia-nos com paciência e carinho: nom vos é pulpo, que é polvo, era o que dizia meu pai. Graças ao meu bisavô soube antes do que qualquer dicionário, que a palavra galega era polvo e não pulpo, embora ninguém empregasse a palavra correta. Pouco a pouco naquela casa de Chantada começou a empregar-se a palavra polvo, a mesma que hoje escoitam os meus filhos. Após o polvo também vieram outras palavras genuinamente galegas, por exemplo carpins ou calças, palavras hoje de uso comum na minha casa.

Uma outra lição era a lição da inteligência e do retrouso. O meu bisavô tinha uma rica coleção de expressões enxebres. Mas a mais salientável dentre todas elas era o ar e o vento !, pronunciada com uma entoação única. A minha mente de criança não percebia bem aquela expressão estranha, e demorei algum tempo em compreendê-la. Mas se pode existir uma expressão mais ajeitada para definir o cepticismo à galega, é a mencionada acima. Não havia nada que pudesse enganar aquela aguda inteligência, e a rica sabedoria popular tornava a reviver expressões antigas, herdadas de pais a filhos, e onde ainda brilhava a pureza do idioma. Com efeito, mais tarde também compreendi que em galego não é aire senão ar.

Aquele retrouso era tão subtil que demorei anos em compreender o sentido de muitas frases aparentemente convencionais, mas com um significado oculto segundo a situação e o contexto. Sob aquelas breves frases podia contemplar um sentido do humor privilegiado, uma ironia poderosa e inesgotável, uma síntese envenenada de inteligência e sorriso, a idiossincrasia galaica em movimento. O mais formidável era a capacidade criativa, a fonte inesgotável de novas frases, o rio sem fim do retrouso. Outro exemplo disto era uma frase genial que sempre lhes dizia aos seus caros bisnetos quando se queixavam da dor nas costas, depois de ter apanhado as patacas. Como ainda éramos umas crianças, sempre nos dizia: nom vos queixedes, que vós ainda nom tedes cadris.

Mas o seu excelente inteleto também era capaz de fazer cousas mais sérias. Sempre admirei o fato de com oitenta anos e doente, ele ditar a um advogado um complexo e muito detalhado testamento, só por causa do frequente contato com letrados, tendo em conta a pouca instrução que se recebia na altura. Tinha uma memória prodigiosa, sabia ler e escrever, conhecia a matemática elementar, e costumava lembrar a sua época em Barcelona fazendo o serviço militar, mencionando muitas palavras em catalão e explicando o seu equivalente galego. Barcelona ès bona si la bolsa sona, acabava dizendo.

O meu bisavô, além de ilustre labrego, também foi matachim, e ensinou-lhe a sua arte com os porcos ao seu filho, meu avô. Até aos quatorze ou quinze anos trabalhou o coiro na fábrica familiar, situada no Paço dos Tangueiros, uma ampla casa de lavradio com cortes para os animais, fábrica de coiro e numerosas terras, comprada polo seu pai em Pousada, no ano de 1901. Com efeito, lendo uma História da Galiza descobri que Chantada fora um dos núcleos importantes a meados do século XIX na fabricação do coiro artesanal galego, infelizmente dissolvida perante a concorrência da produção industrial catalã.

Quando falava da sua infância, muito dura ao serem muitos irmãos por causa de dous casamentos diferentes, falava de jeito tão autêntico e simples, que aquele sofrimento semelhava qualquer cousa normal, algo que tinha de ter acontecido e do que cumpria tirar algum proveito, alguma ensinança. Sempre falava de como o pai lhes tinha que pechar a artesa do pão a ele e aos irmãos, obrigado polas circunstâncias. Moita fame passei, dizia sem tristeza e com sinceridade, com uma autoridade moral que nenhuma palavra poderia definir.

Aquela fame sempre foi para mim qualquer cousa heróica e nobre, muito longe da fartura de hoje, na que os estômagos estão cheios mas as almas vazias. Com o decorrer do tempo aprendi que o principal alimento não é o pão, e que há outras cousas mais importantes para a vida de um ser humano. São estas cousas as que hoje faltam, em troca de uma fartura individualista incapaz de substituir o essencial, a comunidade e o afeto. Com fame ainda se pode ser feliz, sem comunidade e sem afeto é impossível.

A última lição do meu bisavô foi a sua conduta.  Sempre admirei a sua conduta impecável ao longo da sua vida, um sentido da justiça muito desenvolvido, mesmo muitas vezes virado contra os seus próprios interesses, e a ausência absoluta de motivações espúrias, por exemplo o dinheiro, os bens materiais, o ego ou a ambição pessoal.

A democracia galega que todos desejamos, essa nova sociedade igualitária e fraternal, construída em redor das nossas tradições e da nossa cultura, esse novo sistema político e económico, não pode ser uma entidade utópica, inexistente, do grego não lugar, mas uma entidade real e viva, inspirada em pessoas reais como o meu bisavô e muitos outros, pessoas exemplares, autênticos modelos de virtude. Para atingirmos a nossa legítima e ineludível independência coletiva temos de nos inspirar nos nossos ilustres devanceiros, na sua grande parte gente  do meio rural, chegando até aqueles que lutaram pola sua Terra a começos do século XIX, tendo como única ideologia o amor pola Galiza, renunciando ao apelo da coroa de Espanha.

Reivindicar o meio rural é pois reivindicar a essência da Galiza: patriótica, espiritual e cultural, para além de folclorismos e mitificações, mas também para além de um lugar geográfico determinado. O meio rural ainda preserva, e preservou – nomeadamente no começo da espanholização maciça -, a partir de 1833, a essência identitária, antigamente compartilhada polo conjunto da população de jeito quase unánime. Repovoar as aldeias galegas abandonadas não é porém o único repto. Existe um repto ainda mais importante: coesionar o País em redor da língua e da identidade, o mais enxebre possíveis, ao cabo património de todos. Enxebre quer dizer obviamente galaico-português.

O ideal da freguesia galega não é tanto o retorno à natureza, em boa parte inevitável, mas sobretudo a liberdade, a superação definitiva do longo colonialismo linguístico, político e cultural. Por outras palavras, recuperarmos a essência da Galiza significa recuperarmos a possibilidade de uma freguesia soberana, de uma organização política, social e económica baseada na fraternidade, na própria cultura e no auto-governo. Freguesia soberana ou bairro soberano. Estamos a falar de aldeias, vilas, cidades e comarcas galegas soberanas, tendo como alicerce o modelo histórico e tradicional das nossas aldeias. A aldeia é o espaço moral e político onde construirmos a Galiza: o espaço de convívio, de fraternidade e de generosidade entre as pessoas, sob a sombra de um carvalho ou no meio de uma praça. A nossa elevada dispersão geográfica é o nosso mais grande bem, bandeira perpétua de progresso e liberdade, um universo sempre cheio de novas possibilidades políticas e económicas, uma célula indestrutível de soberania e dignidade.

 

Os nossos ilustres devanceiros não aparecem nas enciclopédias, salvo as personagens que a História decide lembrar: escritores, artistas, políticos, empresários, inventores… Mas o certo é que não haveria páginas suficientes para descrever a sua grandeza e singularidade, baseadas na cátedra incontestável da experiência e da  arte da linguagem. Condenados a um injusto anonimato, somos nós os que devemos reivindicar a sua biografia individual e coletiva, autênticos tesouros vivos da cultura camponesa e popular, poços sem fundo da riqueza do idioma e da sabedoria tradicional, esses traços de identidade que ainda nos definem como Galegos.

O bisavô viveu sempre com pouco e quase sempre na sua casa de aldeia, o velho Paço dos Tangueiros do século XIX, a casa da minha infância e da minha adolescência, consagrado ao cuidado da terra e da sua família. Uma das cousas das quais mais gostava era ver medrar os morteiros, e sempre tinha algo de comida no peto da sua jaqueta para algum gato famento. Era um ser humano entranhável a exalar humildade e sabedoria, bondade e agarimo. Nunca esquecerei o som da sua voz, essa saudade húmida e indescritível, essas lágrimas derramadas polo coração da ternura.

 

Nota: Também gosto de grafar bissavô com dous esses, representando na dupla grafia o sentido do prefixo e o passo do tempo

 

Máis de Manuel Meixide Fernandes