A urna do povo

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Tenho uma avó que nunca votou. Do início da suposta democracia no ano de 1978, até o ano do seu falecimento em 2008, nunca votou em ninguém. Tinha uma frase que sempre empregava para falar dos políticos profissionais: Som-che todos iguais. Tenho um avô que sempre votou no P.P. Do início da suposta democracia no ano de 1978, até o ano do seu falecimento em 2007. Os meus dous avós maternos casaram no ano de 1941, ele tinha dezanove anos e ela vinte e um. Apesar desta profunda divergência quanto a eleições periódicas, coincidiram sempre num ponto ao longo de mais de sessenta anos juntos, nunca pelejar por causa das urnas. O respeito mútuo neste assunto foi sempre a norma prática até o final do seu convívio. Nunca ouvi a mais mínima controvérsia a respeito de partidos políticos, cada um respeitava plenamente a decisão do outro.

A vinte e um de outubro de 2016 houve na Galiza eleições autonómicas. O autor deste artigo esse dia não foi votar e ficou na casa, seguindo o imperativo categórico da sua avó. Nos últimos anos nunca vou votar, mas é um não votar consciente, não abúlico. Cumpriria analisar bem e em detalhe o ceticismo popular galego, aquele que pôs em prática a minha avó desde o ano de 1978. Este ceticismo popular tão nosso é por enquanto a mais saudável postura política, e provoca uma abstenção positiva e consciente, uma autêntica pré-revolução. Sabemos que a Galiza é tradicionalmente o território do Reino de Espanha com as maiores taxas de abstenção, mas isto quase nunca se torna público. Este dado demonstra que somos um povo inteligente, ao contrário do que algum pessoal disse sobre a nossa gente após o resultado das últimas eleições galegas, desprezando os nossos compatriotas.

Uma das causas deste velho desprezo cara o voto dos Galegos, é o mundo muito ideológico no que vivemos. Um mundo no que cumpre ser de direita ou de esquerda. Mesmo alguém que se considerar de centro é alguém sem ideologia, alguém sem personalidade. O voto galego de direita, plenamente legítimo, é atacado com frequência pola esquerda, nacionalista e espanholista. Mas isto quase nunca acontece inversamente. Quando Manuel Fraga perdeu a maioria absoluta em 2005, ninguém da direita galega foi amolar os votantes galegos por não votarem de jeito suficiente no PP ou por votarem na esquerda ou no nacionalismo.

Infelizmente, o mundo da ideologia divide as pessoas e os povos, e permite a alternância no poder durante décadas sem que nada vier a mudar significativamente, quer dizer, permite manter a velha estrutura hierárquica do Estado e a posição de subordinação que nela corresponde ao Povo. Si el voto cambiase algo, lo harían ilegal, diz Eduardo Galeano recolhendo a frase que viu escrita nalguma parede da América do Sul. Então o erro, aliás muito comum no planeta, não é votar na direita ou no P.P., como argumenta a esquerda, mas o simples facto de votar em alguém. O voto perpetua o sistema de dominação, eis a triste, mas ajeitada conclusão.  Ora  bem, se nas últimas eleições autonómicas galegas houve quase 37% de abstenção e nas anteriores ultrapassamos 45%, somos um povo inteligente, muito inteligente.

Uma outra questão, sem dúvida interessante, seria saber por que a Galiza vota maioritariamente no PP. Na minha opinião, o PP da Galiza, muito diferente do PP espanhol, representa o tradicionalismo que por sorte ainda subjaz na mentalidade galega . Este tradicionalismo, este galeguismo fraguista foi o que conquistou o poder durante dezasseis anos e o que segue a conquistá-lo no presente. O único galeguismo tradicionalista, uma vez que CG desapareceu do Parlamento galego, foi o PP da Galiza. O erro da esquerda, espanholista ou nacionalista, é tratar o País como uma abstração, como um sujeito potencialmente ideológico, sem se importar com as suas tradições, com a sua idiossincrasia ou com a sua religião. Este afastamento do Povo, esta carência de intercompreensão faz com que os Galegos, sobretudo no rural, procurem o sentimento de tribo ali onde se achar, e na esquerda não o acham, muito polo contrário encontram lá com frequência um intelectualismo incompreensível, um intelectualismo que mesmo se torna às vezes desprezativo com o próprio povo.

Acima afirmei  que é um facto positivo o tradicionalismo ainda existir na mentalidade galega, como poderoso sinal de identidade, incluída a forte presença da religião  cristã, porquanto é sinónimo de valores, de convívio, de identidade comum, de união e de fraternidade entre os indivíduos. Estes valores não são os valores da direita nem da esquerda, são simplesmente os valores. E ao serem os valores são precisamente os valores revolucionários, os valores anticapitalistas e antiestatais, muito para além de considerações bipolares e ideológicas que quiçá quiserem apropriar-se deles. O Partido Galeguista do século passado, apesar da sua vocação republicana, nunca renunciou ao tradicionalismo, e se calhar esta dupla natureza foi a que permitiu o seu grande sucesso popular.

Poder-se-ia dizer que os Galegos da época da autonomia pós-franquista são de direita ou conservadores, como arquétipo ideológico do País, e de facto o arquétipo emprega-se dentro e fora da Galiza. Mas eu acho errado. O votante galego médio de fins do século XX e de começos do século XXI não é um votante formado ideologicamente, o seu voto é habitualmente o voto da tribo, nas eleições autárquicas, autonómicas ou estatais. Ora não é o seu erro se o nacionalismo político, organizado e consciente, herdeiro  do galeguismo histórico, não é capaz de criar uma alternativa política ajeitada para o povo galego, quer dizer, uma alternativa polítiva que tiver em conta o sentido de tribo, o imprescindível tradicionalismo. Isto significa a urgente e radical reformulação do nacionalismo, para além da clássica bipolaridade esquerda-direita, como movimento social e também a nível institucional. O nacionalismo e o galeguismo não podem ter qualquer traço ideológico, o nacionalismo e o galeguismo são o amor polo País, são em essência algo transideológico, como o próprio reintegracionismo.

O nacionalismo oficial chegou a reduzir o galeguismo  ao simples status da língua, à única tarefa da recuperação linguística. Mas o galeguismo é muito mais do que isso, o galeguismo é a retranca, é o amor pola horta, é a cultura do nicho, a cultura do além, é a cultura da saudade e do humor, a cultura das festas populares, a cultura dos santos e das procissões, é o culto da terra e dos animais como sustento, como o alfa e o ómega… Em resumo, o galeguismo é  toda uma cosmovisão, ainda profundamente alicerçada no mundo rural, no mundo camponês, apesar da Modernidade e da industrialização. Se esquecemos tudo isto, ou ainda pior, se o desprezamos, estamos condenados ao fracasso. Espanha ainda está presente, lá no fundo desse imaginário popular galego, lá no fundo do nosso tradicionalismo?.  Com certeza. Às vezes de jeito positivo e outras de jeito negativo, mas Espanha como fonte de poder, como realidade preexistente, como entidade quase divina e imprescindível, está sempre lá, muito bem utilizada polo PP galego. É muito lógico após a espanholização maciça encetada no século XIX e aperfeiçoada ao longo do século XX, durante o apogeu do Estado capitalista.

 

Já quase ninguém lembra que antes do nascimento da Espanha atual, da Espanha liberal, antes de 1833 na época da Francesada, os nossos labregos, organizados em milícias populares pola Junta Suprema do Reino da Galiza, deram uma lição de soberania popular e de patriotismo ao serem os primeiros em derrotar as tropas imperiais de Napoleão. Mas o realmente salientável não foi isso, não foi a bravura heroica do nosso povo, mas a renúncia a seguir lutando fora dos lindes da sua pátria. Por outras palavras, o seu País já estava libertado, e o País nessa altura não se chamava Espanha ou coroa de Espanha, chamava-se simplesmente a Galiza. É claro que nessa época a nossa mentalidade tradicional estava isenta do que hoje denominamos espanholismo, mas também estava isenta sem dúvida do que hoje poderíamos denominar nacionalismo galego, entendido como doutrina ideológica.

Os nossos ilustres antepassados, após a vitória, voltaram ao seu trabalho quotidiano, às suas leiras, às suas vacas e aos seus arados. O seu patriotismo simples é o patriotismo do amor pola terra natal, onde estão soterrados os devanceiros, é a pátria das fontes e dos prados, a pátria dos cruzeiros e das carvalheiras, a pátria da língua comum e da gaita comum, a pátria do sustento material e não material. A pátria dos libertadores da Terra era uma pátria pré-liberal, uma pátria não ideológica, a antítese do Estado-nação. O nacionalismo moderno, incluído o galego, ao pretender tornar-se emancipador, o que faz é reproduzir o velho modelo da opressão, o modelo do Estado liberal. Para ele não pode existir mais independência do que a independência dentro do Estado, dentro de um novo Estado-nação. A Galiza da altura, sob o governo dos concelhos abertos, emancipada da invasão napoleónica e da influência da coroa espanhola, foi realmente idependente, até que o projeto uniformizador e imperialista que redigiu a Constituição de Cádis de 1812 foi pouco a pouco e de jeito violento tornando-se hegemónico. Foram poucos anos, mas anos de independência real num clima político convulso. Infelizmente, com a chegada do Estado liberal também chegou o doutrinamento maciço, o espanholismo para todos.

É ainda possível um galeguismo emancipador na nossa época? E aliás, seria ainda possível no século XXI, em plena globalização, na era do peak-oil, um voto realmente revolucionário, para além da miragem das ideologias?. É  de facto possível ultrapassarmos a velha ditadura liberal, a sucessão infinita das legisladuras, mediante as próprias ferramentas do sistema, mediante o sufrágio universal?. Poderia existir algures esse voto ilegal, de que fala Galeano? . Sim, se calhar se restaurarmos o galeguismo, não entendido como ideologia, mas como pensamento e sentimento democrático e popular. Um pensamento e sentimento capaz de desemascarar a História vigente, capaz de desemascarar a dicotomia civilização / ruralidade; cidade / aldeia; cidadania / indigenismo; progresso / atraso; riqueza / pobreza; bom / mau; formoso / feio; culto / bruto ou bárbaro; lengua española / gallego; España / Galicia. A possível cura do nosso estigma, o velho colonialismo.

Este pensamento e sentimento precisaria de uma empatia íntima entre todos os partidos que fossem plenamente galeguistas ou tradicionalistas, e o voto do povo voltaria para o povo sob a forma de poder, de poder popular. Uma única candidatura galeguista, uma fusão de partidos, ou várias candidaturas galeguistas, tanto faz, o objetivo seria sempre o mesmo: a vitória eleitoral como legítimo preâmbulo da autogestão. As instituições estariam ao serviço da democracia, e o Parlamento autonómico-estatal teria que se dissolver em pequenas assembleias comarcais e locais. Para atingirmos esta verdadeira revolução, cumpre uma nova pedagogia galeguista, na sociedade e nos partidos políticos. Iniciarmos este caminho, a partir do muito são ceticismo galaico ante a realidade existente, obriga-nos a esquecer o mundo ideológico, em que a civilização é sempre superior ao espírito popular. Deem as pipas ao povo, só ele as sabe guardar, dizia o grande Zeca.

 

Máis de Manuel Meixide Fernandes