Do difícil ao doado

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P. é um conhecido atleta de elite que, ao contrário que os mais dos seus competidores, diz nom padecer demasiado nas provas; o seu gesto, de facto, nom semelha tam desencaixado, e nos prévios das competiçons nom dá impressom de ser vítima da ansiedade que aqueixa o profissional de alto nível. Nom sofre logo nas corridas? Pergunta-lhe um jornalista. “O certo é que nom”, diz ele, “porque já sufro muitíssimo nos adestramentos.”

R. é um moço recém saído da adolescência. Vem de conseguir um título em informática com notas deslumbrantes, destripa e blinda computadores com velocidade de vertigem, e várias empresas ponteiras brigam para o contratar. Os parentes maiores, criados noutro tempo, perguntam-lhe se nom se sente abafado nessa fusom quase permanente com as máquinas. Ele responde que se criou com elas, e desde a infáncia compensou a desatençom dos pais e a falta de amigos pesquisando a fundo no seu quarto solitário tudo o que um computador podia oferecer.

B. é umha jovem colombiana que acaba de aterrar na montanha galega na procura de trabalho. Vive num lugar avelhentado e corroído polo pessimismo, com um altíssimo índice de emigraçom juvenil e umha taxa também alta de suicídio, onde a queixa e o laio som o combustível de qualquer conversa. Perguntam-lhe se nom sente que chegou a um sítio triste, e responde francamente, sorrindo: “nom, é um sítio precioso. Está mui limpinho e ordenado, nom há violência como na Colômbia e os trabalhadores até tenhem quartos para ir aos bares a diário. Nada que ver com o que tivem que passar noutros lugares.”

Nas últimas três décadas, os projectos rupturistas enfraquecêrom-se no mundo occidental e -no que é causa e consequência ao mesmo tempo de tal processo- o modelo que os sostinha, o militante abnegado e disposto a retar a adversidade, foi-se esvaecendo como um espectro. Os detractores do modelo, maiormente devotados à política institucional e à participaçom ansiosa nas redes, afirmam que nada se pode soster no padecimento: pedir entrega, disciplina e abnegaçom em troca de nada, ou de quase nada, nom é bom negócio. “Sodes umha fábrica de queimados”, adoitam dizer-nos.

Se algum movimento emancipador vai tomar corpo nestes tempos violentos e de sentir catastrofista, será movido por esse alento entusiasta; por essa força poderosa que irrompeu nalgum dos melhores momentos do nosso povo.

Tenhem parte de razom. Os grandes emprendimentos humanos bebem sempre da felicidade e a alegria, e dessa “acçom sem actor”, fluída, sem sujeito e sem esforço, que apenas os orientais soubérom captar na sua linguagem paradoxal, e que tam bem encarna no combate sem fúria e nos golpes desapaixonados de algumha das suas artes marciais. Se algum movimento emancipador vai tomar corpo nestes tempos violentos e de sentir catastrofista, será movido por esse alento entusiasta; por essa força poderosa que irrompeu nalgum dos melhores momentos do nosso povo, como na campanha pro-estatuto de 1936 ou no movimento Nunca Mais.

Porém, a facilidade nom nasce sozinha, e o talento nom se pole sem estrita disciplina. Para vivermos e gozarmos o doado, como o desportista, o informático e a obreira deste artigo ilustram, temos previamente que curtir-nos no árduo. O independentismo procede de cinco décadas de estreitezes do trabalho de formiga, dos recursos escassos suplidos com criatividade e pensamento, do silenciamento roto com originalidade, da violência policial e carcerária desenhada para desintegrar-nos e humilhar-nos, e respondida com enormes doses de paciência e confiança em nós e no País inteiro. Como parte da nossa comunidade emigrante do passado, que acumulou além mar o capital que logo investiu em modernizaçom agrária, escolas, melhoras paroquiais ou iniciativas galeguistas na Terra, a nossa riqueza é discreta e longamente amassada. Nasceu dum processo difícil que se desenvolvia com a esperança posta num futuro mais doado. O nosso capital nom é dinerário, senom cultural e humano, e nesta dimensom específica nom tem na Galiza demasiados equivalentes. Por isso espera para ser investido politicamente e dar todo o fruto que merece.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]