Uma escola na floresta

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Acabadas as aulas, neste início do mês de julho, arrumo mentalmente todas as vivências dos nove meses que passaram desde setembro, tentando resistir ao abatimento que provoca essa não escrita lei da insatisfação perpétua do corpo docente. Está tarde de vento e sol em Lisboa, depois do dia mais caloroso do ano. Passei boa parte da tarde a enredar os meus pensamentos contemplando a agitação constante da roupa branca que tinha no estendal e ouvindo o vento a fungar no telhado. Adoro estas imagens em que a luz se mistura com o som e adoro poder perder tempo, mais com esta inútil e doméstica imagem de roupa branca a agitar-se como se fosse uma bandeira branca que me pede um armistício.

Com esta boa disposição anímica começo a anotar, para variar, as cousas boas que vivo na escola, sem vontade de teorizar, só para arejar a alma e as suas imagens. Como aluna só conheci a escola galega e como professora só conheci a escola portuguesa. Comecei o exercício da minha profissão em 2000 e, se poderia contar as muitas frustrações que carrego no coração nestes anos de cortes nos dinheiros e na liberdade das escolas, hoje não, hoje que tenho nos olhos o constante movimento do vestido branco inundado da luz e o vento de Lisboa, faço memória das brilhantes vivências que, apesar de tudo, me deu a escola, por exemplo as relações entre colegas, que costumam ficar invisíveis nas reflexões que ouço e leio sobre a nossa instituição. Amo o convívio ímpar de pessoas que foram formadas em diferentes métodos e tradições de procurar a verdade, as muitas maneiras de narrar as relações, seja falando da fotossíntese, seja interpretando a história do amor infinito de Pedro e Inês do canto III dos Lusíadas.

Vejo na minha prática diária como tenho de ajudar os alunos a lidar com a inundação informativa dos nossos tempos, dar-lhes estruturas para arrumar tantos dados e, sobretudo, mostrar-lhes as conexões, apesar das limitações dum currículo organizado em disciplinas herméticas. Desejo uma escola que trabalhe pela harmonia e não pela aglomeração, que se liberte da lógica acumulativa e produtiva que nos entala os movimentos e a natural tendência do conhecimento à expansão. Nalgum fórum fala-se em formar professores para a interdisciplinaridade tantos de nós já lá estamos, perguntando-nos quando haverá reformas na educação no que realmente sim é a nossa missão, a transmissão do conhecimento. Mas estamos numa instituição em que se estuda língua estrangeira porque são dez e um quarto e físico-química porque passaram cinquenta minutos. Nos últimos anos vem sendo lugar-comum no exercício da nossa profissão a sentença de que não nos pagam para pensar e tenho a suspeita de que ninguém espera mesmo, nem no mundo académico, que os professores do ensino básico e secundário pensem. Muito menos que sonhem.

Volto à visão do vestido branco a agitar-se, porque hoje o vento da luminosa cidade de Lisboa pede paz. Penso nas flores ventureiras que me dá a minha prática profissional. Uma delas está na origem do título deste artigo. Este ano pedi aos meus alunos uma dessas composições tópicas sobre como imaginavam a sua escola ideal. Não me surpreendeu que desejassem escolas sem professores, sem exames e sem toques, ou escolas como parques de diversões. Mas sim me surpreendeu a recorrência duma escola na terra dos avós ou no meio da floresta, com as árvores e as aves por companheiras. Dentro dos muros da nossa escola, no mais alto da mais alta colina da cidade de Lisboa, os meus alunos sonham com a floresta e com a descansada vida da aldeia. Carlomagno nunca conseguiu abater o Irminsul, nunca dominou os pagãos. Nenhum imperador, nenhum estado consegue cortar a seiva que nos vai no sangue aos bárbaros do ocidente nesta Europa milenarmente obcecada pelo homem novo e a novidade. Nem os adolescentes são folhas em branco nem a memória do nosso continente está só nos livros. A sentença de Bernardo de Claraval, “encontrarás mais cousas nas florestas do que nos livros”, parece ecoar nas paredes nuas das salas de aula da minha escola, nesta alta colina coroada por um santuário onde não falta a lenda do devoto atacado pela serpente e salvo por intercessão de Santa Maria. Pergunto-me que cidade estamos a defender desde esta acrópole da labiríntica cidade de Lisboa, palimpsesto da nossa civilização. Não tenho uma resposta única nesta profissão de dilemas. Do miradouro de Monte Agudo contemplo a cidade e ouço a assimetria acompassada entre a história de Penélope e a de Ulisses, a história da casa e a história da procura. Mas nenhuma das duas conta a história dos meus alunos. Vejo-os todas as manhãs, meio adormecidos, expostos ao mundo diurno, público, como se não pudessem dormir nunca, numa escola que cada vez mais tem como função guardar as crianças para que os pais possam trabalhar o dia inteiro. Nem a casa nem a ágora lhes pertencem. Penso em todas as críticas à escola atual: a monocultura planetária obrigatória, a marginalidade da cultura oral e popular, o serviço ao estado, a “invasão cultural” de que já falava Paulo Freire… Que edifício estou construindo no meu dia a dia? Para quem estou trabalhando eu?

Volto ao vestido branco, cada vez mais avermelhado com as cores do sol poente. Há a luz, há o movimento, há o vento, há o som, sensações primordiais do saber e do desejo de saber. Há o espelho e a lâmpada e o mito da construção da torre e o dilema babélico das sociedades tecnicamente desenvolvidas de que a sofisticação do conhecimento traz a incomunicação entre os homens. Mas também há a lenda do farol que acende uma luz para os navegantes e a esperança. Nesta hora em que vem chegando a noite imagino o conhecimento num contínuo fluir de imagens: a pirâmide que abre o “primero sueño” de Sor Juana Inés de la Cruz, a flor brilhante de Hildegart von Bingen, aquela que mandou construir um mosteiro com água encanada em todas as celas, a escada interior que os amantes sobem e descem na visão de Novalis, a biblioteca de Borges que nunca poderemos percorrer numa vida e também a personagem de Maria e o seu duplo-máquina no filme “Metrópole” e todos esses homens-máquina que assombram a história da ciência. Acode-me a visão dos mapas, o impulso das viagens no mar e nas estrelas, o “satis curiosa” com que se autodefinia Egéria em peregrinação aos santos lugares, as viagens científicas de Darwin ou as literárias de Stevenson, viagens ao outro, ao estrangeiro, ao objetivo, ao outro lado do que sabemos, além e demanda, sempre, busca que se move como a terra.

Inspirada pela luminosidade do vestido branco, tiro da arca da minha memória escolar personagens históricos de princípios morais que me protejam na minha aventura pelo conhecimento. Acode-me a convicção de Concepción Arenal na harmonia entre os princípios da ciência e da justiça social para proclamar que quero uma escola inclusiva, mas não uma escola que banalize o conhecimento académico. Já que o estado decretou a monocultura literária obrigatória, não desisto de transmitir aos meus alunos o conhecimento académico mais brilhante que a mim me foi transmitido. Lembro uma tarde em que, cansada de que os meus alunos não me dessem atenção numa aula de preparação de uma apresentação oral, decidi pôr em prática o exemplo daquela cena das Divinas palabras de Valle-Inclán em que as palavras em latim calaram à populaça. Virei-me para o quadro e comecei a escrever palavras em latim, “invenio, dispositio, elocutio, memoria, actio”, explicando entretanto a história da oratória na Grécia e em Roma. As “divinas palavras” fizeram o seu efeito e ouvi os alunos calarem um por um. Também me acode aquela frase da Retórica de Joan Luis Vives, “Aristóteles também se engana” e o princípio de Francisco Sánches, “quod nihil scitur”. E os dez livros emparedados desde o século XVI numa casa de Barcarrota, na Estremadura espanhola, descobertos em 1992. Estes livros emparedados, todos eles livros do Índice, são a imagem duma Península Ibérica secularmente assombrada pelo medo ao conhecimento, com muros e muros a conter o que naturalmente se expande, seja a luz ou desejo de saber ou de amar.

Há mais personagens nessa escola na floresta. A humana epopeia do conhecimento, do namoro do além, do outro, do fora, do objeto, da transcendência, tem nas mulheres outra conotação, encerradas como foram secularmente no mundo da imanência, privadas do espaço da viagem, sem ter nem sequer dentro da casa aquele quarto próprio para organizar o mundo que a Virginia Wolf ansiava. As professoras, maioritárias nesta instituição, não nos libertamos do papel de cuidadoras e muito ainda temos por fazer na escola portuguesa por dar referentes de autoridade femininos aos nossos alunos. Há também as decisões sobre a herança, a necessária viagem ao mundo dos mortos que a obsessão pela palavra “inovação” oculta. Como Ulisses ao encontro da mãe morta para descobrir o caminho de volta a Ítaca. A escola é sempre algum ponto entre o passado e o futuro. De demanda do paraíso continuamos a falar, da escola na floresta, da promessa da casa dos avós das composições dos meus alunos.

Por um momento o meu pensamento leva-me longe. A estas horas estará iluminada a nave central da catedral de Santiago. A memória leva-me até à Jerusalém celeste que é a pura luz do sol poente no coro da catedral de Santiago. Entre as criaturas fantásticas da base do Pórtico da Glória e as chagas de Cristo há uma história de paixão pelos Outros. Essa também é a epopeia que a ciência e a arte contam. É preciso muito amor à Humanidade para escrever o último movimento da Nona sinfonia. E também para viver a vida que Johannes Kepler viveu até escrever as suas leis do movimento planetário. Mas a escola em que vivo tem muitos tabus: o sagrado, o noturno, a alma, a sincronia, a própria ideia de transcendência são insuportáveis para a escola tecnificada, economicista e burocrática de 2016, degradada versão do racionalismo que lhe deu origem na Modernidade. De vez em quando entram-me saudades do pensamento mágico, ainda que só seja por assentar-me num princípio de harmonia que me dê a dignidade que me tira o princípio de aglomeração e produtividade que rege a nossa escola. Ou porque o meu coração confia na dádiva.

As primeiras estrelas começam a brilhar no céu de Lisboa. Já não vejo Marte tão intensamente vermelho como nos últimos dias de aulas. Nem sol nem lua, de todas as luzes do céu, prefiro as luzes das estrelas. Os faróis deste extremo ocidente da Península Ibérica falam agora nesse diálogo planetário dos faróis que acompanha o movimento da Terra. Creio que todos os pensamentos que fui enredando nestas linhas não construíram nada. Lá no fundo da minha alma nem a cidade nem a floresta me abrigam. Amo a minha margem oceânica e a humanidade que levanta faróis, navega e lê as estrelas, e se eu pudesse escrever sobre a minha escola ideal imaginá-la-ia aqui, com o horizonte do mar como limite.

Máis de Maria Dovigo