Lisboa, 19 de outubro de 2019
6h45. Acordo cedo porque combinei com os colegas de escola fazermos uma pequena caminhada logo de manhã. Ainda é de noite. Da varanda da casa vejo o brilho das estrelas entre as nuvens que correm. A previsão meteorológica para hoje é de muita chuva.
9h. Começamos a caminhada nos montes da freguesia de Lousa, no interior do concelho de Loures, limítrofe com Lisboa. A terra recende com a chuva. Fazemos grande parte do caminho entre carrascos, uma espécie de carvalho de folha perene que nesta altura do ano está cheio de bolotas. Cá e lá vem-se oliveiras, também trovisco, em flor neste tempo, e algum tojo. Um colega descobre-me abrunhos silvestres, fruto que não conhecia. Tem um forte sabor agre. Noutros troços do caminho passamos entre plantações de pinheiros ou de cedros. Ouvimos constantemente as pás das eólicas que estão no alto do monte. Na localidade de Fontelas encontramos um carvalho cerquinho centenário, árvore monumental com direito placa, onde se lê o nome da árvore, “quercus faginea Lambert”. Paramos um pouco. À minha volta vejo cores, todas as cores deste início do outono em esplendor, múltiplos tons de verde nas folhas das árvores e nas bolotas dos carvalhos, castanhos nas folhas caídas e nos fungos que agromam à volta do carvalho cerquinho, tons avermelhados e amarelados, o roxo dos abrunhos e o negro das azeitonas nas oliveiras. Ando absorvida na observação da vegetação, mas consigo ouvir retalhos da conversa dos meus colegas que deram em recordar histórias de castigos físicos que viveram na escola anterior ao 25 de abril, em Portugal alguns, alguma em Angola.
11h30. Chego à casa ainda a horas de ir ao mercado de produtores locais que todos os sábados se faz num parque do meu bairro. Compro romãs, clementinas, maçãs, marmelos, castanhas, nozes, abóbora, acelgas, batata-doce, couve, pão de centeio e queijo de ovelha. Falo, como todos os sábados destes últimos três anos, com o João e com a Ana, agricultores que têm as suas terras na região Oeste. Com eles tenho reaprendido a associar as estações e os frutos, algo que fui esquecendo nas compras dos supermercados. Chove intensamente e chego empapada à casa.
16h. Depois de jantar, passo a tarde de chuva a ler um livro que me acompanha há dias e que tem por título Borges e a física quântica. É uma tradução brasileira de uma escolma de artigos de um professor de Física argentino, Alberto Rojo. Dei com ele numa livraria brasileira que abriu neste ano em Lisboa e onde tenho encontrado livros muito variados, traduções e originais, de editoras brasileiras. Prendeu-me logo com as palavras iniciais, o pensamento de que a física e a poesia exploram as limitações da linguagem. Em pouco mais de cem páginas acompanhei reflexões sobre as relações, as coincidências que não significam relações, as relações causa-efeito… Li com especial deleite o capítulo dedicado a um dos meus contos preferidos de Jorge Luis Borges, “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. Depois de páginas de observações sobre as intersecções entre literatura e física, fico com a reflexão final de que o que Borges faz é alertar-nos para a necessidade de estarmos atentos à ordem do mundo.
18h45. Continua a chuva. Entre véu e véu de água, uma clareira de céu tão azul que parece estar a arder. Pergunto-me, como tantas vezes a contemplar este céu, que grau de intensidade marcaria no cianómetro, instrumento de medição do azul do céu que Alexander von Humboldt levou, entre tantos outros aparelhos, para a recolha de dados, na sua viagem às então colónias espanholas da América Central e do Sul. Vou à cozinha preparar sopa de castanhas e umas broinhas de castanhas. As receitas pedem-me a paciência de descascar um quilo de castanhas cozidas. Durante uma hora fico em silêncio com os meus pensamentos na cabeça e as castanhas nas mãos. E lá se vão ligando ideias, como tantas vezes experimento na cozinha. Neste ecossistema mental espontâneo vou vendo os lugares pelos que andei no dia e na semana. O conto de Borges leva-me à estação de metro de Olaias, que visitei há três dias por sugestão do meu caro amigo chiapaneco Armando, grande conhecedor da rede de transporte público lisboeta. Para ele a estação tem semelhança com os quadros de Escher. As escadas em diferentes direções, as diversas entradas, o grande átrio, a dimensão do espaço e os elementos arquitetónicos fizeram-me lembrar os muitos planos e as histórias inacabadas de Borges. Também a imagem de tantas cenas dos filmes de Hitchcock de pessoas em grande plano a coincidir num cenário de uma escala colossal, cada um com a sua vida e a sua história, cruzando-se por acaso com outrem e sem que o espetador consiga distinguir o seu rosto nem qualquer outro traço pessoal. Recende a castanhas e anis na casa e as gatas dormem com a cabeça ao contrário.
22h. Um amigo liga para saber como ando e conta-me que viu imagens dos acontecimentos da Catalunha na televisão. Diz-me que não sabe o que pensar, que não sabe onde está a verdade. Depois de cear e movida pela conversa que acabo de ter ao telefone vejo pela internet a TV3 ao vivo. Ouço os testemunhos dos jornalistas que estão na Via Laietana e nas Ramblas. Também os de várias pessoas na rua. Começo a pesquisar o que os jornais galegos dizem e ao entrar na página do Sermos Galiza assalta-me a imagem dum nome que conheço desde a infância. É o nome do fiscal, procurador diz-se no sistema judiciário português, que pediu a pena de morte para o meu tio, Ramón Seoane, dirigente comunista julgado em tribunal de guerra em 1947 junto aos seus camaradas. O meu pai, meninho de dez anos naquele tempo, repetia de vez em quando o seu nome e eu nunca consegui esquecer (nem quis): Sergio Peñamaría de Llano. Sabia pelo meu pai que anos depois do julgamento tinha sido alcaide da Crunha e que tinha o seu nome numa rua do Ventorrilho, bairro que vi construir a poucos metros da minha casa, sobre o que nos anos oitenta restava dos agros da Agra. Mas não sabia todo o resto da história que conta o artigo, que como Tenente da Legión tinha comandado a brutal repressão na comarca de Val de Orras. Leio que foi ele quem assassinou os pais de Consuelo Rodríguez. Leio noutro artigo o relato de Consuelo. A história escreve-se, mas também se inscreve, como bem diz a Susana Arins. Assim o verifico no elogioso obituário que o seu genro, que exerceu como chefe do serviço municipal de Educação, publicou no jornal local à sua morte em 2004, em que o finado é qualificado como “hombre bueno”. E tomo conhecimento de que o ex-alcaide da minha cidade, Francisco Vázquez, providenciou as mais altas honras municipais no seu enterro.
Paro por um momento a pesquisa. Há anos que só por acaso vou encontrando peças de aquele acontecimento que partiu a meio a história da minha família paterna nos inícios de 1947. Saí de casa e da Galiza há quase vinte anos com a crença de que podia inventar o mundo e começar do zero, que podia ter o dia inicial inteiro e limpo do poema de Sophia. Aprendi que as sombras nos acompanham ainda com mais força que o desejo e que se fazem presentes no dia mais luminoso para pedir justiça. Também aprendi, aprendo cada dia, que sem justiça não há poesia, nem cores a arder no céu e na terra, nem sabor de castanhas, nem histórias que mereçam, ou possam, ser contadas.
23h30. Já deitada e no escuro acodem-me pensamentos amargos sobre a miséria das ciências históricas. O som suave da chuva no telhado afaga-me o pensamento. Penso naquela ideia aristotélica do microcosmos e o macrocosmos e em aquele astrónomo que disse que ao olhar para cima via o que estava abaixo. Pergunto-me se nessas intersecções entre a física e a literatura podemos dizer algo que seja como a luz para Einstein na realidade científica, encarnação do absoluto. Penso na Via Láctea e pergunto-me como se conta uma história que seja verdade.