Para além de nós

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mapa do Antigo Reino de Galiza, feito por Ioannes Baptista Vrints (1603)
mapa do Antigo Reino de Galiza, feito por Ioannes Baptista Vrints (1603)

Habitar conscientemente o espaço oceânico, olhar para a Galiza desde o exterior e saber que o nosso destino não se encontra em linha reta são três princípios que se podem exemplificar na atividade dos que fizeram da Galiza a sua tarefa, dos que tiveram uma visão política do país como parte de um cenário internacional e procuraram maneiras de fazer parte de processos que vão além dos limites territoriais, como Plácido R. Castro, Ramón Suárez Picalho ou Valentim Paz-Andrade. Desde a proposta política internacionalista do tempo das Irmandades, com o eixo atlântico e o do espaço da língua portuguesa como espaço de identificação, ação e alianças, ainda com tantas voltas que deu o mundo no século XX, houve poucas novidades no plano ideológico; a identificação com as lutas de libertação colonial e pouco mais. Isto a pesar da enorme vantagem que poderia derivar da possibilidade de termos uma sociedade competente em duas línguas internacionais, facto valioso não só para empresas, instituições ou gente da cultura, mas para os cidadãos organizados procurarem eles mesmos alianças que permitam trazer ao país outras maneiras de pensar e de agir. As línguas em que somos competentes também desenham os mapas da nossa ação cívica. A agravar este isolamento, o relacionamento entre a Galiza interior e a exterior mudou em relação a há cem anos e institucionalizou-se uma imagem limitada do que é ser galego, mesmo contra a evidência da História.

As línguas em que somos competentes também desenham os mapas da nossa ação cívica. A agravar este isolamento, o relacionamento entre a Galiza interior e a exterior mudou em relação a há cem anos e institucionalizou-se uma imagem limitada do que é ser galego, mesmo contra a evidência da História.

Ponho por exemplo o discurso institucional sobre a história das comunidades galegas na América que se tem veiculado em exposições, publicações e programas de televisão do género “Desde Galicia para el mundo”. Ensinaram-nos quanto elas contribuíram para o progresso económico do país, para a política e a cultura, algo necessário. Mas outras questões se levantam em 2020, com respostas menos úteis para um discurso encomiástico, mas mais necessárias para sabermos por onde andamos e que alianças podemos fazer. Por exemplo, como encaixaram os galegos na questão racial nos diferentes países americanos? Como se posicionaram politicamente? Claro que para ousar fazer-se perguntas assim é condição pensar fora da caixa, dos limites dos conceitos, imagens, discursos e relatos que temos sobre o que é ser galego e, sobretudo, da intenção com que se constrói discurso histórico. A casuística das experiências dos galegos e galegas é imensa e complexa, no tempo e no espaço. Não por encontrarmos exemplos pouco simpáticos temos de deixar de acreditar que, como coletivo nacional, podemos fazer a diferença e que há uma linha, entre outras, emancipatória e radicalmente democrática no nosso devir coletivo da que eu me sinto herdeira e ativista.

Em 2020, como em 1920, cumpre pensarmos o país tendo a Galiza como centro, sermos célula de universalidade dentro das dinâmicas sociais mundiais, dos trabalhadores que migram, das ideias que saltam fronteiras e dos amores que trazem criações inéditas. Cumpre não irmos a reboque ou fechados em agir reagindo ao que diz ou faz quem tem poder e ter esclarecimento para questionar os limites legais e de uso impostos pelo atual regime político do estado espanhol. De não o fazermos arriscamo-nos a manter a desigualdade legal entre os cidadãos em função da sua língua, com tudo o que isso comporta e a dar continuidade a este princípio de impunidade de quem usa a violência e a intimidação contra quem questiona o sistema político, impunidade que torna vazio de conteúdo a invocação dos princípios de solidariedade ou pluralidade do artigo 1º da Constituição espanhola.

Escudo do Reino de Galiza
Escudo do Reino de Galiza

O curioso de alguns relatos sobre a história ou a língua da Galiza é que parecem não ter em conta que tudo o que a cidadania galega faz acontece dentro de um sistema político que decide o sentido das nossas ações e um enquadramento jurídico que, de facto, determina a desigualdade legal dos espanhóis em função da sua língua. Em nome da inquestionável unidade da nação espanhola, como se de um mistério ou dogma se tratasse, doutrinasse-nos para aceitar, ou relativizar, ou desculpar, situações injustas e que vão contra a igualdade de direitos dos cidadãos. A tragédia de muitos no estado espanhol é que não podem ser republicanos, nem de esquerdas, porque são espanhóis e preferem ser leais a uma monarquia corrupta do que perguntar-se porquê a chefia do estado atinge tais níveis de corrupção e fica impune.

A invasão do espaço do outro e a manutenção do privilégio de alguns são princípios estruturantes na formação do estado espanhol como empresa imperial que foi na sua génese. O tão repetido “problema territorial” não é se não a urgência de tomarmos decisões sobre a manutenção ou liquidação do resta dum projeto imperial, eufemisticamente “centralista”, no ideológico, no político e no económico. Na ara perversa da Espanha una, ortodoxa e imperialista, que tem a morte do irmão como rito fundador repetido na expulsão dos judeus, dos mouriscos, dos afrancesados, dos intelectuais, dos separatistas, vão-se sacrificando as melhores cabeças que acabam sendo cortadas real ou metaforicamente. Grande parte do esforço cívico dos movimentos emancipatórios, eufemisticamente “periféricos”, vai no sentido de estabelecer um princípio de equidade e de justiça entre os cidadãos do estado espanhol. Com muita dificuldade vamos identificando e reconhecendo as fases do processo que nos trouxe ao presente. Muito nos tinha que fazer pensar que as consequências duma guerra acontecida há mais de oitenta anos continuem a fazer manchetes diárias nos nossos meios de comunicação. E ainda falta a tarefa da catarse sem a qual manteremos a continuidade emocional no medo e na desconfiança na que todos fomos socializados. O “não matarás” não é princípio absoluto no estado espanhol, onde não há valor que se compare à “indisoluble unidad de la Nación española, pátria común e indivisible de todos los españoles” como diz o artigo 2 da Constitución. Em nome desse princípio temos naturalizados os insultos, as mentiras, a falta de pluralidade, a exclusão sistemática dos que questionam e a manutenção do privilégio.

O tão repetido “problema territorial” não é se não a urgência de tomarmos decisões sobre a manutenção ou liquidação do resta dum projeto imperial, eufemisticamente “centralista”, no ideológico, no político e no económico. Na ara perversa da Espanha una, ortodoxa e imperialista, que tem a morte do irmão como rito fundador repetido na expulsão dos judeus, dos mouriscos, dos afrancesados, dos intelectuais, dos separatistas, vão-se sacrificando as melhores cabeças que acabam sendo cortadas real ou metaforicamente.

A questão é o que fazer quando se reconhece este estado de cousas. A liberdade de pensamento e o pragmatismo têm espaços diferentes. Se só queremos sobreviver, como a Ismena frente a Antígona, a verdade fica sujeita a uma teia de justificações e a função anula o ser. É prioritário que seja feita justiça como a todos os heterodoxos da sagrada unidade de Espanha, entre eles os reintegracionistas, os que ainda estamos vivos e ativos e também os que são censurados nas histórias da literatura galega, que acabe de vez e para sempre a nossa exclusão da vida coletiva, da memória, do discurso público, das instituições galegas e dos meios de comunicação. Para não continuarmos no país de Macbeth onde para não ter de reconhecer a primeira morte só podemos continuar a matar.

Por outro lado, não se negoceia tudo e por vezes o mais útil para construir é mesmo a palavra não. Até porque um dia, acontece com todas as construções humanas, o sistema político ruirá, e é para esse tempo que temos de refletir e agir. Se só pensamos dentro deste tempo e estado de cousas vamos sobrevivendo, mas também renunciamos ao futuro e a nossa construção desabará com aquilo ao que tentamos resistir. Tem que haver quem defenda a dama, a soberania absoluta, mesmo que não seja popular e não tenha muitas réplicas nas redes sociais, a utopia onde nenhum tirano, nem em forma de ideia ou de provisão de necessidade imediata, pode entrar. A ação do reintegracionismo pautou-se por não se acomodar, por ir além da contingência. Cooperar com uma injustiça não é construir, é renunciar a ser.

Não se negoceia tudo e por vezes o mais útil para construir é mesmo a palavra não. Até porque um dia, acontece com todas as construções humanas, o sistema político ruirá, e é para esse tempo que temos de refletir e agir. Se só pensamos dentro deste tempo e estado de cousas vamos sobrevivendo, mas também renunciamos ao futuro e a nossa construção desabará com aquilo ao que tentamos resistir.

Os reintegracionistas foram atropelados, e ainda são, nos seus direitos de cidadania. Isto não foi, não é, um debate limpo entre pessoas que temos diferentes posicionamentos, é uma anomalia democrática onde uns abusam do poder para aniquilar os outros. A exclusão do reintegracionismo é algo que por convivência e democracia tem de ser resolvido de maneira clara e definitiva por parte do âmbito institucional. Não se soluciona com estratégias do gato e do rato ou mudando uma cousa cá e outra acolá para tudo continuar na mesma. Mas estamos tão habituados e habituadas à excecionalidade democrática do estado espanhol que já nem a conseguimos identificar e a consideramos natural, como acontece a pessoas submetidas relacionamentos abusivo. Mas é às instituições que corresponde o dever de velar pela língua e pela convivência entre nós. É a elas a quem eu exijo que cumpra o seu dever político e moral. E aos meus concidadãos que participem comigo nessa exigência pelo bem comum.

O uso da norma portuguesa da língua da Galiza adquire neste contexto um fim de salubridade ideológica, mental e emocional. Permite à cidadania galega encontrar outras comunidades de conversa, fora do clima político e social do estado espanhol, estruturado pela “crispação”, o hábito enquistado de manifestar-se para aniquilar o outro, sem nunca ouvir, muito menos entender as suas razões. Ler e escrever em português pode ter uma utilidade económica, mas também tem uma utilidade anímica, dá-nos outro horizonte para além do regime instaurado no grande ritual de sacrifício da inteligência, a cultura e a fraternidade que foi o verão de 1936. Um regime, tenha-se presente, que institucionalizou a corrupção como estrutura para manter os privilégios de uns e o submetimento de outros, e deixando bem definido o espaço dos vencedores e dos vencidos, estrutura renovada pela transição dos anos 70.

Ler e escrever em português pode ter uma utilidade económica, mas também tem uma utilidade anímica, dá-nos outro horizonte para além do regime instaurado no grande ritual de sacrifício da inteligência, a cultura e a fraternidade que foi o verão de 1936.

Se há um século aqueles que participaram no movimento de emancipação da Galiza se perguntavam quem éramos nós, neste século, depois dos genocídios e as perseguições do s. XX cumpre perguntar-se quem são os outros, quem somos nós com eles, procurar onde estão os variados espaços dos que fazemos parte, qual é o sentido das raízes e da ligação a um território. Cumpre irmos à descoberta de aprender isso que Viqueira, que desejava que as pátrias futuras fossem constutuídas por grandes amizades, sonhou como a língua da fraternidade universal.

Máis de Maria Dovigo