Para outro diálogo galego-português

Partilhar

Uma das notícias de 2016 em Lisboa foi a destruição da estátua do rei D. Sebastião na estação de trem do Rossio. Um jovem subiu-se ao pedestal para tirar uma “selfie” e fez cair a estátua. O ano em que a estação do Rossio foi inaugurada, 1890, passou à história pelo ultimato britânico a Portugal para que retirasse a proposta do mapa cor-de-rosa que visava unir as colónias de Moçambique e Angola e que colidia com a estratégia britânica de ligar os seus domínios entre O Cairo e a Cidade do Cabo com a construção duma ferrovia. O D. Sebastião representado na estátua é um dos personagens históricos mitificados na Mensagem, livro que Fernando Pessoa publicou em 1934, um conjunto de poemas que representa um sentido finalista e messiânico da história de Portugal. O livro mereceu o prémio Antero de Quental do Secretariado Nacional de Propaganda salazarista presidido por António Ferro, o artífice em 1940 da Exposição do Mundo Português que deixou em Belém, à beira do Tejo, o Padrão dos Descobrimentos que ainda hoje se pode ver. No interior da estação encontram-se mais representações de D. Sebastião e outros personagens históricos e lendários portugueses feitos pelo artista Lima de Freitas na mesma linha de interpretação esotérica da história da cidade e de Portugal desenvolvida por Pessoa.

Há mais camadas de memória na estação e no seu entorno. Sidónio Pais, presidente da república a quem Pessoa chamou o presidente-rei, foi assassinado nesta mesma estação em 14 de dezembro de 1918. Aquele foi um ano marcado pela escassez de alimentos, a epidemia da gripe espanhola e o retorno dos soldados portugueses que participaram na Grande Guerra. A poucos metros, na praça do Rossio, uma placa no interior do café Gelo lembra o local em que se reuniram os carbonários que atentaram mortalmente contra o rei D. Carlos e o seu filho em 1908 no Terreiro do Paço, não muito longe. Na mesma praça do Rossio o Teatro Nacional D. Maria ocupa o espaço onde antes do terramoto de 1755 se erguia o palácio dos Estaus, palácio da Inquisição. A poucos metros, no largo de São Domingos, uma placa lembra o massacre dos judeus em 1506. O largo é local de encontro de africanos em Lisboa desde há séculos e também domicílio do Palácio da Independência, onde se reuniram os conjurados que conduziram a Restauração de 1640. Duzentos anos depois, em 1840, o emigrante galego Francisco Espinheira começou a comercializar neste mesmo largo o seu licor de ginja.

E poderia continuar puxando fios e fios desta tapeçaria de muitos nós que é a cidade de Lisboa, pois em qualquer cenário em que nos situemos aconteceram histórias que mereceram leituras diversas e que também ficaram de muita diversa maneira marcadas na paisagem urbana em monumentos, nomes, placas ou estátuas. Para contar bem uma história cumpre lembrar que sempre começamos a meio e que, por outro lado, nunca há uma única história a acontecer. E que, para a vida cívica, há, verdadeiramente, factos históricos e interpretações, porque a comunidade se faz de dados e também de sentidos. E ainda há que considerar que, por vezes, como no conto “A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho” de Mário de Carvalho, Clio, musa da História, adormece sobre a sua tapeçaria ligando acidentalmente dous fios. No caso deste conto, uma tropa de berberes que tencionava cercar as muralhas de Lixbuna em 1148 irrompe no caótico trânsito da avenida em 1984. Não é uma acertada maneira de relatar esses anacronismos que se enredam com o nosso presente?

Ilha dos galegos, largo do Chiado,em 1907. Foto de Joshua Benoliel. Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa.
Ilha dos galegos, largo do Chiado, 1907. Foto de Joshua Benoliel. Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa.

Por falar em anacronismos e em fios enguedelhados, cá e lá vou vendo o argumento de que os galegos não devemos confundir a nossa língua com o português porque os portugueses são imperialistas, assim, a eito. Pensemos. A frase tem implícita a ideia de que não há (nem houve) galegos imperialistas, o que é muito supor. Também faz tábua rasa da muito interessante discussão que há em Portugal na atualidade sobre a herança do império, não só do império remoto dos séculos XVI a XVIII mas sobre o império colonial do século XX, discussão presente na academia, nos meios artísticos, nos movimentos cívicos, nos partidos políticos, discussão da que eu não quero estar ausente porque também nela se decidem os futuros caminhos da gente que fala a minha língua. Português era Sidónio Pais, portuguesas são as três deputadas negras que foram eleitas no passado dia 6 de outubro com um programa feminista e antirracista. Por outro lado é ocultar, ou não reconhecer, que galegos fizeram parte da formação dos impérios, da monarquia hispânica e da portuguesa, e que também na sociedade galega há indivíduos e grupos que geraram e geram diferentes sentidos históricos para a comunidade. E, para além disso, desde quando os galegos desconsideramos a independência de Portugal? Não foi assim durante a Guerra da Restauração, quando na Galiza a resistência às levas teve episódios significativos protagonizados pelos estudantes da Universidade de Santiago e pelas mulheres da Crunha, como regista Emílio González López em El águila caída, livro cheio de dados que nos permitem enxergar outras bifurcações narrativas da galeguidade. Nem foi assim na consideração de Murguia nem de Vilar Ponte nem de Castelão. Desde quando a intelectualidade galega mudou de opinião?

O discurso institucional sobre a identidade galega continua a naturalizar a substituição cultural e linguística e a legitimar a deturpação sistemática do que resta de língua. Conta-se a história e fala-se das escolhas linguísticas dos galegos como se não houvesse empresas, meios de comunicação, e escolas, pelas que todos passamos, e onde continuam a entrar crianças galego-falantes que saem castelhano-falantes. Por outro lado desconsidera as sementes de soberanismo que estão nos paradigmas de interpretação e de criação que se encontram na Galiza, onde em movimentos cívicos, escolas e meios artísticos há gente que cria uma cultura que não renuncia ao território e que não escinde natureza e cultura, que encontra sempre mais um sentido à pertença étnica, com uma visão comunitária da cultura bem longe da “industrial”. Uma cultura que continua a ser célula de universalidade, sem subalternidades nem dependências. É com essa companhia e esse estar coletivo que apesar de tudo vamos tecendo que entro no diálogo com outros povos. Ver-nos no espelho português é uma dádiva que nos foi dada para termos consciência de nós e da caminhada que como povo temos feito na linha do tempo. No que às relações galego-portuguesas diz respeito, o mais importante é que a corrente de amor entre nós não se quebre e a capacidade de nos reconhecermos como partes de algum todo que se nos dá espalhado à nossa experiência e entendimento. Faz ter esperança em que a história tem verdadeiramente um sentido e que ele vai nos trilhos da compreensão do amor na nossa existência.

Se não queremos cair em diálogos anacrónicos, neste momento em que se desenvolve na sociedade galega o debate sobre a nossa identidade na lusofonia, temos a necessidade de contar a nosso percurso coletivo a partir de ângulos diversos e também de ter um conhecimento mais diversificado da história dos portugueses e não só. Também nós, em qualquer quadrícula do nosso território, como a lisboeta à volta da estação do Rossio, temos histórias de gente que oprime, gente que se sacrifica, gente que resiste, gente que se encontra e que encontra, gente que busca, gente que morre e é morta, gente que se perde, gente que parte, gente que volta. Para além disso, fica a simples pergunta de qual é a lógica de que pelo facto de Portugal ter sido um império colonial os galegos tenhamos a única língua neolatina que escreve “gente” com xis. E, o que é mais importante, fica a pergunta de quando acabará de vez a atitude de negação da pluralidade e da conversa leal e generosa entre nós, todos os que queremos um futuro para a língua do país, quando acabarão os particulares mapas cor-de-rosa da comunidade autónoma que projetam um imaginário inútil para o nosso futuro.

Moços de fretes à espera de trabalho. Foto de Joshua Benoliel. Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa.
Moços de fretes à espera de trabalho. Foto de Joshua Benoliel. Fonte: Arquivo Municipal de Lisboa.

No início do século XX o fotógrafo Joshua Benoliel, iniciador das reportagens fotográficas em Portugal, registou nos seus trabalhos a presença dos galegos no espaço público lisboeta, desempenhando um dos ofícios que costumavam exercer naquele tempo, o de moços de fretes. Chama a atenção que nestas fotografias Benoliel retratasse os galegos sempre com a esquina de algum prédio de fundo. Eu quero ficar com este achado artístico e liga-lo ao simbolismo das encruzilhadas que são tão caras à nossa tradição e que estão tão marcadas na nossa paisagem, dando sinal dos muitos planos e bifurcações em que a nossa vida acontece. E quero também ficar com a imagem da Ilha dos galegos, desaparecido largo no Chiado que Benoliel também fotografou. Dialoguemos com aqueles que falam da lusofonia como um arquipélago, metáfora à que bem se liga a imagem que de nós temos como ilha e nau que cá e lá emerge.

Máis de Maria Dovigo