Híbrida

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Sereia na Corunha | Jose Luis Cernadas Iglesias
Sereia na Corunha | Jose Luis Cernadas Iglesias

Nestes tempos de identidades e relações fluidas mantêm-se categorias pátrias férreas para limitar a identidade de cada um, mesmo entre os que se dizem progressistas. Em Portugal tenho eu ouvido não poucas vezes que na Península Ibérica o que não é português é espanhol. No estado espanhol assistimos à tragicomédia dos republicanos espanhóis que não podem ser republicanos… porque são espanhóis. Eu, que queredes, estou cheia de pátrias, de patriarcado e de paternalismos vários, e ainda que na Galiza voto num partido nacionalista, não me considero ideologicamente nacionalista. Não é que queira uma pátria que me mereça, como o Almada Negreiros; é que estou noutra. A Galiza, entendida como uma coletividade ligada a um território e à cultura criada em diálogo com este, não é só as suas certezas, também é as suas incertezas, as suas possibilidades, os caminhos não trilhados. É a terra e também o oceano.

Não sou “naturalmente” cousa alguma que se defina em termos de nação entendida ao modo do século XIX. Sei onde nasci e também sei que sou cultural, e também social e politicamente, híbrida, cousa que não considero nem boa nem má, mas manifestação da sobrevivência e de amor ao próximo. Com a tradição ideológica do nacionalismo galego partilho a sua ação contra o imperialismo e a favor da emancipação dos sofredores da empresa imperial. Não partilho nem o elogio do rural nem o discurso obsessivo do “feito diferencial” e a definição da identidade. A minha matriz cultural, a minha mundividência, é galega, e bem que percebo isso vivendo em Lisboa.

Não partilho nem o elogio do rural nem o discurso obsessivo do “feito diferencial” e a definição da identidade. A minha matriz cultural, a minha mundividência, é galega, e bem que percebo isso vivendo em Lisboa.

Tenho hábitos enraizados que aprendi da nossa cultura: chego a um lugar, exploro o território, a pé, observo os sinais da passagem das estações, identifico as árvores, as ervas e os pássaros, registo as transformações deste solo na escala que narra a Geologia, vejo as relações de poder, identifico os grupos oprimidos e sinto-me espontaneamente ligada a eles. Isso, porque me criei na Agra do Orção e li tudo o que Otero Pedrayo escreveu sobre Geografia como se fosse um manual para tomar uma medida possível do mundo. De resto, gosto de viver neste cais de gente que vai e vem, que fala tantas línguas, que me traz notícia de territórios longínquos, com mundividências tão diversas da minha, que discute as variadas heranças deste mundo que os impérios dividiram causando tanto sofrimento. Troco ideias e afetos e imagino uma maneira de viver coletivamente em que nenhuma vida seja supérflua e o mito do centro e a construção do poder não se confundam.

Gosto de imaginar a galeguidade pela história de Ulisses, navegando às voltas, aventurando-se, ouvindo algures contar a sua história, entregando-se numa barca às ondas, continuando vivo graças à inteligência e à capacidade de fazer cousas com palavras e deixando-se ficar na ilha de alguma deusa de vez em quando. E, sempre, querendo voltar à simplicidade da casa. Trava-nos para nos vermos neste espelho de Ulisses um certo puritanismo em relação à história e aos outros muito ao modo de Vicente Risco, que, como deixou escrito cá e lá, não gostava nem de híbridos nem da história. Nem dos corunheses, já agora.

O discurso de fundo do nacionalismo, aquele que toca no imaginário e nos mitos, com todos as camadas ideológicas dos movimentos de libertação colonial ou mais recentemente de algumas ideias pós-modernas, não saiu nunca completamente do beco no que o Risco se meteu, essencialista, puritano e com uma atitude emocional enraizada no medo. Continua a fundamentar a sua ação na imagem de um povo imaculado e numa leitura da história com personagens boas e más, povos vítimas e povos carrascos. O preconceito contra a mistura e a hibridez, vindo não da cultura tradicional mas da continuidade ideológica daqueles homens que pensaram as essências pátrias em tempos de classificações rácicas, nunca foi desmontado nem encontrou alternativa à altura, nem ideológica nem estética.

O discurso de fundo do nacionalismo, aquele que toca no imaginário e nos mitos, com todos as camadas ideológicas dos movimentos de libertação colonial ou mais recentemente de algumas ideias pós-modernas, não saiu nunca completamente do beco no que o Risco se meteu, essencialista, puritano e com uma atitude emocional enraizada no medo.

Só com esta raiz imaginária consigo explicar porque se mantêm e repetem acriticamente ideias sobre a língua dos galegos como a associação entre o galego e o rural, retirando o peso histórico das sociedades rurais por uma parte e o trabalho feito nas cidades pela construção do país por outro. Sinto, porque me toca especialmente, que o discurso identitário institucional leve décadas limitando as possibilidades que vêm pelos netos (agora bisnetos) dos lavradores e marinheiros a viverem em Vigo ou na Crunha, culturalmente híbridos em diversas dimensões ou camadas, a viverem em cidades com tantos espaços intermédios entre o rural e o urbano, que colocasse entraves às transformações que poderiam vir pela motivação que temos para transformar a nossa herança camponesa neste mundo industrial e globalizado. Presos como estamos numa gramática de suspiros melancólicos repetimos acriticamente que a perda de falantes se prende, entre outras cousas, pelo crescimento das cidades e o abandono do rural, “ecossistema privilegiado que o galego tinha”. Como se a nossa fosse uma língua essencial e necessariamente rural (o que converte à outra língua em incontestadamente urbana). Como se o nosso devir histórico tivesse um fim contado à partida e não fosse uma construção constante a partir de tantas possibilidades e diálogos.

Penso eu que não se muda esta matriz inconsciente mas bem ativa exportando ideias pensadas a partir doutras matrizes culturais e percursos históricos, do pensamento pós-colonial americano ou outras linhas de pensamento, mas pensando a partir da nossa condição indígena, do nosso radical e valioso enraizamento nos mistérios da terra que nos inicia mais do que qualquer ideologia, patriótica, social ou de género. Aí sim que o Risco acertou em cheio com a sua metáfora do patriotismo vegetal. Podemos mudar de ângulo, ver a nossa vida coletiva a partir do que o tempo pede de nós, do que demanda. Porque somos uma sociedade com uma significativa proporção de indivíduos ativos, generosos e solidários, apesar de tudo.

Sinto que se continue a desprezar o nosso saber de operários e operárias, reduzindo-se-nos a uma coda estranha na tríade repetida de “labregos, marinheiros, obreiros” que vários poetas recriaram. Numa linha contínua desde as primeiras formulações teóricas do nacionalismo, fomos ficando sem espaço, sem espelhos, sem legitimação, para desenvolver em ato o que sabemos por ofício e partilha familiar num nível profundo: o que significa desempenhar uma função, ser parte de uma máquina, experimentar a alienação, sermos pensados fora de nós, mas também internalizar pelo exercício físico diário os variados ofícios de transformação da matéria inerte. E, o mais importante, a força motivadora da necessidade de justiça, o saber das organizações e as experiências ideológicas transnacionais. E lá, nalgum momento histórico do desenvolvimento desse pensar fazendo, encontrarmos a intersecção com o nacionalismo orgânico e o patriotismo vegetal. Porque, como demonstrou a viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães há 500 anos, seguir em frente também é um caminho para voltarmos ao ponto de partida.

Máis de Maria Dovigo