
Muito influíram na minha decisão de falar e viver em galego as mulheres que conheci enquanto criança: a minha avó, a última monolingue da minha família, a minha mãe, com o exemplo da sua rebeldia contra os castigos físicos que suportou na escola franquista dos anos 40 por falar galego, e as vizinhas do meu bairro da Agra do Orção na Crunha dos anos 80. Havia uma clara diferença entre as que falavam galego e as que falavam castelhano. Bem lembro a senhora Inês, que tinha sido costureira, penso que originária de Cúrtis, solteira e de missa diária, cheia de medos, sempre fechada, na casa ou na paróquia, que me recriminava quando me ouvia falar em galego dizendo que eu ofendia à Nossa Senhora. Lembro a senhora Glória, que tinha sido vendedora de peixe, viúva de marinheiro, nascida em Bens, uma das aldeias que a refinaria destruiu, que para além de falar galego também o cantava num larguíssimo repertório de cantigas. A senhora Glória tinha uma doença nas pernas que a fazia caminhar devagar, mas isso não lhe tirava o gosto por dançar quando havia orquestra no centro de dia do bairro. Porque, como ela dizia, “quando bailo, não me doem as pernas”.
Tenho presentes estas mulheres quando penso porque falo galego. É uma reflexão que não fiz na altura, mas agora não tenho dúvida de que o espelho daquelas mulheres pesou muito na escolha que fiz com catorze anos, quando decidi viver em galego. Agora preciso de me tornar consciente da influência desses modelos vendo o desequilíbrio entre homens e mulheres no uso da língua e vendo que, de facto, precisamos, como precisei eu, de referentes femininos aos que querer dar continuidade, como assinala Teresa Moure em Eco-linguística. Posso dizer que é delas que herdei uma certa vocação de justiça e de sentido emancipatório da história. A relação com a escrita é uma diferença radical entre elas e eu. Ligado a isto, o conteúdo de conhecimento que a sociedade me exige como trabalhadora e as possibilidades que me dá como cidadã. Elas, avós, mães e vizinhas, colocaram-me no caminho da escrita e, para além disso, este tempo é muito mais escrito do que o seu.
Para a generalidade das mulheres galegas a modernidade passou e continua a passar pela mudança de língua. Fronte à idealização das galegas como “mulheres fortes” feita pela intelectualidade nacionalista, há uma realidade de proletarização que se impôs durante o século XX. Os percursos emancipatórios que as nossas avós sonharam para nós, a minha sem dúvida e acredito que muitas das vossas, ficam esquecidos no relato dominante. Se analiso o franquismo do ângulo da minha história familiar, destacam-se duas linhas de força. Por um lado a precarização e informalização do trabalho feminino. As trabalhadoras galegas foram privadas de organizações sindicais próprias e reduzidas ao lar, à amálgama entre trabalho informal remunerado e os cuidados domésticos mascarados com a expressão “sus labores” que figurava no documento de identidade. A segunda linha de força é a brutal repressão sobre a sexualidade que a minha avó resumia com a frase “de repente tudo era pecado”. Temos de olhar para isto se queremos desmontar o sistema económico franquista que, afinal, continua a ser a trama de poder que estrutura tudo o resto, as políticas linguísticas e culturais, às relações sociais, as construções simbólicas e o sistema político.
Se analiso o franquismo do ângulo da minha história familiar, destacam-se duas linhas de força. Por um lado a precarização e informalização do trabalho feminino. As trabalhadoras galegas foram privadas de organizações sindicais próprias e reduzidas ao lar (…) A segunda linha de força é a brutal repressão sobre a sexualidade que a minha avó resumia com a frase “de repente tudo era pecado”.
O regime instituiu o controlo férreo sobre os corpos com o uso indiscriminado da violência, do sistema penitenciário e da censura, com o fim de usar a energia das mulheres para a reprodução e o trabalho, para controlar o pensamento e a ação, dentro do mesmo paradigma do regime que preconizou o “Muera la inteligencia”, a economia extrativista, o espólio indiscriminado, violento e abusivo dos recursos da terra e a destruição das comunidades. A minha avó dizia que quando a miséria entra na vida duma mulher tudo o resto desaparece. Precisamos desta memória familiar e nacional para decidir o nosso lugar no mundo. Cumpre continuarmos e divulgarmos a memória das mulheres nos sindicatos, no agrarismo, nas Irmandades, recuperarmos o ativismo das mulheres de braços fortes, as genealogias do saber das mulheres na Galiza, como o muito encomiável exemplo do projeto “A Corunha das mulheres” da Associação Cultural Alexandre Bóveda. Ainda que tenhamos a ilusão da liberdade, o processo de domesticação que as mulheres galegas sofreram de maneira especialmente agressiva durante o período franquista nunca se inverteu completamente. Ele hibridou-se com novas formas de padronização que, ainda que com discurso progressista, procuram a domesticação do corpo e a mecanização do pensamento. E à empresa nacionalista espanhola.

A ortografia dita “oficial” é também a imagem gráfica da domesticação e da submissão da nossa capacidade para ultrapassar os limites impostos no mundo novo que é a expressão escrita para a maioria das mulheres galegas. O isolacionismo limita-nos à partida na relação com o outro, a transcendência. Tem muito paralelismo com a limitação do espaço das mulheres. São sempre as mulheres e o feminino as que são motivo de delimitação, como o “galego”, enquanto o castelhano, como os homens e o masculino, são neutros. Como neutra é a omissão de nomes de mulheres quando se faz reconto do reintegracionismo.
A ortografia dita “oficial” é também a imagem gráfica da domesticação e da submissão da nossa capacidade para ultrapassar os limites impostos no mundo novo que é a expressão escrita para a maioria das mulheres galegas.
É desafio do feminismo, também do que se diz ecológico, compreender a variedade linguística e cultural, os muitos caminhos das mulheres no mundo. Não é questão linear, antes bem está cheia de tensões, pois se é preciso entender a variedade é também preciso estarmos atentas a que ela não seja instrumentalizada pelos opressores, como o feminismo instrumentalizado pelo estado espanhol. O feminismo é um exercício de aprendizagem constante. Aprendemos umas com as outras, as novas com as velhas, as velhas com as novas, as duma terra com as da outra, as duma profissão com as da outra… Há as mulheres e há o feminino, a desvalorização do cuidado, da emoção, da imaginação, que é comum a homens e mulheres. O feminismo liberal e institucional entende melhor a igualdade do que a variedade cultural e o espaço urbano melhor do que o rural. Na Galiza muitas mulheres viveram nas suas famílias um trânsito simultâneo de um meio rural ao urbano, do oral ao escrito, do galego ao castelhano como algo linear e irreversível. É preciso tomar consciência de que processos históricos fazem parte as escolhas que parecem individuais.
A maioria das mulheres galegas recebe o conhecimento necessário para a vida laboral e social em castelhano, como se a língua fosse neutra. Língua da nossa domesticação, do alheamento em relação às devanceiras, à terra e ao mundo.
A maioria das mulheres galegas recebe o conhecimento necessário para a vida laboral e social em castelhano, como se a língua fosse neutra. Língua da nossa domesticação, do alheamento em relação às devanceiras, à terra e ao mundo. Socializamo-nos admitindo o supremacismo como realidade natural e não historicamente construída num estado que se foi construindo sobre o sexismo ideológico e institucional. Como se o supremacismo não precisasse da nossa desmemória e o nosso desenraizamento. Mas há um internacionalismo a chamar por nós, mulheres galegas. Nas nossas mãos está que esta língua de comunicação internacional não seja útil só para a implementação de políticas neoliberais, que seja língua útil para a construção da solidariedade entre mulheres que partilhamos percusos históricos semelhantes, útil para a ação.