Há uns anos estiveram na moda concertos e gravações ditas “acústicas”. Pesquisando sobre os porquês desta moda de “desconexão” de fim de século e milénio, dou com opiniões que falam de uma sonoridade mais “orgânica”, e também qualquer cousa que tem a ver com a emoção, a memória e o simples facto de que o ouvido humano está habituado às sonoridades que foram as únicas durante milénios. O argumento tem implícito o princípio de que a nossa memória, também a sensorial e estética, não é só individual, ideia que muito me apraz. A categoria “acústico” só nasce de maneira retrospetiva pela irrupção de instrumentos eletrónicos durante o século XX. Retrónimo é o termo criado por um jornalista americano, não dicionarizado em português, que se vai difundindo na internet para designar categorias como “instrumento acústico” ou “telefone fixo”, criados pelo predomínio de uma inovação técnica que altera o nosso protótipo de um objeto.
Lembrei-me desta moda com a alteração repentina dos modos de trabalho e relacionamento que trouxe o confinamento, multiplicando o uso dos dispositivos eletrónicos e retirando-nos dos espaços coletivos. Leio na imprensa diária muitas discussões de prós e contras do teletrabalho. Quanto a mim, para além da urgência de estarmos alerta aos abusos, à suspensão de direitos laborais fruto do esforço de gerações, preocupa-me a porta aberta que fica para o futuro, quando a pandemia atual tiver passado, quanto ao impacto dos meios eletrónicos no quotidiano laboral, que afinal é o que estrutura a vida da maior parte de nós, dependentes das rendas do trabalho. Confesso que eu já me sentia excessivamente eletrificada antes do confinamento, já tinha a prática de não abrir o correio eletrónico institucional em casa, porque me tenho sentido invadida no meu espaço íntimo por algumas mensagens. Para além de este sentimento de estar constantemente em alerta que me produzem correios eletrónicos e mensagens de telemóvel. Tinha eu esse muro a proteger o meu espaço privado e agora vejo como a escola entra pela casa adentro, de docentes e famílias, como se nada fosse. E algo é.
Os horários, a cópia, a produtividade são mudanças que vieram com as vagas de industrialização e que estabeleceram outra relação entre o humano e o natural e com o próprio ato do fazer. A gasta dicotomia de antigos e modernos, tão velha já na história literária, encarnada agora num Mark Zuckenberg “casualmente” vestido, como se farda fosse, de “t-shirt”, enquanto a sua “criatura”, fora do controlo das instituições democráticas, vai minando a vida política mundial, ou a de apocalípticos e integrados de Eco, priva-nos das subtilezas e complexidades da realidade em que estamos imersos. Eu, que penso que não há homens novos e homens velhos, não consigo deixar de observar que estas dicotomias mascaram o estabelecimento de novas desigualdades criadas pelos dispositivos eletrónicos, que vão do controle das massas pelos dados ao tão diverso acesso aos direitos de cidadania cujo exercício depende cada vez mais da literacia digital. Será que há uma cidadania digital e outra analógica? Para além do custo energético, ambiental portanto, de mantermos esta imensa máquina de recolha de dados em funcionamento. “Luz e progresso em toda a parte, mas as dúvidas nos corações”, que dizia Rosália.
Será que há uma cidadania digital e outra analógica? Para além do custo energético, ambiental portanto, de mantermos esta imensa máquina de recolha de dados em funcionamento. “Luz e progresso em toda a parte, mas as dúvidas nos corações”, que dizia Rosália.
Muito tenho pensado eu no movimento ludista, do que também tivemos um episódio protagonizado pelas cigarreiras da Crunha, que no decurso de uma greve, em dezembro 1857, mandaram ao mar as novas máquinas que a empresa tinha comprado. Nessa reação contra as máquinas também havia reação contra o impacto que a industrialização teve não só nos laços da comunidade mas também na identidade dos artífices, transformados em operários. Não é que o estado anterior fosse ideal, mas o que veio a seguir também não melhorou a existência das pessoas que viviam do trabalho. O muito recomendável História do povo da Europa moderna, do historiador americano William A. Pelz, faz um completo relato das perdas na vida pessoal, como o aumento da violência familiar ou a perda de domínio sobre o tempo com a imposição de horários, das resistências e alternativas que foram encontrando os camponeses proletarizados, alguma bem conhecida por nós, galegos, como a emigração à América, assim como o papel fundamental dos estados na substituição do trabalho artesão pelas manufaturas industriais. Sem esquecer a importância da escravatura na criação das condições para o desenvolvimento da Revolução Industrial. Nem deixa de fora o dado do aumento exponencial consumo de bebidas cafeinadas, que naquele tempo se converteu numa necessidade social para aguentar as novas condições de trabalho. Questionar a narrativa do progresso e do desenvolvimento não é lamentar-se por um mundo arcádico perdido, é um exercício para compreender como se costruíram as desigualdades deste mundo, como chegamos a este momento do século XXI nestas condições, de que continuidades vimos neste tempo em que, demonstrado está por esta pandemia, de facto não se produziu nenhum fim da história.
Muito tenho pensado eu no movimento ludista, do que também tivemos um episódio protagonizado pelas cigarreiras da Crunha, que no decurso de uma greve, em dezembro 1857, mandaram ao mar as novas máquinas que a empresa tinha comprado. Nessa reação contra as máquinas também havia reação contra o impacto que a industrialização teve não só nos laços da comunidade mas também na identidade dos artífices, transformados em operários.
A batalha pela nossa dignidade como seres humanos volta a encenar-se (não sei se deixou alguma vez de ser assim) no respeito pelo trabalho, esse que se foi precarizando nas últimas décadas. A subserviência criminosa ao lucro como princípio reitor da economia envenenou as nossas relações sociais, minou a estrutura de comunidade e as relações entre nações. Horários impossíveis, famílias que não podem tratar dos velhos nem das crianças, despersonalização dos cuidados, para além das mudanças políticas com a ascensão da extrema-direita… As greves feministas têm mostrado o lado “acústico” da coesão social que as mulheres fazem. Cumpre parar a pensar um bocadinho como é que nos puderam convencer de que o trabalho não define a nossa identidade quando cada dia lhe dedicamos mais e mais tempo. Claro que essa reflexão, como a história nos ensina, chega mais longe quando é feita coletivamente, esse coletivo laboral que se nos foi destruindo com o precariado.
Podemos lamentar a desindustrialização das últimas décadas no Ocidente, e não só por não ter máscaras nem fábricas que as produzam. Se tivéssemos consciência de como são manufaturados os produtos que consumimos, também “como se nada fosse”, o nosso coração não aguentaria. Bem fez a Marcha Internacional das Mulheres em denunciar com a 5ª Ação Internacional como as empresas transnacionais destroem economias locais e condicionam os nossos sistemas políticos, marcando o dia 24 de abril, aniversário do desabamento dos edifícios Rana Plaza no Bangladesh em 2013, que vitimou 1127 pessoas, na maioria mulheres a trabalharem para indústrias têxteis. Para reconstruir os passos dessas mudanças na indústria têxtil temos muitos dados na comarca da Crunha.
Bem fez a Marcha Internacional das Mulheres em denunciar com a 5ª Ação Internacional como as empresas transnacionais destroem economias locais e condicionam os nossos sistemas políticos, marcando o dia 24 de abril, aniversário do desabamento do edifícios Rana Plaza no Bangladesh em 2013, que vitimou 1127 pessoas, na maioria mulheres a trabalharem para indústrias têxteis.
“Dê-me um pedaço de terra e eu construo uma casa, mas nunca estive em frente a um computador”, dizia o carpinteiro Daniel Blake no filme de Ken Loach. Onde é que foram os saberes que nos construíram? Quem não teve já a sensação de estar a andar em círculos como ele para fazer valer os seus direitos? O desprezo pelo saber manual, um desprezo que parece ser inerente à nossa civilização ocidental que tem tão complexa relação de paixão e desprezo pela matéria e a sua manipulação é, nesta hora da história de Ocidente, também um desprezo pelos velhos e a nossa herança. Como se fôssemos, nós, os ricos. “We are digital by default”, responde o funcionário do centro de emprego a Daniel Blake. E eu pergunto, porquê temos de ser “por defeito”? Em que retrónimo estão a ser convertidos saberes manuais milenares? Porquê temos de aceitar acriticamente a relação do estado com os cidadãos e, esperemos não chegar a isso, mas por esse caminho vamos, de entidades empregadoras e trabalhadores? A quem beneficia? A técnica pode ser boa ou pode ser má, depende do uso que dela fizermos. Não deve é ser autónoma dos direitos humanos.
O desprezo pelo saber manual, um desprezo que parece ser inerente à nossa civilização ocidental que tem tão complexa relação de paixão e desprezo pela matéria e a sua manipulação é, nesta hora da história de Ocidente, também um desprezo pelos velhos e a nossa herança. Como se fôssemos, nós, os ricos.
Acontece ainda, se pensamos em saídas, que a publicidade nos habituou à mensagem de que há uma correspondência unívoca entre instrumento e função, novidade na história da gramática e dos artefactos em que uma mesma peça pode desempenhar várias funções. Em 1936, na Europa dominada pelos regimes totalitários, o filósofo personalista Dénis de Rougemont, lançava um alerta no seu livro Pensar com as mãos. Sobre as ruínas duma cultura burguesa para a repercussão de séculos de dicotomia entre o mundo da cultura e das ideias dum lado e o mundo do trabalho manual por outro, criando uma cisão entre pensamento e ação, fins e meios. “Há os cinco dedos. Os cinco sentidos. As cinco partes do mundo. Sim, os cinco dedos da fada. Mas todos juntos compõem a mão. E a verdadeira condição do homem é pensar com as próprias mãos”. Cumpre pensarmo-nos como “faber”, porque são essas mãos com que agora não podemos tocar os que amamos que têm mediado na nossa relação com a natureza, na génese da linguagem, geneticamente ligada à memória da criação de instrumentos. Também de instrumentos musicais, afortunadamente. Pensar fora dos moldes da cópia e a produtividade com que a manufatura industrial foi substituindo a maneira imediata de relacionar-se com a matéria e que foi desenhando as formas do nosso imaginário e as marcas da memória. Não só somos nós e os outros, o civilizado e o primitivo divididos pelo domínio da escrita ou qualquer outro avanço técnico revolucionário. A maneira em que fazemos o objeto continua a criar a nossa identidade como sujeitos, como sempre, e nisso não há retrónimo acústico que valha. O que fazemos com as mãos fazemos com a linguagem e o que fazemos com a linguagem fazemos com os outros e com o mundo.