Em 1955, numha carta ao seu editor, J.R.R. Tolkien expunha alguns dos princípios morais e estéticos que inspiraram a sua obra, e escrevia: ‘encontro especialmente comovedor o enobrecimento do inobre. Estou namorado (evidentemente) das plantas e sobretudo das árvores, e sempre o estivem; e o seu maltrato por parte dos homens sempre me resultou tam difícil de aturar como a outros o maltrato aos animais’.

Elevar as cousas pequenas, cantar o humilde, foi um dos impulsos deste conhecido criador de literatura fantástica, e por isso os protagonistas do seu O Senhor dos Anéis som pessoas pequeninhas, quase minúsculas, aldeaos ou vilegos esquecidos, sem façanhas nem passados gloriosos no seu haver. No mundo do humilde inclui-se qualquer dos seres do mundo natural, e eis a sua defesa das árvores. Na novela, Tolkien também fabulou umha espécie de árvores falantes, lentas e quase impossíveis de escuitar polo ouvido humano, que quando chega o momento da verdade começam a andar e, como um exército em andamento, freiam violentamente as tropas inimigas que desflorestavam e inçavam o espaço de torres, minas e prédios.

Tolkien foi um católico conservador, simpatizante do Império británico, que porém era enormemente sensível aos efeitos do industrialismo na paisagem; quase nom utilizava o carro, e amaldiçoava os blocos de tijolo onde morava a classe média académica inglesa, da que ele fazia parte. Em certa medida pode recordar ao nosso Otero Pedraio, se bem a sua recepçom social deu-lhe umha dimensom incomparável, até o ponto de fazer-se umha icona da cultura popular de Ocidente. Por curiosas reviravoltas da história, o sucesso editorial imprevisível d’O Senhor dos Anéis fijo da sua obra umha bandeira de parte do movimento hippi e da psicodélia dos anos 60; as correntes alternativas da altura entendêrom a obra como umha alegoria da defesa da Terra, para desgosto do autor, apavorado ante qualquer desafio social ou político à ordem.

Que a mensagem ecologista germolara nestes dous meios tam distintos –o conservadorismo católico e a esquerda cultural, nom obreira– deita muita luz sobre o desencontro de grandes correntes revolucionárias com as luitas ambientais, desencontro que ainda hoje pagamos. Se falarmos das classes cultas ou proprietárias, conservadoras, que alertavam sobre a destruçom do meio, a esquerda rupturista apontava à fraude moral de querer conservar a Terra mantendo aliás as hierarquias sociais injustas; e se nos referirmos aos activistas estudantis, literatos ou intelectuais da contracultura, as forças revolucionárias afirmavam que a ‘consciência’, com maiúscula, nom era a ecologista, nem a espiritual, nem tam sequer a ética, senom a consciência política da classe. É por isso que ler literatura fantástica concebia-se como um exercício diversionista e algo diletante. O militante formava-se com Levantado do Chão de José Saramago, A Mulher Habitada de Gioconda Belli ou, nas nossas coordenadas, a poesia de Celso Emílio Ferreiro. Quem debruçavam em mundos imaginários pertenciam ao bando da passividade, ou a esse modelo de homem jovem temeroso de fazer-se adulto e num escapismo permanente, tam representantivo da Europa opulenta de inícios do século XXI.

O militante formava-se com Levantado do Chão de José Saramago, A Mulher Habitada de Gioconda Belli ou, nas nossas coordenadas, a poesia de Celso Emílio Ferreiro.

Se a esquerda revolucionária acertava nalgo era em assinalar que nem a intelectualidade conservadora nem a esquerda cultural eram forças sociais capazes de (ou dispostas a) colocar um repto sério ao sistema económico e aos regimes políticos liberais que o protegem. E se a esquerda revolucionária se enganava nalgo era na sua crença de que se poderia edificar umha sociedade diferente numha biosfera que, depredada polas nossas formas de vida, quase nom permitiria a vida humana. Nas inspiraçons literárias da fantasia reaccionária, ou nas intuiçons da contracultura, latejava umha ideia central: nom temos, como humanos, a altura que acreditávamos ter, e a nossa desmesura na produçom e consumo pode ser facilmente respondida pola Terra com um pequeno esbirro que nos elimine da cena sem que nada no Universo se comova.

Nesta encruzilhada, é pertinente matinarmos se a imagem do ‘exército de árvores’ é umha figura poética sem mais pretensom que a beleza, ou se tem algum pouso de verdade com potencial para o arredismo. A primeira vista, a palavra ‘exército’ remite a tensom e violência, e nada mais longe que a impressom de recolhimento e serenidade que nos produz umha fraga; a metáfora militar também nos remite a ordem e hierarquia, e as únicas florestas que podem associar-se com tal cousa som os desertos verdes da monocultura industrial do eucalipto.

E porém, há outras leituras: as árvores podem determinar o espaço do ritual e da lealdade colectiva, e assim o fam, sem ir mais longe, os pinos de Bergantinhos do nosso Pondal, que encetam o diálogo do hino para levar-nos ao combate defensivo. E se bem é certo que existem formaçons humanas ou produtivas baseadas na hierarquia rígida, nas formas cristalizadas e na rotina, os bosques também nos falam de hierarquias flexíveis e dinámicas assentes na simbiose, isto é, na aliança de incontáveis diversidades orgánicas que, cooperando e concorrendo a um tempo, superam as suas carências e dam lugar a umha ordem superior. Como sabe qualquer bióloga ou qualquer militante, quanto mais ricos os processos simbióticos, também os humanos, mais ricos os ecossistemas e os grupos sociais que generam ideias e mudanças. À rigidez esmorecida da burocracia, com o seu ritual gélido e oco, ou da monocultura, com o seu ciclo milimetrado de produçom e consumo, bem se poderia contrapor a frescura dumha fraga, ou dum verdadeiro movimento social, que é a um tempo permanente e móbil, previsível e criativo, tenso e harmónico.

À rigidez esmorecida da burocracia, com o seu ritual gélido e oco, ou da monocultura, com o seu ciclo milimetrado de produçom e consumo, bem se poderia contrapor a frescura dumha fraga, ou dum verdadeiro movimento social, que é a um tempo permanente e móbil, previsível e criativo, tenso e harmónico.

Nos últimos lustros, um dos movimentos populares mais originais e cooperativos da nossa Terra chamou-se ‘Brigadas Deseucaliptizadoras’ que, além de deter o empobrecimento do solo, reverte a esterilidade com novas plantaçons autóctones e mao de obra militante; e no passado verao, baixo os efeitos combinados da seca e do calor abrasador chegado de África, a vizinhança de Sobredo, Seceda ou Eiriz, no Courel, salvou-se do lume combinando o trabalho em mao comum com a ajuda das árvores: ‘salvárom-nos os soutos’, afirmou um vizinho na imprensa comercial, sintetizando numha frase toda a sabedoria que poderia conter-se num informe científico.

Esponjas para a água à míngua, fogar para a fauna, fonte de alimento e calor humano, parasois contra um sol ameaçante, riqueza para o solo, vínculo com os devanceiros e a língua, e símbolos imprescindíveis para o nosso futuro nacional. Quiçá nom exista realidade física mais visível e imagem tam poderosa para ilustrar o futuro que arelamos. É provável que haja na Galiza umha futura relaçom recíproca entre a sobrevivência dos nossos bosques e o florescimento de movimentos colectivos que, inspirando-se na riqueza e versatilidade do mundo natural, desenvolvam a energia suficiente para enfrentar toda a obscuridade que ameaça.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.com]