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Borxa Colmenero: “Na lógica neoliberal, o outro é um competidor ou inimigo em potência”

Jurista, professor universitário e membro do Espaço Clara Corbelhe, Borxa Colmenero leva a cabo umha pesquisa profunda dos mecanismos do poder na sociedade contemporánea; nos últimos anos, a sua investigaçom aborda o funcionamento da lógica do capitalismo desenvolvido, e esta bagagem vem de plasmar-se na obra “O governo neoliberal da vida. Uma leitura (pos)foucaultiana”, recentemente editado por Axóuxere. Com ele falamos dumha lógica de controlo que parece empapar todos os ámbitos da vida, e das possibilidades de resisti-la.

Que te levou a escrever umha obra como “O governo neoliberal da vida”?

A origem do livro é académica. Parte do trabalho realizado no programa de doutoramento de Teoria e Filosofia Política da USC. Tinha interesse em entender as novas formas de governança e controlo social na contemporaneidade; isto abordara-o já no livro “Vidas culpáveis” (Laiovento, 2017), mas precisava dar com um maior suporte teórico, reforçar aquelas teses que desenvolvia. Tratei entom de analisar teoricamente umha realidade que vivemos todos: como o neoliberalismo mudou as nossas formas de relacionamento, quer nos movimentos sociais, na academia, no mundo judicial, nas formas de controlo e, ainda, como este sistema administra a desordem social.

Falas do neoliberalismo como “o espírito dos tempos”. Poderias desenvolver esta ideia?

Poderíamos partir dumha frase muito conhecida de Margaret Tatcher: “o (neo)liberalismo, diz ela, nom vai tanto de mudar a economia, quanto de mudar as almas”. O neoliberalismo nom é, fundamentalmente, nem um sistema ideológico nem um programa de políticas públicas concreto, é umha forma de vida que passa pola criaçom de subjectividades muito específica. Estas passam pola necessidade de se relacionarem entre elas em chaves de mercado.

E se formos ao clássico do que nom nos devemos sair nunca, Marx, este já fala do “sujeito automático” para explicar um processo que é muito fundo. Nom existe, portanto, um centro de mando, um poder vertical, senom que se produz umha certa automaticidade na relaçom. Esta é umha noçom complexa, mas crucial, manejada mesmo por um dos autores mais interessantes do marxismo de hoje, Soren Mau. Este é um autor dinamarquês que numha obra recente, “Mute Compulsion” (Verso, 2023), tenta conciliar a teoria de Marx com a proposta foucaultiana do poder, e eu penso que bate certo. Também outros pensadores, caso de Robert Kurz ou Anselm Jappe, apontam numha direcçom complementar, utilizando por exemplo o termo “sujeito narcisista”.

Como encaixa esse automatismo do que falas com a existência de centros de poder muito reconhecíveis e muito poderosos?

Eu, para identificar o mundo das políticas institucionais, gosto de utilizar a metáfora do arquipélago. Trata-se dum conjunto de ilhas que nem sequer estám unidas, som ilhas independentes, mas conformam umha regiom: e nesta regiom, existe obviamente um primus-inter-pares que é o Estado. Pola sua volta, redes de empresas, corporaçons, think tanks…obviamente, é um poder material, nom apenas discursivo. E alguns autores de base foucaultiana nom apreciárom suficientemente isto, que me parece fulcral.

Que achegam os autores que estudas, que nom achegara já o marxismo clássico dos dous séculos anteriores?

Eu procurava um diálogo no interior daquele marxismo que colocara o foco nas transformaçons mais recentes da sociedade contemporánea, e procurei de novo em autores referenciais como David Harvey, Perry Anderson, os nomeados Jappe ou Kurtz. E pugem-nos a dialogar, por vezes num diálogo difícil, com autores da tradiçom de Foucault, ou com o marxismo italiano que procede de Toni Negri, ou com clássicos da teoria do poder como Carl Schmitt ou Giorgio Agamben. Como nom fixem teoria pura, senom que é umha obra que fala do mundo que vivemos, relacionei todas estas achegas com outros autores muito influentes no mundo das políticas públicas dentro do denominado New Public Management, que som os que, neste momento, levam à praxe o governo neoliberal em occidente através da gerência pública.

Eu, para identificar o mundo das políticas institucionais, gosto de utilizar a metáfora do arquipélago. Trata-se dum conjunto de ilhas que nem sequer estám unidas, som ilhas independentes, mas conformam umha regiom: e nesta regiom, existe obviamente um primus-inter-pares que é o Estado.

Que poderias dizer desta escola neoliberal, em geral menos conhecida para o público de esquerdas?

Trata-se de pessoas intelectual e politicamente muito influentes, nomeadamente no mundo anglo-saxom. Na essência, o que propugnam é que o Estado incorpore os critérios do management empresarial na sua acçom, e a partir daí, o papel de técnicos e assessores é conduzir o poder nesta direcçom. Dou-che alguns exemplos: nos Estados Unidos, a nova gerência pública entrou de cheio no governo Obama e aprofunda com Biden, acometendo grandes transformaçons da saúde pública com os critérios de gestom do risco, analisando a realidade com critérios puramente económicos: que índices de saúde pública há numha zona x? Pois em funçom desses índices, valoramos se essa zona tem que ter infraestrutura sanitária ou nom. Ou no mundo penitenciário: estes presos ou presas, que risco de reincidência apontam? E em funçom da estimaçom, aplicam-se umhas receitas repressivas ou outras. Em síntese, aplico o que é rendível com critérios prospectivos, de estimaçom de futuro.

É muito importante assinalar, julgo também, que tais assessores trabalham para governos ditos social-democratas como para governos conservadores. A sua é umha influência transversal.

Afirmas também que esta lógica funciona de maneira muito efectiva na gestom da desordem, e na fase de provável colapso em que nos adentramos. Poderias profundizar nesta tese?

Tendia-se a pensar que em situaçons de crise o capitalismo teria muito difícil desenvolver-se com certa normalidade, mas estamos a ver que as situaçons de desordem som na realidade compatíveis com o sistema. Isto digo-no na parte final do livro, e mereceria um trabalho em si mesmo, porque é muito novidoso, que o neoliberalismo funciona muito bem na desordem, porque radicaliza as suas lógicas. Nesses momentos reforçam-se as teses do individualismo, da culpabilizaçom, do “vós, irresponsáveis, que vos excedeis”, como vimos na crise das finanças, e que carrega sobre nós a responsabilidade polos fracassos. A crise é umha forma de governar essas vidas, acompanha a dinámica de poder que é o Estado de excepçom. Recordemos que a França estivo oito meses em estado de excepçom, o pretexto era o yihadismo, mas todo isto serviu para lançar operaçons contra ecologistas, sindicalistas…que imos dizer do caso galego? Aqui aproveitou-se a lógica de excepçom desenhada para o modelo basco para perseguir o independentismo. Isto som os arquipélagos de excepçom numha situaçom de normalidade democrática, como falávamos precisamente aqui noutra entrevista.

E logo, todo isto vimo-lo num modelo macro na gestom do virus: os próprios princípios liberais ficárom em suspenso polo estado de emergência, que na prática era um estado de excepçom: proibe-se circular, nacionalizam-se empresas, suspendem-se mercados…isto é o que vimos de viver, no contexto dum neoliberalismo, certamente, pos-hegemónico, à mingua, nos tempos do debalar energético, mas estas som as suas lógicas, as que dominam no mundo que habitamos.

Tendia-se a pensar que em situaçons de crise o capitalismo teria muito difícil desenvolver-se com certa normalidade, mas estamos a ver que as situaçons de desordem som na realidade compatíveis com o sistema. O neoliberalismo funciona muito bem na desordem, porque radicaliza as suas lógicas.

Nos arquipélagos de excepçom que citas aparece agora o novo conceito das “liberdades vigiladas”, aplicado contra ex-presos independentistas.

Certamente, quando eu digo que se pode culpabilizar a populaçom, quero dizer que o neoliberalismo já é quem de identificar os sujeitos ou os sectores “perigosos” nisso que os gestores chamam “profiling”. Perfis susceptíveis de ser delitivos, segundo análise prévia. Entom, se som perigosos, é legítimo monitorizar. Umha monitorizaçom branda, mas implacável: nom tem encarcero mas vigio-te, e quando a ocasiom o requerer, os teus direitos ficam suspensos.

Isto só se pode entender em contextos de fraqueza comunitária. Um autor italiano, Roberto Expósito, aborda a ideia da “comunidade” como a obriga, o “munus”, entre os sujeitos. Isto é a obriga comum, a obriga de nos ajudar, cooperar, em comunidade. Porque o que nos une é a nossa incompletude, a necessidade dumha existência coletiva. Logo, qual é a lógica por trás da liberdade vigilada? Que quebra o “munus”, que nom temos já dívida com ninguém, senom que o “outro”, o migrante, o refugiado, o ex-preso, é alguém alheio, alguém ameaçante mesmo. E o seu controlo nom me interpela.

Falas da sociedade neoliberal como umha sociedade composta por pessoas que se concebem como empresários de si mesmos. Pode-se aplicar este conceito à Galiza?

Pode, sem dúvida. Certo que temos umha condiçom semi-periférica por nom gozarmos de poder político, digamos que vivemos passivamente no centro do mundo capitalista. Mas estas lógicas penetrárom já, e condicionam a grande parte da populaçom. A ideia do empreendedorismo está em muitos sectores, mesmo progressistas: nom dependas de ninguém, gere a vida por ti mesmo, constrói a a tua autonomia…autonomia que na realidade nom é tal, porque te isola da comunidade e fai-che depender de grandes lógicas impessoais. Assim que as tuas relaçons começam a ser todas elas relaçons privadas.

Como podemos resistir essa dinámica?

No caso da Galiza, eu intuo que essas resistências poderiam articular-se através da resistência em chave popular e nacional, que pode oferecer uma base emancipatória chave. Há, como vemos, um processo poderoso de construçom de subjectividades neoliberais e de estatalidades muito fortes, mas o capital, temos que dizê-lo, nom o produz tudo. Por que digo isto? Porque há umha base patrimonial, territorial, antropológica, que é prévia, como um ADN nosso. E acho que se manifesta em situaçons limite, como podem ser, por darmos um exemplo, na vaga de incêndios. Aí vemos que existem solidariedades inatas, gravadas muito fundamente, que se activam. Nom temos que inventar-nos um passado inspirador, porque está aí, temo-lo, e pode ser umha base sobre a que construir o antagonismo.

Na Galiza emos umha condiçom semi-periférica por nom gozarmos de poder político, digamos que vivemos passivamente no centro do mundo capitalista. Mas estas lógicas neoliberais penetrárom já, e condicionam a grande parte da populaçom. A ideia do empreendedorismo está em muitos sectores, mesmo progressistas

Na tua obra, consideras que os projectos de governo consolidam sempre a “empresarializaçom do Estado” e do que chamas “umha governança pospolítica”, independente das ideologias. No caso galego, e com a excepçom do independentismo, a grande maioria do nacionalismo nom concebe mais horizonte transformador que a mudança eleitoral. Nom há entom alternativa além da pura gestom?

Deveria havê-la, mas eu nom tenho a fórmula. Como ainda nom podemos responder à pergunta com certa exactitude, penso que o importante nestes tempos é soster a pergunta. E a partir daí abrir certos caminhos. Se o que entendemos por “político” se limita à “política”, aquilo que é admisível, hoje por hoje só se admite o que está dentro da gestom institucional. E isto, ao estar atravessado por lógicas de gestom de resultado, de eficientismo, nom nos deixa margem de movimento. Mesmo há casos bem-intencionados que revelárom os limites. Pensemos por exemplo no caso da chamada “nova política”, particularmente a gestão municipal de Manuela Carmena em Madrid, que cito agora pola sua particular procedência. Ela provinha do mundo penitenciário das juntas de tratamento, que como sabemos suaviza os regimes de castigo em funçom de comportamento e expectativas. Na prática, isto vira num sistema de submissom perfeito, como acontece nos módulos de respeito, onde o preso ou a presa sofre menos pressom coercitiva, mas porque ele mesmo se aplica o regulamento, a disciplina. Pois isso aconteceu também no campo institucional.

Nas instituiçons, toda acçom política está mediatizada por umha malha muito mesta de funcionários, de técnicos, de gabinetes jurídicos, de agências de qualificaçom…de maneira que dentro da política nom pode haver antagonismo nem conflito, apenas técnica. Qual é o repto, a meu ver? Alargar o ámbito da política, fazer que nom se confine a isto, fazer que a política real ocupe mais e mais terreno, e que assi tenha um alcanço que supere a simples gestom da desordem.

[Esta entrevista foi publicada originariamente no galizalivre.com]

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