Teresa Moure e os corpos críticos

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Politicamente incorretaO coletivo Tiqqun ataca a teoria “entendida como única forma de escritura que não implica uma prática. Daí o notável dinamismo de uma teoria que pode dizê-lo tudo sem que disso possam extrair-se jamais, afinal, consequências; consequências para o corpo, é claro”. Com certeza este não é o caso de Politicamente incorreta. Ensaios para um tempo de pressas, onde Teresa Moure investiga uns outros espaços para a transformação social, privilegiando sempre o corpo: criança, alimentação, cuidados… De forma que não é um livro que se possa ler sem temer consequências práticas. Para além da ênfase nos corpos críticos, outras linhas de força atravessam estes ensaios: a certeza de que o natural é político, a cisão sujeito/objeto como matriz das relações de dominação, e a certeza, com Raoul Vaneigem, de que “Quem fale de revolução e luta de classes sem se referir explicitamente à vida quotidiana, sem entender o que o amor tem de subversivo e o que a rejeição das restrições tem de positivo, tem um cadáver na boca”.

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Conta a lenda que nas Pontes de Garcia Rodrigues nasceram juntas três fontes como três irmãs. O mar organizou entre elas uma corrida: a primeira a chegar a ela havia de levar, como prémio, um homem cada ano. As três fontes puseram-se a correr para ao mar, mas a distância era tão grande que, esgotadas, tiveram que deitar-se para descansar. A primeira em acordar, silandeira, empreendeu o caminho sem avisar as outras. Arrastava-se polo chão como uma cobra para não acordar as suas competidoras. A continuação despertou a segunda, que partiu furiosa, mas sem avisar a terceira. Descobrindo-se sozinha e enganada polas suas irmãs, a última fonte correu com fúria, atravessando agras e montes, furando penedos e saltando desníveis, até chegar de primeira ao mar. Assim é como nas Pontes, cada vez que alguém afogava em tão bravo rio, recordavam a crueldade que produziu o competitivismo.

Por desgraça, a literatura não continuou o caminho da cultura popular e, aponta Teresa Moure, é difícil encontrar um romance em que a protagonista seja uma montanha ou um rio. A Modernidade, com a sua divisão metafisica entre sujeitos/objetos, em que sujeito é sinónimo de homem-burguês-brancos-etc…, reduz o resto do mundo, das mulheres às plantas, ao nível de objetos, carentes de direitos e instrumentalizáveis. Os mundos indígenas ainda vivos, em constante conjura de separação sujeito/objeto, conservam uma espécie de solidariedade cósmica que nos permite imaginar mundos mais justos e vidas mais dignas. O termo quíchua uyway, que ecoa com “cultivar” a “construir”, apela a uma relação mútua de cuidado generalizado. Tal e como explica Justo Oxa Díaz, uyway e um “conceito” que tinge todo o que está incluído na vida andina, a Pachamama cria-nos, o Apu cria-nos, cuida-nos, e nós cuidamos deles… e nós criamos os nossos filhos e eles hão de criar-nos quando formos anciãos. Nós criamos as sementes, os animais e as plantas, e eles também nos criam”.

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Conta Teresa Moure que em língua kalispel, falada por umas sete mil pessoas entre o Canadá e os Estados Unidos, não se pode dizer “lago” ou “montanha”, porque não têm substantivos para tais elementos geográficos. Têm verbos, e então dizem que “montanheia” ou “lagueia”. João Maimona, poeta e revolucionário angolano, repite nos seus poemas expressões como “aprendi a angolar” ou “angolei contigo”. Imerso num processo de construção nacional após a independência, bem poderia falar de “angolizar”, como descolonização da imposição portuguesa e criação de irmandade entre os diferentes povos indígenas, mas Maimona fala de “angolar”. Dá que pensar sobre a sobérbia que pode haver em “galeguizar”, a relação sujeito/objeto que instaura, e o esquecimento de si que provoca (o que há que galeguiar é o Outro). Na ideia de “galeguizar” palpita a política denunciada polos Tiqqun como “grande separação”, ou por Raúl Zibechi como “divisão” e “estatalização”. Passar de galeguizar a galizar, devir verbo, falar com os factos, pode ser um primeiro passo para descolonizar a própria ideia de país que maneja o nacionalismo.

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Advertindo sobre a mitologia política que encerra a nossa linguagem, Teresa Moure recorda que na Galiza “as fragas virgens pincham-se, cimbram-se, ou, muito eloquentemente, vergam-se, para se converterem em terras férteis”. Ainda, nos Ancares o vareio dos castinheiros fazia-se com a grande “vara das faldas”, sendo tarefa do homem bater forte. Poucas metáforas sexuais eram tão habituais como as da moça abalada como uma fruteira:

Esta noite habemos de ir

eu e mais o caramarada

a abalar unha Pereira

que nunca foi abalada

Eis que o ecofeminismo seja uma aliança natural. Igualmente, a linguagem da esquerda desenvolvimentista está completamente impregnada dessa ideia do domínio do homem sobre a natureza; o grande líder comunista costumava aparecer retratado como um grande engenheiro, com todo o tipo de máquinas, engrenagens, chaminés e demais. Na Galiza os nossos líderes falam em termos de “massas”, “compactação”, “acumulação de forças” e mesmo “diques de contenção”, “canalizações”, etc. Frente a essa liderança tecnócrata, mal temos reparado no mais persistente “sujeito recolucionário” do país: as mulheres labregas, jamais vistas como “legítimas adversárias” –em termos de Chantal Mouffe– não só polo poder estatal, mas também não polos partidos, ancorados nas categorias políticas modernas. “Praticamente –recorda Moure– em cada um dos territórios do planeta empobrecidos polo capitalismo tem surgido uma resposta feminista ligada à defesa da terra”. Entre nós não só surgiu, senão que jamais desapareceu, embora invisível à política de engenheiros. Perante diques de contenção, o devir-rio.

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“Esta noite fizeram o amor, a classe de amor

que é outro país, um país alheio, nem o

teu nem o meu”.

Nadine Gordimer, O encontro

Contra a tolémia modernizadora de “atingir a história”, Carlos Fernández Liria propõe, trabalhando o programa de Alba Rico –“revolucionário no económico, reformista no político, conservador no antropológico”–, aprender das culturas indígenas a construção de espaços libertados do tempo e a voragem do progresso, zonas de ritmos lentos, como essas cabanas em que se juntam as culturas amazónicas no centro da aldeia, só para parolar e estarem juntas. Teresa Moure por sua parte propõe a sexualidade e a pele como zona temporalmente libertada, “achegar-nos de novo à experiência mágica de fugirmos dos pesos da existência para sermos apenas pele bem satisfeita, bem acarinhada e bem lambida”. Abandonar, enfim, o mito progressista de alcançar a História –que não é outra que a do capitalismo–, e realizar com Agostinho Neto

… o desejo incontido de se realizar

de ser homem (mulher)

de encontrar o calor supremo na superfície carnal do outro (da outra).

MOURE, Teresa. Politicamente incorreta. Ensaios para um tempo de pressas, Através, 2014.