Lendo a correspondência carcerária de Nelson Mandela, umha palabra chama a atençom: piccanin. Aparece numha carta que escreveu Madiba a Adelaide Tambo no 31 de janeiro de 1970, e na qual o líder anti-apartheid se lembrava carinhosamente das suas companheiras de militância. A umha delas, Ruta, chama-lhe “piccanin”. Mandela escrevia num inglês salpicado de termos africanos, principalmente tirados da sua língua materna, o xhosa, mas também do sesoto, do setswana e mesmo do africâner, a língua do colonizador que Mandela se esforçava em aprender. Julia Ibarz, a tradutora destas cartas ao espanhol, aclara em nota de rodapé: “Mandela utiliza aquí el apelativo piccanin que traduzco por ‘negrita’. Piccanin o piccaninny es una palabra originalmente peyorativa probablemente derivada del portugués pequenino. Significa ‘niño pequeño o aborigen’.”i
Piccanin pom-nos na pista do fascinante périplo oceánico das nossas palavras, que rodearam pola primeira vez o continente africano nas bocas e línguas dos marinheiros de Bartolomeu Dias (1487-1488), seguidos dos de Vasco de Gama (1497), caminho do Índico. Estas singraduras foram deixando, como em amilhadoiros verbais, topónimos nossos por toda a parte: a Ponta Fragoso, o Cabo da Boa Esperança (chamado assim polo quixotismo do rei João, pois sobre o terreno Dias baptizara-o primeiro com o mais realista de Cabo das Tormentas), a Ponta de São Brandão, o Cabo das Agulhas (hoje Kaap Agulhas e cidade de L’Agulha –conservando a grafia galega–, parentes toponímicos da nossa Ponta da Agulha, altura de 553m na freguesia de Rodis, na Serra de Monte Maior), o Cabo do Salto, a Ponta da Estrela, o Cabo das Vacas, o Golfo dos Vaqueiros… e a costa de Natal (pola data em que foi navegada) caminho do Moçambique, onde a língua apoussou.
Umha das teorias que pretendem explicar as assombrosas semelhanças entre todos os pidgins do mundo é a que defende a existência dum pidgin primitivo de base galego-portuguesa.
E depois da descoberta: a barbárie. O comércio de escravos arrincava milheiros de pessoas das suas comunidades, mui diferentes entre elas, para reconcentrá-las nesses Babéis da exploraçom onde se forjaram os pidgins a jeito de línguas francas. Precisamente, umha das teorias que pretendem explicar as assombrosas semelhanças entre todos os pidgins do mundo é a que defende a existência dum pidgin primitivo de base galego-portuguesa. Por palavras do lingüista Tore Janson: “Provavelmente existiu um pidgin muito difundido baseado no português, e parece que deixou vestígios na maioria dos pidgins e crioulos. Por exemplo, quase todos têm a palabra pikin ou pikanin, do português pequeno ou pequenino ou do castelhano pequeño/pequeñín.”ii
Pequeninho, pikanin, piccanin… Vamo-nos achegando assim, de vagarinho, de regresso a umha Ítaca inesperada, ao lugar de Pecenim, na freguesia ordense de Pereira. Topónimo família dos de Pecenhe e Pecene (Paredes de Coura), explicados por J. P. Machado como “genitivo de Pecena”, nome pessoal de mulher documentado já no ano 994. Porém, para Almeida Fernandes: “Tudo indica o genitivo Pecen(n)i sc. “vila” de Pecen(n)us, que é o mesmo que forma antiga do actual “pequeno” (raiz pré-romana pic–) […]”.iii Entom para o caso de Pereira, Pecenim deveu ser a *(villa) Pecenini, propriedade dum tal Peceninus, o mesmo nome mas em diminutivo: o ‘Pequeninho’; alcunha hoje ben vigente, porquanto em cada geraçom de ordenses sempre veu havendo algum Peque ou Peke.
Do galego na África do Sul só ficam ruínas, sendo tam forte a influência anglófona (Tanzânia, Zâmbia, Zimbabwe, África do Sul) que a própria FRELIMO pensara nos seus inícios em usar o inglês, ainda que no seu I Congresso de 1962 finalmente adoptara o galego-português como instrumento de unificaçom nacional contra o imperialismo luso (as atas, contudo, ainda foram redigidas em inglês). E é que, longe de qualquer nostálgia imperial na reivindicaçom destas viagens desconhecidas do galego polo mundo, tampouco convém cair em complexos. O escritor e ex-combatente moçambicano Mia Couto explica-o com claridade em A varanda do frangipani: “O português não se adoptou como um legado, senão como o mais importante trofeio de guerra”, parafrasando o argelino Kateb Yacine, quem reconhecia que para ele “a língua francesa foi e continua a ser um botim de guerra”. A mesma ideia era defendida polo grande independentista da Guiné-Bissau e Cabo Verde, Amílcar Cabral, quando dizia que “o português é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram”iv. Entom, como nom reivindicá-lo nós, se mesmo Boaventura de Sousa Santos manifestara na Corunha que para ele aquela era “a primeira vez que falar português supom para mim um ato descolonial”.
Notas
i.Nelson Mandela, Cartas desde la prisión, trad. Julia Ibarz, Barcelona, Malpaso, 2018, p. 172 n. 2.
ii.Tore Janson, História das línguas. Uma introdução, trad. Fernando Vasquez Corredoira, Santiago de Compostela, Através, 2018, p. 221.
iii.Almeida Fernandes, 1999, pp. 462-463.
iv.Citado em: José Augusto Barbosa, Língua e Desenvolvimento: o caso da Guiné-Bissau, disertaçom de mestrado, Universidade de Lisboa, 2015, p. 30.