O mistério maçónico da igreja de Ordes

Partilhar

mapa-a-igrexa-vilamaior

A palabra galega “igreja” vem do latim vulgar eclesiam, transformaçom do latim clássico ecclesiam, e que por sua vez procede do termo grego ekklesía, com o significado original de ‘assembleia’, em referência aos tempos primitivos em que o cristianismo era um movimento anti-imperialista, igualitarista e amancipatório. Daí, de dar nome à assembleia (porque isso eram as primeiras missas), passou a denominar o edificio em que tinham lugar e depois à instituiçom que, aos poucos, foi hierarquizando o coletivo cristao e desvirtuando a ideologia original de Jesus de Nazaré.

No seu romance histórico, O castelo de Pambre, Antonio López Ferreiro ainda lembrava estes usos democráticos da igreja, que faziam horna à sua etimologia:

“[…] entonces non era cousa tan nunca vista que a eirexa fose sitio en que se fixesen xuntas comunales, se ventilasen asuntos civiis, se notificasen cartas e sentencias e se celebrasen outros autos púbricos de carauter segrar. Inda por moito tempo o adro das eirexas era o lugar propio e sinalado aos concellos e xuntas populares. É certo que os Concilios e os Perlados cramaban contra o abuso de celebrárense nas eirexas taes autos; máis á veces, co gallo de que era por necesidá e pol’o ben común, non se reparaba nas ditas prohibicións”1.

A hierarquia eclessiástica e outras autoridades luitaram intensamente contra este assemblearismo popular, a começar polo bispo de Gelmírez no seu Decreto de 1113 para as Terras de Santiago, em cujo artigo sétimo reconhece a instituiçom vizinhal do concelho campesinho, mas também se aprecia como pretende absorvê-lo no conventus ecclesie ou “assembleia de fregueses” assistentes à missa dos domingos e dias feriados, que como indica Barreiro Somoza, “nunca sería tan numerosa como la “junta vecinal” y que los clérigos, en cuanto agentes del señor en este caso, podían fiscalizar y en buena medida dirigir”2. Séculos depois, nos Acordos dos estatutos de 1543 para a diócese de Mondonhedo, por exemplo, dispunha-se que os párocos obrigassem os fregueses a guardarem a compostura na missa, e que nom se propassassem a “perturbar ni hablar cosa de concejo […], ni decir palabra desacatada contra su clérigo3. O dito popular “vam os cregos aos concelhos, traem os cucos nos capelos”4, deve referir-se a essa metedura de focinhos do poder eclessiástico nas assembleias de vizinhos.

Vila da Igreja, em Cerzeda.
Vila da Igreja, em Cerzeda.

Ao ser a atual divisiom territorial galega, em boa medida, o resultado da agrupaçom de vilares, aldeias e lugares por volta de umha igreja, conformando umha freguesia, nom é de estranhar a impressionante presença do topónimo a Igreja na toponímia ordense, dando nome segundo o Nomenclátor a 32 núcleos de povoaçom, nas paróquias de Anhá, Céltigos, Cerzeda, Ledoira, Moar, Papucim, Vitre, Albijói, Boado, Cabrui, Castro, Cumbraos, Messia, Olas, Visantonha, Xanceda, os Anjos, Calvente, Deixebre, Gándara, Oroso, Passarelos, Senra, Berreio, Campo, Morlám, Mercurim, Montaos, Vila Maior, Lesta, Beám e Aiaço. Às que há que somar três chamadas pola variante a Ireje, em Chaiám, Restande e Vilouchada; e duas a Eireje, umha em Pereira e outra em Tordóia; e a Vila da Igreja de Cerzeda. Contudo, há que matizar destas a Igreja / a Igrexa registados no Nomenclátor, nom se correspondem com lugares reconhecidos como tais polos vizinhos; e em outros casos, chaman-lhe com umha variante do estilo a Eireja, a Eireje, Ireja, Ireje, etc.… Por exemplo, o Nomenclátor recolhe o suposto lugar da Igreja em Mercurim, mas ninguém diria em Mercurim que existe umha aldeia chamada “a Igreja”; há, isso sim, a Casa de Filomena da Eireje, em que até os anos 1930-1940 morava o crego da paróquia, razom pola que se lhe chamava também a Casa do Cura, mas esta casa todos os vizinhos diriam que pertence ao lugar do Cruzeiro. Isto mesmo seguramente sucederá com muitas destes 32 lugares homónimos. Quando ao Igrejário de Meirama e ao de Senra, assim como a variante o Grijário, em Queijas, som lugares que num princípio faziam referência às terras reservadas para o sustento do crego que, em bem poucas vezes, seria ele mesmo o que as cultivasse.

igrexa-antiga-ii

A capela de Lurdes
A capela de Lurdes

Como é bem sabido a atual igreja paroquial de Ordes é de construçom moderna, sendo durante séculos a igreja da freguesia a chamada capela de Lurdes, muito mais antiga e de fasquia románica, tristemente destruída por umha nojenta manobra de especulaçom imobiliária polo próprio cura pároco na década de 1950. A memória daquela ignomínia mantém-se hoje em forma de lenda negra, atribuíndo ao sacrilégio umha série de sucessos extranhos sucedidos no lugar que ocupava a igreja e o seu campo-santo. Mas essa é outra história. O incrível da nova igreja de Ordes é que foi erguida graças ao concurso de nada mais e nada menos que Antonio Romero Ortiz, famoso político laicista e francmaçom, o que para o historiador Alberto Valín Fernández constitui “um dos paradoxos mais surpreendentes das contidas na enconada luita decimonónica entre o laicismo e o clericalismo”5.

Romero Ortiz, advogado compostelano, romántico e liberal, participou da Revoluçom Galega de 1846 que rematou nos fusilamentos dos mártires de Carral, conseguindo exiliar-se, junto com Antolín Faraldo, na lisboeta Rua da Palha. Jornalista e conspirador, Romero Ortiz achou melhor sorte com o giro cara ao liberalismo da política estatal, sendo eleito deputado e ministro de Graça e Justiça no primeiro Governo Provisório, e de Ultramar em 1874. Como destacado maçom, foi Grande Mestre do Grande Oriente de Espanha. Ao parecer iniciara-se na maçonaria durante o corto exílio português durante o qual preparou o vitorioso pronunciamento de setembro de 1868. Como é que este homem, alcumado de “lutero Ortiz” e que dedicou a sua vida a luitar polo laicismo e contra a omnipresença da hierarquia católica na vida pública, interviu na construçom dumha nova igreja em Ordes? Haverá rastos dos símbolos maçónicos no edifício? Talvez tenha a ver com umha secreta mostra de gratitude com aquelas autoridades ordenses que, após a derrota revolucionária de 1846, se negaram a que Solís e os seus irmaos de armas, fossem fuzilados em Ordes.

Em Ordes funcionou entre os anos 1889 e 1896 a lógia Amor Universal n.º 32, da que faziam parte dos seguintes franc-maçons:

Jacobo Amor del Río. (1891-1896), Orador (1892-1896).

Joaquín Castro Amor. (1890-1896), Secretário Guarda Selos (1891), Diácono (1892), Primeiro Diácono (1896).

José Castro Domínguez. (1890-1896), Primeiro Vigilante (1891-1892,1896).

Julio da Cruz García. (1890-1896), Guarda Templo exterior (1891), Mestro das Ceremónias (1892,1896).

Juan José Durán Iglesias. (1890-1896), Tesoureiro e Esmoleiro (1891-1892, 1896).

Leoncio Gaset Armesto. (1890-1896), Segundo Vigilante (1891-1892, 1896).

Manuel Iglesias Rapela. (1890-1896), Guarda Templo interior (1891-1892, 1896).

Carlos Pol Caamaño. (1889-1896), Venerável Mestre (1890, 1892, 1894-1896), gr. 18º.

Tomás Rabina Túñez. (1891-1896), Porta Espada, (1892).

Domingo Rodríguez Cid. (1891-1896), Porta Estandarte (1892).

Manuel Ruano Bello. (1890-1896), Orador (1891), Secretario (1892).

A ordense Carmen Pol Caamaño, foi das primeiras mulheres da Galiza em fazer-se maçona e livre-pensadora (da lógia Progreso n.º 39 da Corunha, em 1892), e o também ordense Gerardo Abad Conde fijo parte, na Corunha igualmente, da lógia Suevia.

1 Antonio López Ferreiro, O castelo de Pambre, Diario 16, Biblioteca de Autores Galegos, 1992, p. 27.

2 José Barreiro Somoza, El señorío de la Iglesia de Santiago de Compostela, Corunha, Diputación Provincial, 1987, p. 342 n. 664. No mesmo Decreto de 1113 comentado, o artigo XX dispunha também “Que nom se realizem nas igrejas juntas de segrares”.

3 Pegerto Saavedra, La vida cotidiana en la Galicia del Antiguo Régimen, Barcelona, Crítica, 1994.

4 Fermín Bouza-Brey, “El refranero gallego del comendador Hernán Núñez, primera colección paremiológica de Galicia (siglo XVI)”, Etnografía y folklore de Galicia (I), Vigo, Xerais, 1982, 211-235.

5 Alberto Valín Fernández, “Ordes y su logia Amor Universal n.º 32 (1889-1896)”, Galicia y la masonería en el siglo XIX, Sada, Ediciós do Castro, 1990, p. 335.