Santa Martinha das Galegas

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para Montse

Contam-se, tam-só no distrito de Lisboa, as localidades de São Bartolomeu de Galegos, Casais, Casais Galegos, Aldeia Galega da Merceana, a Póvoa da Galega e mesmo umha Galiza… Topónimos semelhantes repetem-se polo resto de Portugal1, pola Espanha2 (às vezes num tom despetivo) e por médio mundo3. A explicaçom é clara: referem-se à nacionalidade duns novos povoadores chegados de fora, quer nas repovoaçons medievais, quer nas vagas migratórias. Mas entom, que sentido tenhem os lugares como a freguesia de San Martinho de Galegos que utilizam o etnómino dentro da própria Terra?

Quem isto escreve lembra perfeitamente como, quando era neno, umha criança o sinalou com o dedo nas grades dum pavilhom viguês e dixo ao adulto que o acompanhava: “Mira papá, un gallego”, tam estranhado como se um cavalo selvagem do Fragoselo irrompesse na Gran Via. Também o carteiro de Vila de Abade e Angeriz, quando respondeu ao inquérito dos ditados populares de Camilo José Cela, deu conta de que os seus vizinhos da primeira freguesia eram alcumados de “Gallegos o Brutos”. A própria identidade tornada estigma, fenómenos que Albert Memmi acharia feridas da colonizaçom, mas que pouco tenhem a ver com a explicaçom do topónimo.

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O filósofo Xavier Robert de Ventós, por sua parte, costuma dizer que o facto de existir em Barcelona um clube de futebol chamado Espanyol evidencia que a Catalunha nom é Espanha. Também temos nós, nuns pastos entre Parada e Ordes, perto de Darefe, uns Prados de Espanha na microtoponia4. Brincadeiras à parte, Rubert de Ventós dá com a chave: os etnóminos som, por definiçom, relacionais, posto que a própria identidade sempre se constrói em relaçom com outras. Assim, como bem observa Cabeza Quiles, os lugares chamados dentro da Galiza Galegos, sempre estám situados em relaçom com outros nomes de lugar étnicos referidos a forâneos: o Galegos de Pol está perto do Vilar de Mouros (de mouriscos) de Meira; o Galegos de Lâncara está junto Foldaos (dos moçarabes de Toledo); o Galegos de Vila Nova, em Vedra, está a só uns metros da aldeia de Cumbraos (dos moçárabes de Coimbra); et cétera5. O nosso caso, porém, é umha miga mais complicado, pois admite várias hipóteses:

1) A máis verosímil: que os vizinhos medievais de Sam Martinho de Galegos se distinguissem dos frades, talvez francos, que colonizaram San Martinho de Frades.

2) Que os Galegos se diferenciassem dos vizinhos de Santa Maria de Barbeiros, se para esta última freguesia admitimos umha etimologia de “bárbaros, forasteiros”, falantes doutra língua6.

3) Que também se forjasse o topónimo por oposiçom aos moçárabes de Coimbra que povoárom Santa Maria de Cumbraos, mas estám demasiado longe, separadas por outras três freguesias, embora numha divisom territorial antiga pudessem ter sido colindantes.

Ainda, cabe a fascinante possibilidade de ser Galegos um topónimo da Idade Antiga, quando o gentilício callaicus ainda nom dava nome a mais que umha das tribos castrejas da zona de Braga, umha das tesselas do mosaico étnico da Gallaecia. O Castro de Galegos, bem apreciável nas suas formas embora danado por importantes agressons, está aí para testemunhar a antiguedade da freguesia, e a proximidade da freguesia de Céltigos reforça a hipótese do etnónimo antigo.

Igreja de Sam Martinho de Galegos, em Frades.
Igreja de Sam Martinho de Galegos, em Frades.

Em tempos mais modernos, Sam Martinho de Galegos, do arciprestado de Barbeiros, contava com 24 fregueses (uns 120 vizinhos) quando o cardeal Jerónimo del Hoyo a visitou a começos do século XVII, deixando também apontado que Gomez Arez de Ledoya era o terratenente da zona. A nível jurisdicional, Galegos pertenceu durante o Antigo Regime a Folgoso, do senhorio do Conde de Altamira. O lugar do Paço, onde durmiu Mariana de Neoburgo numha noite de 1690, mete a freguesia na história de nobres e notáveis, mas muito mais interessante é a história das da baixo. Propriedade dos Linares Rivas da Corunha, a antiga dona decidiu na década de 1960 doar o paço a umha congregaçom de freiras doroteis -hoje representada por Fina, Carminha e Remédios– que transformou radicalmente a paróquia, até o ponto de Manuel Maria7 reconhecê-la como um desses discretos e humildes centros do verdadeiro crstianismo galego, o mesmo que praticou o Cura das Encrovas ou Gumersindo Campaña, no ronsel de Prisciliano e Egéria.

Pazo de Galegos, en Frades.
Pazo de Galegos, en Frades.

Quando as doroteias chegam a Galegos nom só desenvolvem um impressionante trabalho de educaçom popular, baseado nos métodos pedagógicos mais inovadores e completamente afastados do nacional-catolicismo, senom que também iniciam um processo de comunalizaçom das antigas terras do paço, entendendo-o como umha restituiçom òs seus legítimos proprietários: a terra para quem a trabalha! No passado 20 de agosto de 2017 a paróquia rendeu-lhes homenagem popular. “Reunimo-nos hoje aqui para celebrar num ato de justiça” – explicou umha vizinha-, “de admiraçom e de agradecimento a umha Congregaçom de Religiosas que chegou à nossa paróquia há 53 anos. Umhas mulheres que, si, som monjas, mas que para nós som umhas vizinhas mais, já que soubérom adaptar-se ao povo sendo umhas autênticas servidoras com umha grande vocaçom de ensinar, de ajudar, de fomentar a unidade e de luitar polo povo”8.

Também procedia de Galegos outra mulher luitadora, Consuelo García Meijide, ‘Consuelo de Lata’, a taberneira da Grabanja torturada e assissinada pola Guarda Civil em janeiro de 1948 por colaborar com a resistência9.

Mapa de Galegos, en Frades.
Mapa de Galegos, en Frades.

A riqueza da cultura popular de Galegos mereceu a atençom de Gustav Henningsen10, e no ano 1984 Dolores Presedo realizou duas valiosas gravaçons para a coleçom de Baldomero Iglesias ‘Mero’, que agora se podem escuitar em Dispostas para cantare. Escolma dos fondos musicais do APOI (2009-2016), CD-caderno, com textos de Sergio de la Ossa, editado para comemorar o 40º aniversário do Museu do Povo Galego e que completou a pequena fazanha anti-repressiva de atravessar as linhas inimigas para chegar à cela dum preso independentista, o primeiro CD que o consegue em anos.

A primeira destas peças é O Manuel do Campo, interpretado polo fenómeno de Moar, Ricardo Lagares, junto com Florinda, Consuelo, Maria e Cesáreo García Sánchez às colheres. Este romance novo de tema burlesco tornou-se mui popular graças à gravaçom em LP que lhe fijo A Quenlla. A segunda peça é um desafio que nada tem que invejar às modernas pelejas de galegos do rap. Nela, Ricardo Lagares intenta encetar o romance novo chamado A filha de Bartolo, mas as mulheres interrompem-lhe continuamente o fio com coplas picantes que lhe provocam o riso e o desconcentram, até que desiste de cantar o romance e se enreda numha divertida desputa poética que gira por volta da guerra de sexos, em tom erótico-festivo. “A mulher que lhe interrompe aos homens continuamente” -explica Mero- “é umha figura conhecida nas regueifas como “lercha” ou “rexoubeira”, que provoca as pulhas e debilita o contrário fazendo-lhe perder o tom e abandonar a melodia principiada”11.

Nada melhor para rematar este repasso a umha freguesia de mulheres bravas que a contundente copla, nom sabemos se de Florinda, Consuelo ou Maria, que reivindica a liberdade feminina:

“E se canto fagho bem,

e se canto fagho bem;

canto c’a minha gharghanta,

nom canto c’a de ninghém he”12.

1En Braga: Galegos e Santa Maria de Galegos; em Bragança: o Vilarinho dos Galegos; em Castelo Branco: o Chão do Galego; no Porto: Galegos; e em Portalegre, sobre a raia com a Estremadura, Galegos. Esta última localidade está à beira de Marvão, fascinante vila-fortaleza chamada assim por Ibn Marwãn, árabe alcumado ‘o Galego’, que na segunda metade do século XII regeu este território rebelde ao Califato de Córdova, tencionando criar umha nova religiom da tolerãncia que integrasse sem discriminaçons as gentes judias, cristás e mussulmanas.

2Nas Astúrias: Gallegos; em Albacete: Gallegos; em Ávila: Gallegos e Gallegos de Sobinos; em Burgos: La Gallega; em Leom: Gallegos de Curveño e Galleguillos de Campos; em Salamanca: San Felices de los Gallegos, Galleguillos, Gallegos de Solmirón e Gallegos de Argañán; em Somara: Gallegos del Campo, Gallegos del Pan e Gallegos del Río; em Segóvia: Gallegos; e em Valhadolide: Gallegos de Hornija. Destes, os mais interessantes som os que estám na fronteira com Portugal pois, a quem eram que estavam a chamar “gallegos”? Ainda hoje, de maneira jocosa mas historicamente incontestável, os do Sul chamam-lhe “galegos” aos do Norte, e os do Norte aos do Sul “mouros”.

3Há um Gallecs em Barcelona, nos Países Cataláns, assim como Gallegos em Novo México, nos EUA; Galleguillos em Chile; Río Gallegos, na Patogónia rebelde… E mesmo a Gallego Rise no Pacífico Oriental que tanto explorou Hernando Gallego. Pedro Gallegos nom deu o seu nome a nengumha terra, mas fundou no Nova Granada a cidade de San Bonifacio de Ibargué. Também se apelidou assim o grande escritor e presidente da República de Venezuela Rómulo Gallegos, mui amigo da Galiza e autor de Canaima, nome que também aparece na microtoponímia urbana do Mesom do Vento, nomeando um hotel. O caso de Agalega Islands, pertencentes a Maurício, fica para outro artigo.

4Folhas 70-III e 70-I, IGN.

5Cabeza Quiles, 2008, pp. 299-301.

6Martins Estêvez (2008, p. 284), por exemplo, crê que o home do rio Barbeira procede de *Barbaria ‘a dos bárbaros, forasteiros’.

7Entre 1977 e 1987 Manuel Maria escreveu em A nosa Terra umha seçom, “Andando a Terra”, onde relatava as suas viagens polo país. Sem hemerotecas à mao, perguntei ao seu bom amigo, Xosé Estévez, se Manuel Maria também escreveu sobre Ordes. Com umha eficiência impressionante o historiador de Deustuko Universitatea contatou com a Fundación Manuel María de Estudos Galegos, de Outeiro de Rei; e escontrou este artigo sobre Galegos:

“Hoxe, dous de febreiro, a Eisexa celebra a festa da Purificación de Nosa Señora, da Candelaria, Candeloria ou das Candeas. En Outeiro de Rei da Terra Cha sentimos dicer nos anos da nosa infancia, Candeloria. Cecais sexa un localismo. Os cultos de Santiago de Compostela, como di Moncho Borrajo, autores da normativa do galego, saberán. Os cristianos galegos -nós distinguimos perfectamente entre cristianos galegos e cristianos en Galiza- nesta data conmemoran a Festa da Luz trasladada por eles para a mañá do seguinte día, sábado tres, e terá lugar en Pazo, parroquia de Galegos, Concello de Frades, en terras de Ordes. Nesta época, que medran os días – “pola Candeloria a mitade do inverno vai fora” como nos ensina o refrán popular-, están en flor as mimosas e os paxaros comenzan a andar ledos e namorados osmando a primavera, os povos antigos facían festas en louvor de Demeter e Ceres – de onde procede a palabra cereal-, deuses protectores da agricultura e da natureza. Entre nós aínda perviven restos destes vellos cultos, cristianizados e estudados polos etnógrafos”. (Manuel María, “A festa da luz”, El Correo Gallego, 2 de fevereiro de 1996).

8Manuel Ledo Regal, “Homenaxe á comunidade de monxas doroteas de Galegos (Frades)”, Irimia n.º 972, do 4 ao 17 de setembro de 2017, pp. 12-13.

9Pazos Gómez, 2011, pp. 78-97.

10Também pola dêcada de 1960 andivo por muitas paróquias da comarca de Ordes, também do concelho de Frades, o antropólogo aragonês Carmelo Lisón Tolosana, sem que poda concretar agora mesmo se também estivo em Galegos.

11No CD-caderno citado.

12Todo o mundo conhecerá a versom que reivindica a liberdade sexual: “E se figem, figem bem, / na minha cona nom manda ninguém”.