Pondal, 2017

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Para José Inácio Regueiro, “no brando azul”

No início do verão o diretor da revista portuguesa Nova Águia pediu-me para escrever uma evocação de Eduardo Pondal no centenário da sua morte. Como sempre que me aventuro em um artigo para divulgar algum aspeto da cultura galega, procurei relacionar a obra de Pondal com vários acontecimentos históricos que lhe foram coetâneos para dar um horizonte complexo de sentidos ao seu significado, das mudanças na sociedade galega, na sua economia e na sua relação com a terra e o trabalho, à política do estado espanhol e a sua organização territorial. Sou ciente do predomínio das interpretações simplistas da cultura galega dentro e fora da comunidade autónoma, leituras autorreferenciais, que desenham a cultura galega como contínua manifestação dum pathos a-histórico e não como um contínuo e difícil diálogo com as ideologias e os sistemas económicos e políticos presentes no território, com as suas narrativas e os seus signos.

A presença de Pondal no meu pensamento não me abandonou depois de concluir o artigo. Todo o imaginário dos Queixumes dos pinhos, o vento nos pinheiros, a selvagem companha dos corvos, os verdes castros, os bardos peregrinos, as fadas profetisas…  foram-me acompanhando durante os meus passeios de verão por Lisboa. Contemplando esta cidade de grandes avenidas, leio Queixumes com a emoção de um manuscrito encontrado, fragmentos de histórias de uma civilização sem Roma nem romanidade, em que a luz, a memória e a cultura vêm dos filhos da terra, verticais como as árvores e os fachos da beira-mar. O contraste de Queixumes com o imaginário historicista desta capital, cheio de estátuas que comemoram reis, militares e batalhas, faz-me compreender o esforço imaginativo de Pondal por uma narrativa dignificadora da civilização agrária, de toda essa constelação de “pequenas ponte-cessos” onde está a nossa casa. Descubro nos seus versos a representação de um tempo em movimento envolvente, com expressa confusão entre o passado e o futuro, em versos como “passados, futuros destinos” ou “memória doce de futura idade”, com todas as possibilidades narrativas abertas em um dinamismo livre como o vento suão, em que não há “nem ontem nem amanhã”, nem novo e velho, nem qualquer outra representação sequenciada de dualidades em confronto. Apenas o que vive, o que morre e o que renasce.

Como exercício de interpretação é interessante relacionar a obra de Pondal com algumas datas da história mundial. Uma pode ser 1885, ano da Conferência de Berlim. Queixumes dos pinhos foi publicado um ano depois, em 12 de novembro de 1886, no contexto de formação da ideologia estatalista a demandar dos historiadores argumentos para a sua legitimação. Também para a expansão colonial. Outros eventos que dão horizonte interpretativo à obra de Pondal podem ser o colapso do Império Otomano ou o republicanismo irlandês. Para não falar, claro, do republicanismo português. Com este quadro político mais complexo em que a formação das ideologias das nações sem estado tem muito a ver com a propriedade da terra e a alienação dos bens comunitários, penso na mensagem de Pondal aos lavradores e marinheiros no século da sua proletarização: tens um papel ativo na história, ser soberano de ti, demandante da tua herança e dono do teu destino. A tua história está registada  no território e é a terra a que te dá a soberania. O teu inimigo é o teu desânimo, a tua falta de esperança. As tuas armas, a consciência da genealogia que te faz filho da terra e a força do teu espírito. “Tu és de ti próprio soberano”. Juntando peças vou compreendendo a continuidade entre o imaginário agrário, a expressão lírica e a ideologia democrática, todo este pólen ideológico formado no contexto de inserção dos lavradores no mercado de trabalho mundial capitalista que precisa de trabalhadores desterritorializados, aculturados, desumanizados. Há um fio entre a “Campã de Anlhões” e a consideração da freguesia como unidade territorial básica do imaginário político do galeguismo de pré-guerra.

Outra mensagem de Pondal é que a natureza não é paisagem, muito menos produto, mas consciência, e que os seres humanos e a terra temos um destino comum. Risco teorizaria sobre esta ideia com o seu “patriotismo vegetal”. Há uma pequena narração constante em vários dos poemas de Pondal: as cousas são escuras ao nosso entendimento mas têm som e o som cria emoção. E pela emoção sempre é possível a empatia. A terra dá a linguagem e a imaginação sobre o interior das cousas. “Um dia começou a cidade a pôr atenção dos que predicavam uma vida de intimidade com as próprias realidades”. Assim relata Johán Vicente Viqueira a mudança trazida pelos poetas do XIX à vida coletiva. “Uma lírica íntima e grande, democrática, veio daquela ao mundo”. Lede com atenção os poemas de Pondal, descobride os constantes símeis entre o mundo interior humano e o exterior natural, como no poema “Feros corvos do Jalhas”. Não se faz política sem imaginação sobre a matéria. E a imaginação material dos poemas de Pondal é um constante exercício de empatia e irmandade com o mundo natural, um pensar ligando com a plenitude expressiva das figuras de pensamento, em entrelaçamento constante, orgânico diria, como na prosa de Otero Pedrayo, entre o pensar o dizer. A experiência emocional da leitura destes poemas são um contraste com o século passado de ideologias tão desconfiadas da natureza. Há uma guerra íntima com os corpos como veia interior de muitos testemunhos destas ideologias do século XX, onde tudo é cultura e convenção e a natureza, no melhor dos casos, é pano de fundo passivo e no pior inimiga da liberdade, sempre desterrada do nosso corpo e também da expressão verbal. Mas eu também algo no meu ser levo dos “corvos vagabundos”, algo que associa indissoluvelmente a natureza, a liberdade e o dizer.

A leitura de Pondal coloca-nos desafios como leitores de 2017. Só questionando os nossos preconceitos estéticos fruímos o seu esforço pela expressão e a liberdade com que se serve das mais variadas fontes literárias da sua imensa cultura literária. Numa entrevista Valle-Inclán falava sobre a crise de géneros como a epopeia ou a oratória nos inícios do século XX. Escrever esta epopeia em fragmentos que é Queixumes em 1886, inventando uma tradição literária e um estilo sublime com vocação democrática, sem dicotomia entre a formação nos clássicos gregos e latinos e o celtismo, exercita uma ideia de língua literária que ainda nos questiona, a pesar da canonização de Pondal na historiografia literária galega. Muito me faz pensar na mercantilização da palavra, bem aguda nos nossos tempos, com a indústria editorial a canalizar a expressão literária, estabelecendo hierarquias de géneros literários e simplificando a busca na expressão bem pela banalidade do estilo bem pela redução da literatura a temas.

O imaginário histórico dos estados fez de nós habitantes de pátrias metafísicas e filhos de genealogias que não são as nossas. O “valeroso clã” do esquecido verso de Pondal tem em 2017 o sentido de lembrar-me que não é minha a genealogia dos reis e militares marcados no espaço público da cidade, mas sim a das trabalhadoras nos mais variados ofícios do mar e da terra. “Aramos sobre os mortos desta terra”. Não sei se Pondal previu o sentido que o verso “homem livre, livre terra” tem para mim, neste sistema económico que proclama o fim da história, em que somos previsíveis peças de uma máquina pensada em mentes que não são a de cada um de nós. Comecei estas linhas na tarde seca e quente de 15 de outubro. Quarenta e quatro pessoas morreram nesse dia em mais de quinhentos focos de incêndio declarados em Portugal. Hoje, 22 de outubro, uma manifestação percorre as ruas de Compostela contra a “lei de depredação” da Galiza. Hoje, como em 1917, falar da terra não é capricho estético, é falar de economia, de moral, de humanidade.

No ano em que Eduardo Pondal morreu a Grande Guerra alastrava pela Europa desde 1914. O filme de Stanley Kubrick Paths of Glory recria um episódio daquela guerra em que um general francês decide abafar o fracasso do ataque que tinha ordenado contra as linhas alemãs escolhendo três soldados ao acaso para serem condenados à morte. Esta prática existia nas legiões romanas para punir casos de covardia ou motim e a sua memória subsiste nas nossas línguas no verbo “dizimar”. Na cena final, depois da execução, os soldados divertem-se numa taberna local. O dono apresenta uma rapariga alemã no meio da gritaria. Pede desculpas por ela não ter qualquer talento para além do seu “talento natural”, fazendo um gesto que em que evidencia que está falando do seu corpo. Ela gagueja um “guten tag” e um soldado grita “Fala numa língua civilizada!”. O taberneiro insiste em que a moça não sabe fazer nada, mas que “canta como um passarinho”. A rapariga, com lágrimas nos olhos e gestos de pavor, começa a cantar em alemão uma canção popular no meio da gritaria dos soldados franceses. O barulho ensurdecedor vai dando lugar ao silêncio e às lágrimas e o silêncio à voz dos homens acompanhando sem palavras a melodia da rapariga. A cena faz pensar na instrumentalização da graça, a militarização e a violência como estrutura óssea da civilização imperial e hierárquica. Não há ordem imperial que não assente nessa cisão abismal entre o eu e o outro, seja o outro a natureza, as mulheres ou a variedade de línguas humanas. A cena também nos convida a uma viragem no entendimento das línguas maternas e os verdadeiros limites e vias da comunicação humana e, enfim, da empatia. Também Pondal poetiza este compreender pelo ouvir, não pelo julgar, esta busca incessante de sonoridades primordiais nas línguas perdidas gravadas nos nomes da terra, e faz esse chamado a nos situarmos na nossa verdadeira memória afetiva para imaginar o interior das cousas, das criaturas, das árvores, do vento ou das estrelas, similar ao nosso próprio interior, a ouvirmos a inocência da espécie nesta confusa noite dos signos.

 

Máis de Maria Dovigo