Poesia para um imaginário pós-capitalista

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Racionalista consciente dos limites da força da razão, Bento de Spinoza escreveu que “o conhecimento verdadeiro do bem e o mal não pode reprimir nenhum afeto na medida em que esse conhecimento é verdadeiro” (1). Neste sentido, Manuel Casal Lodeiro leva tempo a chamar por uma nova mitopoiese que derrote o imaginário do crescimento capitalista (2), sabedor de que a teoria por si soa não é suficiente para enfrontar o enorme repto político do colapso da civilização industrial –que é também o colapso da nossa capacidade de imaginá-lo-. O mundo nasce em Chantada, de Manuel Meixide Fernandes (3), é um poemário para a Galiza pós-petróleo, quiçá o primeiro escrito explicitamente perante essa perspectiva.

Há já uma pequena literatura futurista espanhola sobre o peak oil mas, como no romance de José Ardillo El salario del gigante (4), batem de uma forma desassossegante contra o deserto e o medo do desconhecido. Porém, nos poemas do Meixide há uma volta à certeza da Terra, o regresso triunfal do mundo –duro mas honesto- das avôs, a salvação do que John Berger considera “a maior catástrofe cultural do século XX”: a perda da cultura camponesa. Aqui não é que se derrube um mundo urbano e industrial do que quase nenhuma somos nativas, senão que renasce o universo rural do que quase todas vimos. O “atraso”, ironias da história, torna-se vantagem. Não enfrontamos o inimaginável, mas a previsão certeira dos velhos que se resistiam a vender as leiras, “polo dia em que podem fazer falta”. Retorma o mundo da infância, do qual Manuel Meixide sentiu “a necessidade vital de fazer um novo registo, uma crónica poética da memória, descrevendo fielmente o acontecido, o vivido”. Como na cosmovisão Aymara, na Galiza quando falamos do futuro indicamos com o polegar para as costas (5).

Na prosa poética de O mundo nasce em Chantada, cadenciosa e cíclica como a música da roda da Terra, produz-se o encontro com os devanceiros, amorosos e sábios (“Ensinastes-me a suprema importância da ser humilde, ensinastes-me que a única civilização e o único progresso chamam-se aldeia”), de um neno emigrado em Bilbo que regressa a Pousada. Imagens mui formosas, como a dessas vacas a pascer enquanto proclamam o omnia sunt communia do prado comunal, contrapõem à mentira cidadanista do Estado do Bem-Estar capitalista e a sua “eterna dependência” uma democracia aldeã, sempre desprezada e aqui reivindicada como programa de futuro: “Avante, patriotas: sede labregos. Mondai os morteiros, colhei as sementes. Em duas sementes livres nasce a freguesia, nasce a Galiza”. É essa a verdadeira democracia (“Falando claro, o Estado é a ditadura, a democracia é o povo”) que baixando da aldeia fecundará a vila, transformando o Cantom –“onde de antigo acabava o Foliom de Carcos- na praza vazia da comunidade: “Aqui estarão algum dia todas as aldeias de Chantada e ao mesmo tempo nenhuma, quando vier a democracia”.

Sobre a acusada oposição entre a cidade e a rurália, Meixide articula outra entre “a instituição organizada da violência”, o Estado, e o Governo: “O Governo é necessário. O Estado não. O Governo não é mais do que a instituição que preservará algum dia o bem-comum. O Estado não é mais do que a instituição que preservou todos os dias o seu próprio domínio”. Eis a base da independência sem Estado que defende Abdullah Öcallan: “Os estados só administram enquanto que as democracia governam. Os estados estão fundados no poder, as democracias estão baseadas no consenso político” (6). Piar desse Bom Governo galaico e lugar de reunião dos concelhos abertos (7), a árvore é na poética de Manuel Meixide metáfora de liberdade: “Sentado estou à sombra do Carvalho. Aqui não entra a espada de Roma”; “Longe da árvore está o cárcere”.

No ronsel de Xosé María Díaz Castro, respira na poesia de Manuel Meixide uma forte alma mística, com certeza mais próxima da religiosidade popular, chestertoniana, do que dos “soldados romanos do Vaticano”. Precisamente Roma aparece de contínuo como arquétipo imperial, em tanto que oposta ao primeiro cristianismo comunitarista, mas também como símbolo do colapso de uma máquina estatal de que emergirá o monacato revolucionário (8). Também recorre Meixide à passagem dos mercadores ao fio de outra das linhas temáticas do poemário: a crítica das elites galegas, “mercadores dum cadáver, o cadáver do galego, espantalho andante forçado a erguer-se e carregar medalhas”; defensoras acadêmicas do statu quo, jamais de macabros rituais de um 17 de Maio de “cadáveres honrados como estrelas mortas” e corpos mutilados dos abraços afrobrasileiros.

Villabona, 12 de janeiro de 2016

NOTAS:

  1. Spinoza, Ethica, IV, Prop. XIV.
  2. Casal Lodeiro, “Poetas galegos: Ás barricadas!!”, De(s)varia materia, blogue pessoal, 26/12/2008.
  3. Manuel Meixide Fernandes, O mundo nasce em Chantada, ed. do autor em Gerust Creaciones, 2015.
  4. Ardillo, El salario del gigante, Logroño, Pepitas de Calabaza, 2011.
  5. Veja-se Daniel H. Cabrera, “El atrás como fantasmagoría moderna”, Anthropos, 225, 2009. A palabra aymara que indica futuro, quipa, quer dizer detrás ou às costas.
  6. Em Karlos Zurutuza, “A quién le importa Kobani?”, Gara, 1/1/2015, p. 22.
  7. Assim o era para os repúblicos de Taboadelo (veja-se: Manuel Murguía, “Orígenes y desarrollo del regionalismo en Galicia. Conferencia dada en la Lliga de Catalunya”, La Patria Gallega, 2 (2ª época), 1892, pp. 1-4). Pode que essa cerdeira da que fala Neira Vilas no seu derradeiro livro, situada no átrio e na qual pegavam todos os avisos da paróquia, seja um recordo em ruinas da árvore do concelho (X. Neira Vlas, Romaría de historias, Vigo, Galaxia, 2015, pp. 15 e 143. Na p. 137 descreve o concelho: “Naquela aldea da montaña existía unha antiga institución, o “concello”: Integrábano os veciños adultos. Nas xuntanzas discutíanse as cuestión que a todos interesaban. Entre as cousas que trataban estaba o coidado dos cabalos, que levaban ó monte e a cada tanto un pastor coidaba deles. Tamén se trataban os arranxos dos camiños. Convocábase a xuntanza do concello a través dun repenique especial de campás. As reunión levábanse a cabo no verán nas escaleiras do atrio, e no inverno, dentro da igrexa”). Nos Países Catalães conservam alguma destas árvores, como o pi de Can Torres (Parets, Mollet i Gallecs).
  8. Sobre a incapacidade de imaginar o colapso de uma civilização, Jérôme Ferrari escreveu o excelente romance Le sermon sur la chûte de Rome (Actes Sud, 2012): “Talvez podamos mesmo reconhecer os signos quase impercetíveis que anunciam que um mundo acaba de desaparecer”, como “a vela quadrada dum navio sulcando as águas azuis do Mediterrâneo, no golfo de Hipona, levando de Roma a inconcebível nova de que ainda existem homens mas já não o seu mundo”.