Para toda a gente e de ninguém

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Umha poética da comunidade e dos cuidados

Até 2023, no plano da escrita, de Roberto Samartim conhecíamos sobretudo a sua fundamentada prosa investigadora. Umha produçom académica que, ao longo de mais de vinte anos, se tem devotado para assuntos tam relevantes como a literatura escrita por mulheres na Idade Média e no Renascimento, o campo cultural galego nos últimos anos do franquismo, os impactos do turismo na Galiza ou, atualmente, o campo editorial no período autonómico. Nas épocas mais recentes há umha ideia cada vez mais importante no pensamento – sempre crítico – do académico Samartim. Umhas vezes formulada como ferramenta concetual, outras apresentada como sintoma de responsabilidade social, a comunidade funciona como catalisador de umha determinada visom da cultura: menos atenta à reproduçom de hegemonias estéticas e mais interessada nos modos de pensar sociedades mais democráticas, mais justas, menos interferidas polos interesses do lucro, de umha maneira ou outra reconciliadas com os seus processos históricos, com o bem e com os bens comuns.

Quem tem a sorte de conhecer, agora nos planos pessoal e profissional, o autor deste livro do dragom, acaba por identificar na sua maneira de estar no mundo outra linha de força que muito congratula a quem anda à sua volta (seres queridos, colegas da universidade, alunado ou camaradas das várias iniciativas sociais em que participa): umha teimosia especial por cuidar e procurar o bem-estar (a dignidade, a felicidade!) de quem com ele partilha a vida, num âmbito que há já bastante tempo, aprendemos isso do feminismo, deixou de poder ser restringido à esfera privada. E foi talvez por isso que, a partir da pandemia que há pouco nos tocou viver, conseguimos desvendar todo o significado político de perguntar, como Roberto Samartim fijo até a exaustom, e continua: “Como estás?”.

Pretendem estas linhas, portanto, fazer umha análise biografista d’o livro do dragom? Nem por isso. É só que achamos oportuno delinear cumplicidades nom apenas entre as diferentes práticas de escrita do seu autor – como se ficasse um registo de memória nos vários traços que componhem a sua obra (é a isso que, num sentido alargado, chamamos poética) –, mas também entre as suas propostas estéticas e as suas posições éticas e políticas.

Após as primeiras leituras destes versos, confidenciava ao Roberto a impressom de estarmos ante umha mitologia próxima e humilde, um atlas emocional em que a voz se desdobra e, através de um exercício confessional e reflexivo, consegue alcançar umha certa transcendência. Quer dizer, um determinado valor ético e social. Numha tradiçom literária em que o mito tendeu com frequência para umha glória sem fissuras ou, no pior dos casos, para a épica conformista e complacente dos para sempre derrotados, encontramos nestas páginas a enunciaçom poética de um passado que nos reconcilia com nós mesmos, por estar alicerçado nas vozes baixas – pequenas, ocultas – que sustentam e garantem a existência da comunidade (“Se for possível deixar nas algibeiras, / por um momento apenas, / a ambiguidade herdada da palavra comunal, / sugiro-che que sintas, / que sonhes, / que sirvas, / que saltes, / e que nunca esqueças”) e que tenhem incorporada umha ideia bastante concreta da justiça social (“porque o trabalho é escravo e ninguém merece”, “se nom há pátria para toda a gente / nom haverá pátria para ninguém”).

Entendemos através destas páginas que só vale a pena voltar ao passado lendário se é para revigorar umha comunidade fundamentada nos afetos e nas emoções – propriamente política, portanto, no sentido que antes tentámos sugerir –, que cuida e que guarda, que consegue manter-se unida, que sabe proteger-se contra o espúrio (“e entretanto guardamos paxaros / construímos um ninho / e defendemo-lo / do império, do lixo e do mercado / da mentira, do medo e do pecado /e até da sombra do dragom”).

É essa umha narrativa muito próxima da geografia sentimental do autor – sempre, com orgulho, Redondela –; umha lenda da Coca, nestas páginas, diametralmente oposta ao esquematismo rudimentar para consumo próprio e alheio dos bons e dos maus, das donzelas e da besta, da violência legítima contra o mau selvagem, da volta à normalidade contra a intervençom exógena. Apreciamos isso nas tensões, ambiguidades e convergências entre as diferentes vozes e máscaras – as mulheres popularmente sábias; o homem que, com o seu corpo, erra à procura do conforto; o próprio dragom (“eu sou o dragom, / sei que me arrastarás por sobre rosas e nom me importo, / hoje acordei na noite e ela ainda dormia ao meu lado”) – que diferenciam os três cantos da obra e que por vezes nos deixam na boca um sabor a algumha da poesia amorosa e saudosista de Carvalho Calero.

Nom é esta, porém, umha obra que compartilhe os valores projetados polo escritor ferrolano no relativo ao género, nem especialmente devotada para a nostalgia de felizes tempos pretéritos [“no livro acharás umha única verdade sem sombra / (somos o caminho que temos pola frente / o resto é memória)”]. Embora percebamos nas suas páginas a constância do olhar para o passado e, nesse sentido, indubitavelmente, a constituiçom do livro como determinado ponto de inflexom no tempo, o percurso que se faz através da memória tem o sentido antedito de reconstruir a dignidade de umha comunidade – íntima ou coletiva, é a mesma cousa – e de ressignificar os mitos e as lendas que a estruturaram historicamente, também agora, e sempre, submetidas à deturpaçom e ao roubo.

Estamos todos em perigo, afirmou Pier Paolo Pasolini em 1975, umhas poucas horas antes de ser assassinado. Frente a isso, a poética de Samantim ajuda a imaginar um horizonte de futuro que, ainda que seja só levemente esperançoso, foge de derrotismos e apela ao reencontro. Agora há que querer-se mais do que nunca, cantou a banda Ataque Escampe em 2023. A coletivizaçom e democratizaçom dos cuidados, oxalá, como zeitgeist da nossa época.

Num momento em que a poesia galega se debate – podemos permitir-nos simplificar um pouquinho as cousas – entre a abrumadora exibiçom do eu e a espiral irresolúvel dos traumas nacionais, o livro do dragom aparece, como se levasse anos adormecido ao pé da Ilha de Sam Simom (late, ali, o coraçom, de outra maneira), como rara avis no nosso panorama cultural que nom podemos deixar de apreciar e de celebrar. A publicaçom pola Companha Editora e a inauguraçom da coleçom álmafa árvores e livros contribuem para a sua singularidade, como outra amostra do que significa querer e saber tecer comunidades (fraternas, poéticas, culturais, políticas) norteadas polo bem comum e contra o estado das cousas. E ainda que nunca tenhamos dançado com espadas, a essas comunidades, à sua história e à imaginaçom do seu futuro, que som também as nossas, podemos aceder com prazer através das páginas que nos lega este livro: “Fracassamos mais umha vez / mas agora sabemos / que é preciso renunciar a muita cousa inerte / para que o sal, o moinho e a fonte / a seara, a horta e o monte / sejam para toda a gente e de ninguém”.