Fascismo nunca mais

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catarina-eufemiaCatarina Eufémia é o nome da primeira rua em que morei em Vila Real de Santo António, na foz do rio Guadiana, na minha primeira colocação como professora. É o nome duma ceifeira do Baixo Alentejo que foi brutalmente assassinada por um tenente da GNR no decurso duma greve em 19 de maio de 1954. Catarina tinha na altura vinte e seis anos e três filhos. Levava um deles ao colo no momento em que foi morta a tiro. O tenente da GNR, de nome Carrajola, foi transferido para outro posto e morreu uma década depois sem nunca ter sido julgado. O PCP tornou-a mito da resistência antifascista e vários poetas recriaram a sua história, convertendo-a em símbolo da violência e impunidade do regime, das profundas desigualdades sociais, da exploração. Para mim ela é a figura do pórtico de entrada na história desta sociedade da que há duas décadas faço parte. Ela é encarnação de como se construiu a propriedade da terra de norte a sul nesta Finisterra. Ela é exemplo da extrema hipocrisia do regime, de qualquer regime totalitário, que idealiza as mulheres como “anjos do lar” enquanto faz recair sobre elas a força motriz do trabalho braçal e precário. Sinto a presença dela como o duma profetisa esculpida no pórtico duma catedral imaginária para anunciar um tempo sem opressão, a sussurrar ao meu ouvido o que nunca devo esquecer se conto a história com o motor do coração.

Ela é exemplo da extrema hipocrisia do regime, de qualquer regime totalitário, que idealiza as mulheres como “anjos do lar” enquanto faz recair sobre elas a força motriz do trabalho braçal e precário. Sinto a presença dela como o duma profetisa esculpida no pórtico duma catedral imaginária para anunciar um tempo sem opressão, a sussurrar ao meu ouvido o que nunca devo esquecer se conto a história com o motor do coração.

Hoje é 25 de abril. A estas horas da tarde estaria a marchar pela Avenida da Liberdade de Lisboa com as minhas muito queridas companheiras da UMAR. A associação União de Mulheres Alternativa e Resposta nasceu como União de Mulheres Antifascistas e Revolucionárias em setembro de 1976, na sequência da Revolução. Há anos que marcho com elas neste dia, na mais festeira manifestação que conheci na minha vida, verdadeira celebração da diversidade que décadas de regime fascista quiseram controlar e eliminar. Este ano o confinamento não nos tirou a necessidade de assinalar o dia e lá nos reunimos às janelas e varandas para cantar o “Grândola vila morena” às três da tarde, canto que, bem sei, também se ouviu na Galiza. Porque para cantar não há, não houve, nem haverá nunca fronteira.

Como já muitas têm notado e registado, a pandemia e o confinamento tem trazido à tona o melhor e o pior da sociedade, a solidariedade e os discursos de ódio, a entrega ao bem público e a especulação, grandes verdades e grandes mentiras. Comentando alguns episódios de pessoas a censurarem comportamentos na rua, um amigo diz-me que há muita gente com um pequeno fascista dentro esperando a circunstância propícia para sair à luz. Os regimes totalitários não se teriam aguentado sem eles. A observação do meu amigo deixa-me a pensar e traz-me à memória a senhora Glória, uma vizinha do meu bairro da Agra do Orção na Crunha onde me criei. No dia a seguir à vitória de Manuel Fraga, aquele dia 18 de dezembro de 1989 de tanta chuva e de ressaca de naufrágios na costa galega, apareceu na nossa casa muito assustada pelo perigo de que o horror do franquismo voltasse. No meio do medo aquela trabalhadora do mar, viúva de marinheiro, duma aldeia destruída pela construção da refinaria, contou-nos como nos dias a seguir ao golpe de 18 de julho de 1936 um vizinho tinha delatado gente de todas as aldeias, espalhando o terror naquelas aldeias que hoje mal se veem entre as ruínas da industrialização: Bens, Comeanda, a Moura, a Fonte Nova, a Silva… Nunca até então tinha ouvido uma descrição do tecido ideológico e de solidariedade dos bairros corunheses antes da Guerra. Nunca até então tinha ouvido um relato tão simples da fragilidade da convivência e a expansão do terror.

Este ano o confinamento não nos tirou a necessidade de assinalar o dia e lá nos reunimos às janelas e varandas para cantar o “Grândola vila morena” às três da tarde, canto que, bem sei, também se ouviu na Galiza. Porque para cantar não há, não houve, nem haverá nunca fronteira.

A convivência… Se alguma cousa mostra isto que estamos a viver, a pandemia e o confinamento, é que a democracia precisa de pessoas fraternas, que saibam e tenham consciência do seu impacto na vida dos outros, que saibam sentir o coração como motor da história. Se alguma cousa caiu foi a falácia da propriedade individual, da saúde, do espaço, dos direitos. As galegas bem sabemos como a ilusão da livre escolha se tem usado como argumento para destruir-nos como comunidade linguística (o que vale dizer como comunidade de saber, saber natural, saber histórico, saber poético). De facto não podemos escolher sem ocupar o espaço dos outros, na saúde ou na história. A boa notícia é que tudo se pode escolher com empatia como suprema conselheira. Preocupa-me deste tempo tudo o que vem na enxurrada, tão extremado, bom e mau, solidariedade e também ressentimento. Do mau, preocupa-me como foi fácil recentralizar os estados, a supressão das autonomias no estado espanhol, a supressão de direitos que foram conquistados com tantos sacrifícios pessoais como os da jovem ceifeira Catarina Eufémia.

Do mau, preocupa-me como foi fácil recentralizar os estados, a supressão das autonomias no estado espanhol, a supressão de direitos que foram conquistados com tantos sacrifícios pessoais como os da jovem ceifeira Catarina Eufémia.

Respiro fundo quando lembro que a fronteira entre a Galiza e Portugal está fechada, essa fronteira que gosto tanto de saltar, porque o espaço em que construo a minha vida desde há décadas vai do Algarve a Estaca de Bares, porque nesta minha amada avenida atlântica virada a poente teci e teço um caminho de amizades que fizeram grande o meu coração de nena da Agra do Orção. A existência de uma razão para não circular por essa fronteira livremente é um sinal de alarme ensurdecedor. Sinal amplificado porque essas fronteiras não estão só fechadas para os que cá moramos de maneira permanente, mas para refugiados e imigrantes ainda mais indefesos nesta situação. Preocupa-me ver as pessoas confinadas aos seus estados, os mesmos que permitiram o auge da globalização, a deslocalização das empresas, o comércio mundial que mantém lucros atropelando direitos laborais e predando recursos. Preocupa-me, e muito, o imaginário militar e o discurso patriótico que parece ter encontrado agra aberta para a sua expansão no discurso público em vários países e o brutal contraste com a realidade de mulheres que se multiplicam para poder desempenhar as inacabáveis tarefas de cuidados sem os que a sociedade ruiria.

Respiro fundo quando lembro que a fronteira entre a Galiza e Portugal está fechada, essa fronteira que gosto tanto de saltar, porque o espaço em que construo a minha vida desde há décadas vai do Algarve a Estaca de Bares, porque nesta minha amada avenida atlântica virada a poente teci e teço um caminho de amizades que fizeram grande o meu coração de nena da Agra do Orção.

Passa o dia numa cidade em silêncio que não vejo. Dizia uma companheira da UMAR há dias numa tertúlia que mantivemos em linha que para haver mudanças é preciso saber em que ponto se está. Em que ponto está a nossa relação com o trabalho, a nossa formação política, a memória das gerações passadas, a convivência, a propriedade da terra, estes tempos em que nem conseguimos fazer o luto de tantas pessoas que são memória do século XX e da oposição ao fascismo? Qual é a figura geométrica mais certeira para representar o tempo histórico não sei, mas de certeza que uma linha reta não é. O mito que se criou sobre a história de Catarina Eufémia converteu-a em mulher grávida. E ainda que a autópsia e os historiadores teimem em retirar esse dado do relato daquele dia de maio, ele mantém-se porque não nos resignamos a não ter continuidade para além do limite do tempo que se nos deu num futuro mais fraterno e amoroso que sonhamos. E assim temos que proclamar o que já se disse para não perder a dignidade que temos antes de fixá-la em direitos: fascismo nunca mais.

Máis de Maria Dovigo