Ouveios suevos

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Em praticamente todos os nomes de lugar que rematam en –ulfe ou –ufe, ressoam os últimos ouveios dos suevos, já que som topónimos que se devem à antiga palavra germánica wulf ‘lobo’, e se encontram concentrados na Península Ibérica quase exclusivamente no território do antigo Reino da Galiza. O étimo resulta hoje mais do que familiar, pois deu no inglês em woolf e no alemám em Wolf, designaçons do lobo que também dêrom –por citar só dous exemplos- apelido a duas grandes escritoras: a escritora feminista Virginia Woolf, e a mais célebre literata da RDA, Christa Wolf.

O lobo foi um animal de grande importáncia na mitologia germánica e, de facto, o deus Odim fai-se acompanhar sempre dos lobos Gueri e Freki. Esta importáncia deveu redundar na sua ingente presença na antroponímia germánica, base dos topónimos galegos em –ulfe ou –ufe. Para além dos já citados Wolf e Woolf, estám os Ulf e Olaf escandinavos que levavam alguns dos vikingos que realizaram incursons na Galiza. Por exemplo o danês Earl Ulf, também alcumado de Ulf o Galego na Knytlinga Saga, polas alianças que realizara com nobres galegos, como o conde Rodrigo Romariz, contra o rei Bermudo III, entom ainda um neno sob a tutela de Urraca. Noutras crónicas também lhe chamam Ulfo o Danês ou Ulaf-Galiza, isto é, o Lobo Galego. Antes dele, crê-se que por volta dos anos 1014-1015, também fijo estragos nas costas galegas o vikingo Olaf Haraldsson, mas como a história a escrevem os vencedores, este depredador passaria à historia como Santo Olaf –santo nacional da Noruega- após ser coroado rei em 1018 e converter-se ao cristianismo.

Umha incorporaçom lexical do wulf germano no galego-português, de há mui poucas décadas, é o do minério chamado volfrámio, ‘ferrugem do lobo’ em alemám, que se tornou estratégico durante a II Guerra Mundial por ser imprescindível para blindar os carros de combate Tiger e Panzer, além de projetis, devido a que se trata do metal com o ponto de fusom mais elevado: 3400 ºC. A sua presença na Galiza, incluíndo terras ocidentais da comarca de Ordes como algumha aldeia de Tordóia, fijo do nosso país um ponto chave na geoestratégia da contenda, desatando umha autêntica febre do wolfrámio tanto a nível do estarperlo entre o povo que intentava sobreviver à fame da pós-guerra[1], como subretudo entre as autoridades franquistas que vendiam o minério a Hitler (eis Manuel Ponte Pedreira, na sua famosa carta ao Embaixador británico, lhe recordasse os esforços da guerrilha galega para frear com as suas sabotagens este subministro ao nazismo) mas também e em secreto aos aliados, servindo este negócio sujo de “acumulaçom originária” de muitos dos atuais grupos de poder galego, como monstrou Hilda Carvalho num trabalho referencial publicado no Novas da Galiza[2].

Mais quais som os ecos dos ouveios suevos na toponímia ordense? A viagem leva-nos por Queijas, Gorgulhos, Leira, Mercurim e Cavaleiros.

Mapa de Recegulfe

A aldeia de Recegulfe, em Queijas, já aparece num documento do ano 1032, como “Rezeguldi”, sendo entom doada polo seu proprietário, o bispo Nuno, ao mosteiro de Soandres junto com outros bens e vilas da mesma paróquia e da de Cerzeda entre outras[3]. Recegulfe foi, pois, umha villa Rezeguldi fundada por um senhor da terra altomedieval de nome Recegulfus, nome germánico em que para o seu primeiro elemento há quem veja um reiks ‘rei, poderoso, rico’[4], ou um tema do verbo wikran ‘perseguir, vingar’ que segundo Joseph M. Piel explicaria vários casos que começam por Rece –ou Reca-[5]. Desta maneira, o proprietário primeiro e fundador desta aldeia de Queijas ou bem levava um nome que significava algo no sentido de o Rei dos Lobos ou bem no de a Vingança do Lobo, qualquer deles, em todo caso, nome assaz arrepiante.

Aldeia de Recegulfe, em Queijas
Aldeia de Recegulfe, em Queijas

Mapa de Guillufe

Outro ouveio suevo na comarca de Ordes é o lugar de Guilhufe, em Gorgulhos[6], que tem a sua parelha lusa noutra povoaçom, homónima em Braga. Este caso também está documentado, aparecendo Guilhufe citado num documento do ano 1404 como um casal pertencente também ao mosteiro de Soandres[7]. Aquí o nome germánico do primeiro proprietário do lugar estava composto polo elemento gótico viljia ‘vontade’, além do correspondente wulf. Guilhufe pode-se ler, já que logo, como a vila do tal senhor Vontade do Lobo.

Mapa de Meitufe en Leira

Quanto a Meitufe de Leira –hoje aldeia “costeira”, à beira das águas da barragem de Vila Senim ou Sam Cosmade-, pode que o nome do seu fundador medieval se explique polo elemento math ‘poderoso’, significando o antropónimo Meitulfus ou Meitulfo algo assim como Lobo Poderoso. Nesta aldeia de Meitufe havia escola de ferrado, polo menos na década de 1930, e a minha avoa Valentina da Vitória lembra-se bem de quando foi a ela:

“Primeiro fum à escola em Mercurim, no campo da festa, em aquela caseta que ainda está ali (é dos de Carrazedo). A mestra castigou-me um dia, nom recordo se foi porque nom sabia a liçom ou se nom sabia cantar o “Cara al sol”. Pegou-me na cara com as maos e nom me deixou sair quando os outros. Cheguei à casa chorando e o meu avô foi ao dia seguinte e deu-lhe de presente umha garrafa de azeite: deixo-lhe que nom me voltasse pegar, e nom o fijo. O “Cara al sol” ainda o sei agora: Cara al sol con la camisa nueva que tu…. ¡Arriba España! E com a bandeira espanhola ali fora para cantar-lhe diante. Algo aprendim: o Silabario e o Catón. Ali estivem pouco tempo. Depois fum à escola de Meitufe; pagavamos um ferrado de trigo ao ano. Na do campo era de balde.

De inverno, para ir a Meitufe, faziamos um fachuço de trapos, com caroços de milho no médio para que ardera e poder quentar as maos. Cada rapaz levava o seu. Quando chovia levava-se umha saca de capucho.

A escola era pola manhá, e os livros eram o Manuscrito, os cadernos e a Guía de Artesanos ou algo assim, nom lembro bem. Chegue a ela com a mao, e bom foi. Escrevia primeiro numha pizarra com o pizarrim, e depois já em papel com a pluma. Tinha tinteiro com a sua tinta.

Na escola de Meitufe, ainda em pé, ensinava um mestre chamado Antom. Teria uns quarenta anos. Tinhamos que dar um ferrado de trigo ao ano”[8].

Às branhas de Meitufe também iam naquelas anos os vizinhos de Perra ao moínho (da casa da minha avoa ia a sua mai, Estrela, “diziam que roubavam o grao no moínho mas ela nom tinha medo), até que figérom o seu próprio moínho comunitário.

Letreiro de Meitufe en Leira

Mapa de Soufe

Para o lugar de Soufe, em Cavaleiros, parece intuir-se o prefixo latino sub ‘sob, baixo’, de tal sorte que a atual Soufe fosse umha vila ou lugar situada mais abaixo de umha outra, primitiva, de nome Ulfe ou Ulfe, genitivo de possessom dum proprietário com um nome germánico monotemático: wulfs, lobo. Mas é só umha especulaçom. A Ulfe é um magnífico livro da socióloga Julia Varela, em que falam as vizinhas da sua aldeia natal, homónima, pertencente a Chantada. Nom sei se haverá o apelido de origem toponímico Soufe, mas sim o há de Ulfe, que levou com dignidade Cándida Ulfe, caseira de Larim (Arteijo) que em 1991 se converteu em símbolo da luita contra os despejos e a especulaçom imobiliária.

Letreiro de Mañufe Mercurin II

Fica por último Manhufe, pequena aldeia de Mercurim que debe vir de umha pretérita *(villa) Mannulphi, possessom medieval de um senhor da terra de nome germánico Mannulphus, composto polos dous elementos góticos manna ‘homem’ e mais wulfs ‘lobo’, com o que o nome completo significaria algo assim como o Homem Lobo ou Lobisomem, existindo na mitologia germánica o Werwolf ou lobisomem. Segundo conta Tácito no seu Germania, Mannus –antropónimo de clara referência ao germánico man, ‘homem’- foi o pai das três primeiras tribos germanas: os ingaevons, os herminos e os istevos. Deste primeiro rei do povo germánico, que se extenderia com o tempo até à Gallaecia Germanica, há umha espetacular gravura num livro do ano 1543 intitulado A origem dos primeiros doze reis e príncipes da naçom alemá.

Da aldeia de Manhufe informa Valentina que conta com:

“a Casa do Roxo, a de Manuel do Pequeño, a de Rios, a de Serafim, a da Zapateira (esta tem menos de cinquenta anos), a dos do Xastre, a de Calvo e a de Cabanas. Na de Cabanas viviu um homem mui especial que estava cojo (diziam que fora da guerra), andava meio despido, com os socos sem atar. Diziam que toleara porque estudara muito. Durmia fora e a gente tinha-lhe medo. Fijo escola e chamavam-lhe Banjamim de Cabanas. Eu vim-no umha vez, com o cabelo mui longo e barba. Em Manhufe tinham moínho, no rio cerca da Casa do Xastre”.

Letreiro de Mañufe Mercurin

Ainda, um outro vizinho de Manhufe permanece injustamente no esquecimento: Ramón Prego N., moço que marchou a ganhar o pam nas duríssimas minas de San Fins, em Lousame, onde se fijo militante anarquista da CNT em cujas fileiras participou –aos 25 anos- da resistência ao Golpe de Estado fascista de 1936, formando parte da famosa Coluna Sanfins que passou por Ordes em autocarros blindados polos próprios mineiros, caminho da Corunha, dispostos a defenderem a cidade da matança que se avizinhava. Por estes feitos Ramón Prego foi julgado por rebeliom (numha demonstraçom de hipocrisia infinita os tribunais franquistas acussárom de “rebeldes” aos que defenderam o governo legítimo, democraticamente escolhido, da república), resultando, afortunadamente, sobresseido[9]. Ramón, segundo lembram algumhas vizinhas, era filho de Lela de Prego, mulher mui pobre e solteira, que padeceu muito para sacar os filhos adiante.

Mapa de Mañufe en Mercurin

[1] Veja-se o que conta Ramón de Valenzuela em. Era tempo de apandar, Vigo, A Nosa Terra, 1997, especialmente no Capítulo IV.

[2] Hilda Carvalho, “Dinheiro nazi enriqueceu o Banco Pastor e serviu para a criaçom da Fenosa e a Finsa”, Novas da Galiza, nº 93, pp. 16-17.

[3] Manuel Lucas Álvarez, San Paio de Antealtares, Soandres y Toques: Tres monasterios medievales gallegos, Sada, Ediciós do Castro, 2001, p. 220.

[4] Como acha Almeida (1999:521) para o caso de Recemondo.

[5] Joseph-Maria Piel, Estudos de linguística galego-portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p. 144.

[6] Na cartografia do ING: folha Ordes 70-III.

[7] Manuel Lucas Álvarez, San Paio de Antealtares, Soandres y Toques: Tres monasterios medievales gallegos, Sada, Ediciós do Castro, 2001, p. 125.

[8] Comunicaçom pessoal.

[9] Lorena Cuevas Buján & Eliseo Fernández Fernández, Breve Historia da Coluna de Sanfins, Ferrol, CNT Galiza (com a colaboraçom da Sociedade Histórica e Cultural ‘Coluna Sanfins’, 2016.

 

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