Os ventos da roseta

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thumbnail_expo_bussolasNa navegação tudo gira em redor do rumo”. Esta é a frase inicial dos painéis de uma pequena exposição sobre bússolas que visitei no forte de Peniche, na Estremadura portuguesa. Uma das surpresas que tive vivendo em Portugal foi que o imaginário marítimo que na Galiza vivi como marca de família, de classe, popular, diferencial, resistente à uniformização estatal, de imaginário e estratégia política tão continental, é aqui imaginário institucional e nacional. Ainda que o convívio com tanta imagem marítima e com nenhum trabalhador nem trabalhadora do mar nesta cidade de Lisboa em que habito me deixa a impressão de um mar muito escrito e pouco vivido, não é menos verdade que esta memória académica e de museu me tem dado ângulos sobre a minha história marinheira, a minha genealogia de família crescida nas duas margens da ria da Crunha, que não tive no meu lar nativo. Como a Corunha, Caióm, Ogrobe ou o castro de Baronha, a península de Peniche em que se situa o forte está ligada ao continente por um tômbolo. O concelho é uma miniatura das memórias de qualquer porto deste extremo atlântico, em que se misturam relatos sobre a caça da baleia, bem marcada nos topónimos, e a defesa do litoral de ataques piratas que motivou a construção do forte. Há também memória do povoamento por famílias marinheiras galegas desde os anos imediatos à conquista de Lisboa. O forte, que foi perdendo a sua função inicial até converter-se em prisão política durante o Estado Novo, alberga desde há décadas um museu com essa memória dual do concelho: a longa história do porto de pesca e a história recente da repressão e da resistência. No último mês noticiou-se a intenção do governo de concessionar o forte a privados para fazer dele uma unidade hoteleira de luxo, com o argumento da deterioração geral do imóvel, facto que tem gerado alguma contestação, especialmente dos antigos presos políticos e as suas famílias. Não são muitos os locais em que se dá sinal e honra a memória de quem se opôs ao regime do Estado Novo. Neste país de “brandos costumes” o pensamento mole dita que em Portugal tudo é brando, também o regime ditatorial, e até eu tenho tido que desmentir em conversas ocasionais o argumento da suposta neutralidade e “brandura” de Salazar em relação à Guerra Civil espanhola. Nos anos que cá levo já pude verificar até que ponto as quatro décadas de Estado Novo deixaram marcas profundas até no relacionamento entre as pessoas, no medo a pensar, a falar, a discutir, a construir coletivamente pensamento e ação. O social e o político têm ritmos e percursos diferentes, apesar da sua contínua interferência.

Depois de percorrer as celas dos presos e ouvir dos guias os relatos pesados e dolorosos de vivências diárias e fugas, especialmente aquela que protagonizou Álvaro Cunhal e outros nove presos em 1960, detenho-me com algum alívio nas salas em que se exibem artes de pesca, embarcações, rendas de bilros que por aqui também se usam e uma grande coleção de conchas trazidas de muitos mares, acompanhada sempre pela contínua voz das ondas, com as ilhas Berlengas no horizonte, como a Marola e as Sisargas do meu arco ártabro. É tão familiar esta geografia que por um momento consigo imaginar-me nessa escala do tempo na que até os seixos fluem. Como dentro de uma esfera em que o vento sopra, em todos os portos encontro a mesma taça debicada do marinheiro dos poemas do piloto poeta Manuel António. Volto à sala das bússolas como se voltasse ao conforto da casa marinheira, à procura do rasto das casas do remo das que ainda guardo uma muito vaga memória. Contemplo os instrumentos náuticos como objetos litúrgicos, bússolas, lemes, âncoras, as redes e as nassas que trazem o perfume mágico do fundo oceânico. Leio uma página perdida do cartafol do vento que veio dar a esse lar perdido e encontrado dos muitos rumos do vento na rosa.

Soprou a fortuna nesta história espalhada e enredada dos povos do mar e, tão próximos somos, tão espelhados, e tão diferente é o cantar que cantamos galegos e portugueses. No porto de Cedeira há um monumento às mulheres dos marinheiros e no da Crunha aos emigrantes que durante décadas embarcaram no Cais de Ferro em direção à América. Eu trago no bico o cantar dos contos dos trabalhadores e trabalhadoras do mar e dos emigrantes, dos que encheram de nomes galegos o mar de Irlanda e as ruas da Crunha dos ecos das marés vividas na Terra Nova ou no Grand Sole, dos presentes com cheiro a couro argentino e imagens de gaúchos e casais a dançarem tango, sourvenirs sacralizados por uma família dividida pelo oceano que assim deixava sinal de não desistir da sua ligação. Bem diferente do Padrão dos Descobrimentos de Lisboa, com o infante D. Henrique como figura frontal, e a narrativa sobre a expansão ultramarina. Junto ao Padrão, junto ao farol da Crunha, uma rosa dos ventos, a lisboeta a representar o império português, a crunhesa os brasões dos sete povos do mar céltico. Uns e outros memória dos navegantes e os seus caminhos. Mas a distância ideológica, os factos históricos que imaginam e mesmo a ideia de história que cada uma das rosas dos ventos representa produz um efeito como de trompe l’oeil. Muito me têm feito pensar estas marcas de classe e ideológicas das nossas tradições discursivas. É um desafio compreender este imaginário comum e estas narrativas antagónicas.

thumbnail_rosa_dos_vento_reinelVolto às bússolas e fixo o olhar na flor de lis sobre o ponto cardeal do norte. Reza a história que a primeira flor de lis sobre o ponto cardeal do norte que se costuma representar nas bússolas está na rosa dos ventos da carta de marear do cartógrafo português Pedro Rainel, acabada em 1504. A imagem do meu porto primeiro ilumina-se como com uma raiola no meio das nuvens. Há anos que caminhar em direção à estrela polar é caminhar para a minha casa. “O Guerreiro venceu e trouxe o norte. Desde então o vento acumula na Cidade moreias deste nome para manter acesa a lumineira do Faro”. São versos do poema “Norte”, de Luisa Villalta, que me levam de volta a uma história que compreendo. Eu não vivo do mar, como a minha avó mariscadora, o meu bisavô carpinteiro de ribeira, como o meu remoto devanceiro Pedro Jaspe, marinheiro do grémio de mareantes da Crunha que deixou o seu nome no voto do concelho a santa Maria para que livrasse a cidade do cerco de Francis Drake, mas cresci a contar ondas e a espreitar o movimento dos barcos e herdei o mesmo ângulo da margem oceânica no relato da história da família humana. Quando me falha o rumo, conto-me a mim própria o reverso sentimental da história marítima. Conto-me histórias de marés e de naufrágios, dos tios e tias e do avô que emigraram seguindo o caminho do sol, do primo que fugiu da guerra remando até às costas da França. Conto-me a história das casotas do Portinho construídas com restos de barcos, do sal a corroer os metais, dos barcos desfeitos como uma carcaça no estaleiro da ria. Digo em voz alta palavras do mar que nunca aprendi noutra língua se não a dos galegos. Digo os poemas dos nossos poetas marinheiros, Manuel António, Avilês, Xohana Torres, Xosé Iglesias, como quem se sabe habitante da mesma ilha soberana no meio do coração. Canto-me as canções dos Diplomáticos, que me trazem todo o vento e todo o movimento dos bairros da Crunha. Ouço como um eco interior o fluxo contínuo das águas doces e salgadas na ria, o som e os sinais da vida a ferver nas margens.

Nos ventos da roseta todas os discursos são possíveis: as narrativas da aventura, do naufrágio, da pesca, da viagem, do comércio, da troca, da conquista, da pilhagem, do espólio, o diálogo lírico ou onírico com as criaturas marinhas, peixes, sereias, homens marinhos, corvos, a flora resistente das rochas, o pensamento a equilibrar-se na corda bamba do horizonte… Como nos romances de Stevenson, filho, sobrinho e neto dos construtores dos faróis da costa norte da Escócia, como no romance póstumo sobre o faroleiro do fim do mundo de Verne, o rumo da navegação, grande metáfora narrativa da vida individual e da coletiva, faz-se de escolhas morais, dos compromissos íntimos, do ser humano que se confronta com ao mesmo tempo com o mundo à volta e o seu próprio abismo interior. Ainda há mais fios nesta longa trama da história marítima. O marinheiro grego no cemitério de Fisterra, os náufragos do “The Serpent” no Areal de Trece, os marinheiros das duas grandes ilhas britânicas do cemitério de santo Amaro da Crunha, os da ilha da Estrela em Lage… Viver na beira-mar ensinou-me que não só os mortos da terra são nossos, nem as memórias, nem os destinos. Se tivesse que fazer uma antologia das narrativas sobre a história marítima, entre as primeiras páginas estaria aquele capítulo dedicado à navegação a vela do livro de memórias de Joseph Conrad, O espelho do mar. É mais do que um canto saudoso aos veleiros escrito num tempo em que o comércio colonial exigia, exige, velocidade e pontualidade. Escrito com profundo amor pelo mar e os “homens simples”, é um confronto com a amoralidade do sistema económico colonialista, que aliena o humano do natural. Esse é o significado do vento no poderoso e amoroso escrito de Conrad, ensinar os homens a lidar com a incerteza e ainda a amá-la como reveladora do mais elevado no indivíduo, arte aperfeiçoada durante séculos e que os marinhos do seu tempo viram desaparecer. “O amor é raro”, diz Conrad, “porque o amor é o maior inimigo da pressa”. Mas como o vento ainda sopra, de certeza ainda rodamos.

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Carta de Pedro Reinel 1504

Máis de Maria Dovigo