O risco de olhar atrás

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Quando a nossa geraçom militante se incorporava à causa galega, alô polos meados da década de 90, decorreram 23 anos da grande greve geral de 1972 em Vigo, que nacionalizara o movimento obreiro; transcorreram 20 anos da morte de Reboiras; cumpriram-se duas décadas desde que se consolidara esse grande entramado associativo que se chamava ‘movimento nacional-popular’, e nem tam sequer três lustros desde que os deputados nacionalistas eram expulsos do parlamento galego; passaram também pouco mais de 8 anos desde as grandes greves gerais contra a reconversom industrial, ou desde que a direcçom do EGPGC caía detida nas montanhas do interior.

A olhos de adolescentes, esses percursos cronológicos pareciam umha eternidade; umha distáncia abismal que remitia a outras vidas e outros tempos; em termos históricos, na realidade, trata-se apenas de suspiros; e na mediçom biográfica da mediana idade, um tempo modesto, nem curto nem longo. Umha das etapas do caminho da vida.

Com a voracidade por saber própria dos momentos iniciáticos, olhávamos com admiraçom aquela mocidade de antano que, sem pais nem nais políticos, e em muitas ocasions sem formaçom académica, organizava sindicatos que nom sabiam de liberados nem de subvençons; fascinávamo-nos com as estórias de moços e moças chegadas dum rural isolado que, politizados na capital, punham a andar todo o entramado organizativo nacionalista, do mundo agrário ao cultural, passando polo político; aqueles que afirmavam orgulhosamente nos seus documentos que ‘para o militante galego o verao nom é um período de férias, senom de organizaçom’ e rejeitavam o hedonismo e as drogas; escuitávamos com atençom as peripécias de quem, nom satisfeito com artelhar secçons sindicais, colectivos de base e partidos, ainda pegava nas armas e ia procurar recursos para o movimento atracando bancos; e ficávamos pampos ao saber que, em plena década de 80, em ‘democracia’ e na Europa avançada da OTAN e a CEE, independentistas galegos viveram clandestinamente e aturaram os rigores do monte e a soidade alimentados apenas de finanças escassas, idealismo e entusiasmo. Nós, pola contra, éramos já filhas e filhos do ‘Estado do Bem-estar’, que com as suas contradiçons, já nos formara em certa molície e opulência; os ecos da vaga mundial de rebeldia dos 70 sonavam longe; a política começava a ser, por riba de todo, marketing e processo eleitoral. Se o passado nos inspirava, também nos acomplexava. ‘Aqueles eram tempos, e aquela era militáncia!’ pareciamos pensar.

Ficávamos pampos ao saber que, em plena década de 80, em ‘democracia’ e na Europa avançada da OTAN e a CEE, independentistas galegos viveram clandestinamente e aturaram os rigores do monte e a soidade alimentados apenas de finanças escassas, idealismo e entusiasmo.

Se recuarmos desde o actual 2023 à viragem de século, momento fundacional no independentismo para tantas pessoas e organizaçons, poderemos comprovar que a distáncia cronológica é a mesma que a que os núcleos activistas dos 90 mantínhamos com a geraçom da ‘Transiçom’. E curiosamente, certas percepçons intergeracionais volvem a produzir-se. Em conversa com S., um militante novo cheio de energia, manifesta-nos que, porém, apesar de todos os seus ideais e ilusons, olha com inveja sá para aquela geraçom dos primeiros 2000. Oxalá fôssemos assi!, parece dizer. Como a geraçom que se formava no reintegracionismo sem internet e repassando pesadas gramáticas em papel, que fundava e dirigia organizaçons e jornais, com curta idade, que punha boa parte dos seus magros salários precários para a causa, que se envolvia em apaixonadas controvérsias ideológicas produzindo textos profundos, que estava disposta a ir a prisom, e que nom predicava fraquezas pessoais nem necessidades de currículo para se afastar da luita.

A percepçom é certa, mas incompleta, tam certa e incompleta como a que nós tínhamos das geraçons combatentes dos 70. Em todas as épocas, e no interior das causas justas, há heroísmo e desinteresse, como também torpeza, precipitaçom, ignorácia e cativeza (os mesmos elementos contraditórios que latejam no nosso interior como pessoas). E da mesma maneira que tendemos a ver nos nossos coetáneos um monte de defeitos, por certa deformaçom óptica, também tendemos a ignorar as muitas luzes do presente. A chamada, com certo tom comiserativo, ‘geraçom de cristal’, dá, como deu a nossa, minorias que se organizam contra vento e maré. Neste caso, apesar de se criar na desolaçom de três crises económicas, numha pandemia de doença mental, nas jaulas invisíveis do mundo virtual, ou numha desgaleguizaçom cultural e idiomática gritante. O heroísmo existe, mas nom tem porque tomar necessariamente as formas do passado.

A chamada, com certo tom comiserativo, ‘geraçom de cristal’, dá, como deu a nossa, minorias que se organizam contra vento e maré. Neste caso, apesar de se criar na desolaçom de três crises económicas, numha pandemia de doença mental, nas jaulas invisíveis do mundo virtual, ou numha desgaleguizaçom cultural e idiomática gritante. O heroísmo existe, mas nom tem porque tomar necessariamente as formas do passado.

Se olhamos a nossa tradiçom de luita, deve de ser para conhecer e respeitar enormemente quem nos precedêrom, nom para estilizá-la de maneira que nos representemos hoje como inseguros e carentes, dominados pola saudade e a impotência. O passado inspira-nos, mas só as geraçons presentes podem responder as grandes perguntas do presente.

[Este artigo foi publicado originariamente no galizalivre.org]