O Imperador da nêvoa

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O meninho Afonso Raimundes, nado apenas sete anos em Caldas de Reis, foi coroado rei da Galiza no 17 de setembro de 1111 numha cerimónia na catedral de Santiago que pretendia cenificar a coaligaçom entre os dous poderes tradicionais do país: o eclessiástico, representado polo bispo Diego Gelmírez; e o nobiliário, encarnado em Pedro Froilaz, conde da poderosa Casa de Trava e aio do meninho1. A História Compostelá descreve os fastos da entrega ao monarca do cetro e a espada, a imposiçom do diadema de ouro e a subida ao trono pontifical. Dizque bebêrom sidra no banquete.

Baixo o reinado do já chamado Afonso VII o Reino da Galiza atingiria a máxima expansom territorial dessa êpoca: de Fisterra aos Pirineos, do Ortegal à desembocadura do Tejo e a Jaém. Ainda, foram subordinadas a ele territórios na Gasconha e a França, rendendo-lhe vasalagem os condes de Barcelona e Tolosa, assim como os reis de Navarra e Roda. Por todo isso, os Anais cameracenses de Cambrai citam três imperadores no mundo ocidental do momento: Federico I do Sacro Império Romano Germânico, o Imperador de Bizâncio, e “Afonso, o imperador da Galiza”.

Para além destas “grandezas” Afonso VII também atenderia a assuntos mais prosaicos, como a gestom burocrática do dia-a-dia do reino, assinando documentos e gerindo as suas propriedades, divertindo-se nos descansos com a música do jograr da sua corte, “Palea, domini Imperatoris joculator2, que polo apelido (Palha), bem poderia ser de parte de Rodis. Mas é ali, entre a documentaçom burocrática, onde achamos mais referências a Afonso VII à comarca de Ordes. Em 1152, por exemplo, doa a igreja de Sam Martinho de Berreio ao mosteiro de Sam Paio de Antealtares, resultando o texto especialmente interessante porque descreve minuciosamente os marcos da freguesia3. O seu documento mais importante, contudo, é o da primeira concessom que assina o Imperador: a do privilégio de couto ao hospital de Ranha Longa (ranialonga), que nom é outro que a atual freguesia de Sam Lourenço de Bruma, pequeño ilhéu do concelho de Messia entre os de Ordes e Abegondo. Dependente do cabido, o hospital para peregrinos foi fundado polo arcediano Pedro Cresconiz e dotado por ele e outros coengos, assum como por Dom Bermudo, também da Casa de Trava4. O hospital e a capela, austeros como corresponde às suas funçons, enquadram-se arquitetonicamente no gótico tardio.

Aldeia do Hospital de Bruma.
Aldeia do Hospital de Bruma.
Albergue de peregrinos no Hospital de Bruma.
Albergue de peregrinos no Hospital de Bruma.

Para Elisa Ferreira Priegue a fundaçom do Hospital de Bruma foi o factor decissivo para que começasse a artelhar-se seriamente a rota de peregrinaçom jacobeia que ia do Burgo do Faro a Compostela, numha altura em que os documentos já mencionam a chegada de “navium tam francorum quam aliorum omnium” e de viageiros ingleses5. Também os cruzados holandeses e alemáns que em 1217 conquistárom Lisboa aos mussulmanos baixárom por esta rota a Compostela, a receber a bençom do Apóstolo, num caminho de lhes levou um dia e umha noite. Quem os veria passar por Bruma! O caminho atravessava todo o Condado de Montaos, restituído polo próprio Imperador da Galiza a partir de 1124, e por cuja escritura (de 31 de maio de 1124) conhecemos bem as suas fronteiras: do Tambre ao Mero, que o separava do Condado de Nendos, e lindando ao norte com as terras do Faro Precantium.

Igreja do Hospital de Bruma.
Igreja do Hospital de Bruma.
Parte de atrás da igreja do Hospital de Bruma.
Parte de atrás da igreja do Hospital de Bruma.

aldeias ordes

Entrando já na etimologia, Bruma (e o microtopónimo Montes de Bruma, na vizinha Ardemil) foi registada na viagem de 1745 do Padre Sarmiento como Gruma, mas debe tratar-se dumha gralha6. Martins Estêvez7 sinala o latim bruma, ‘o dia mais breve do ano; solstício invernal’, mas é difícil intuir como um conceito temporal pudo ter gerado o topónimo. Terá algo a ver, mais bem, com a nêvoa tam caraterística da zona? Seja como for o topónimo nom gerou apelido, se bem em Leira há a casa dos do Brumeiral, mui conhecida na paróquia. Quanto ao padroeiro, Sam Lourenço houvo dous: o bispo de Dublim que tem a festa no 14 de novembro e o assistente do Papa Sisto II que assaram à grelha em Roma, com festa no 10 de agosto, celebrada no Hospital. Este último tem um conto humorístico que nom lembro bem – dos que tanto gostavam a Castelao e a Guilherme de Baskerville – de quando o iam fazer churrasco e, dizendo aos seus carrascos que o lume era mui pouco, o parvo de um deles queimou-se ao comprovar se era certo. Os lusos foram-lhe dando o nome deste santo a muitas terras africanas: a Ilha de São Lourenço foi o primeiro nome dado por Diego Dias à enorme Madagâscar futura encrave de piratoria; San Lourenço é a principal via de comércio da Moçambique com o Transvaal; e mesmo Lourenço Marques foi durante muito tempo o nome de Luanda, essa trepidante, criativa e excitante cidade que, nom obstante, mantém um costume que por aquí estamos a perder: o de falar galego. Como apelido, Lourenço nom é mui frequente em Ordes, se bem ocupa o posto 21 dos mais habituais na Galiza, o 49 em Portugal, e o 74 na Espanha, como Lorenzo. Emparenta etimologicamente com Louro, forte nos arredores de Bruma, e triunfa nos nomes. Eis, de novo, o grande Lourenço Louro, ‘Lourenço da Fraga’.

Quase mil anos depois de Afonso VII, baixam por Bruma mais peregrinos do que nunca antes polo Caminho Inglês, em direçom à catedral. Poucos saberám que ali está o nosso Panteom Real, e quase nengum o visitará. O Imperador pedira ser enterrado ali, mas a morte apanhou-no em Viso del Marqués em 21 de agosto de 1157, quando voltava de gerrear em Almeira, e sepultárom-no na catedral de Toledo, longe do panteom real galego onde jazem os restos – segundo algumhas fontes – do seu pai Raimundo de Borgonha e posteriormente fora enterrado o seu filho Fernando II e o seu neto Afonso VIII. As autoridades da Igreja espanhola nunca estiveram mui interessadas em que se visite essa parte da catedral. Nom vaia ser.

1 Para a história de Afonso VII sigo a Cilia Torna, “Afonso VII, O Emperador”, Sermos Galiza n.º 314, 20/9/2018, pp. 2-3.

2 Terreros, Paleografía Española, 1758, pp. 100-101.

3 O texto que havemos ver a propósito dessa freguesia, está em Lucas Álvarez, 2001, D.13.

4 Barreiro Somoza, 1987, p. 378. Ranha Longa, junto com Montaos e Galo [Xalo no Nomenclátor] aparecem citados num documento de 1112 que delimita o território de Nendos: “per terminis de Spelunca et per Ranialonga et per terminis de Montanos et per Galo et per terminos de Faro et per illam carreriam de Singraies usque in Merum” (Elisa Ferreira Preigue, Los caminos medievales en Galicia, Ourense, 1988, p. 133, n. 267). Ángel del Castillo (“Arquitectura de Galicia”, em: F. Carreras Candi, Geografía General del Reino de Galicia, vol. II, Generalidades, Tomo 2º, Corunha, Ediciones Gallegas, 1980, p. 1045) fala diretamente do Hospital “de Raña Longa, que en 1140 fundó Alfonso VII el Emperador”.

5 Elisa Ferreira Priegue, “Las rutas marítimas y comerciales del flanco ibérico desde Galicia hasta Flandes”, em: AAVV, El fuero de San Sebastián y su época, Donostia, 1982, pp. 215-235, pp. 221-222.

6 Fr. Martín Sarmiento, Viaje a Galicia (1745), de. E estudo de J.L. Pensado, Universidad de Salamanca, 1975, p. 63: “De Cabeza de Lobo a San Lorenzo y Hospital de Gruma”. Sublinhados seus.

7 Martins Estêvez, 2008, p. 101.