Tenho falado, neste mesmo portal, da descoberta do livro inédito Feixe Levián, em julho deste ano. Porém, não disse nada sobre os restantes poemas inéditos que descobri. A maior parte deles poderiam ser datados entre 1934 e 1955, devido à ortografia e às escolhas linguísticas. Não obstante, destacavam ante os meus olhos nove poemas que não eram desta época.
Como sabemos, o derradeiro livro de poesia do professor Carvalho Calero foi publicado postumamente, em 1990: Reticências… (1986-1990). Nele, foram recolhidos os poemas que escreveu depois de Cantigas de amigo e outros poemas (1986). Entre os documentos de Dom Ricardo conservamos os seus derradeiros poemas, que não foram incluídos neste mencionado volume de 1990. Hoje, quero partilhar convosco um destes nove poemas, o derradeiro. Este, ainda que não aparece na versão que tenho, foi dedicado a Aurora Marco e publicado em Encontros con don Ricardo (2019) e Foula e ronsel (2020). Por acaso, dentre os nove, o único não inédito.
Hoje, quero partilhar convosco um destes nove poemas, o derradeiro. Este, ainda que não aparece na versão que tenho, foi dedicado a Aurora Marco e publicado em Encontros con don Ricardo (2019) e Foula e ronsel (2020). Por acaso, dentre os nove, o único não inédito.
Carvalho lutou contra os fascistas na guerra civil e, nalgum momento da sua vida, percebeu que há uma luta mais difícil do que a de sobreviver corporalmente a um conflito bélico. Estou a falar da guerra contra o esquecimento, esse ao que o condenaram alguns amigos e colegas. Em Reticências… temos exemplos claros desta denúncia nada velada, como é o caso do poema “Poeta verdadeiro”: Excomungado, anónimo, / viveu, morreu. Já somente eu o lembro. / Poeta verdadeiro.
Pois bem, agora que o mestre não está, cumpre lembrarmos que o tempo passa, e é nossa a responsabilidade de manter o facho acesso. A história que não morre por completo, não poderá ser apagada: “Agora chegou o tempo”.
Agora chegou o tempo
em que já nom é para mim o ofício de soldado,
a vida licenciou-me ou doutorou-me em artes bélicas.
Os moços da minha aldeia,
cando volvim a ela com o meu título de veterano,
em que constavam os meus serviços à República,
gostavam de achegar-se à minha mesa na taberna
e convidar-me a um vaso de vinho do país
enquanto me perguntavam polas minhas campanhas,
e, como o outro cantou, molhando o dedo no alvarinho,
lhes desenhava na mesa a disposiçom do campamento dos partos
e as linhas de ataque da cavalaria númida.
Mas forom passando os dias como um rebanho de búfalos
e os anos como umha bandada de pílharas;
e os moços forom madurando, e estalarom novas guerras;
e aqueles que me ouviam com a boca aberta, figerom-se guerreiros,
e com o tempo, alguns obtiverom a sua licença
e coxos ou mancos ou inteiros, retornarom às suas casas,
e agora reúnem-se com novos moços na taberna,
e som escuitados como o fora eu.
A técnica militar mudou,
combate-se com novos países.
Eles som os que tenhem de que falar aos moços.
A ninguém lhe interessam as minhas antigualhas.
Mudaron os tempos. Só no meu recanto da taberna,
molho o dedo no vinho e desenho o campamento dos partos
e as linhas de ataque dos númidas,
contando-me a mim mesmo as batalhas em que participei,
já tam alongadas na memória da história,
que os moços esquecerom-nas ou nom souberom nunca delas
ou nom creem que existissem,
e eu mesmo estou arrente de ser dessa opiniom.