Nos primeiros anos de andaina do Parlamento Galego uma estranha (e da qual desconheço os motivos) abstenção do BNG perante uma moção polo reconhecimento do direito da Galiza à autodeterminação, permitiu a Fraga fazer aquela piada fácil e paternalista de que, na nossa Terra, tal reivindicação “só a pedem Camilo Nogueira e o seu cunhado”. Aquele cunhado autodeterminista não era senão Joám Lopes Facal, militante de longo alento, ativista linguístico, colaborador habitual nos meios galegos e estudioso da nossa economia e sistema financeiro. Também é o autor de Percursos sem roteiro.
Através dos caminhos da geografia, a política a língua ou o pensamento, mas também da gastronomia ou mesmo das intimidades conventuais, Facal avança atento e com um humor e um estilo genuinamente atlânticos, de prosa clara e ágil mas também irónica. Um sente-se, lendo-o, na placidez duma conversa de taberna acolhedora, lareira acessa e parolar divertido dum Chesterton ou um Plácido R. Castro, o nosso homem mais anglosaxão. Mesmo este leitor, que apenas se sente tranquilamente “europeu” quando vê o ciclismo, se deixaria enredar numa conversa sobre a “via europeia” para a Galiza em tão agradável companha.
Cidadãos de 3.781 pátrias paroquias
Dos roteiros facalianos acho que merecem especial destaque os dedicados à morfologia social do país, onde se descrevem com mestria os condicionantes geográficos – a dispersão principalmente – do nosso agir nacional, sintetizados numa frase certeira:
“É a fortaleza e a debilidade do múltiplo frente ao unitário, da identidade tribal frente à republicana, da geografia frente à história”. (p.17)
Mesmo que atualmente 41% da população se concentre já em apenas 70 paróquias, este tipo de organização social mantém uma força inegável nas estruturas mentais e simbólicas. Dizia o antropólogo Marshall Sahlins no seu livrinho já clássico Tribesmen, que nas sociedades verdadeiramente tribais, sorte de “animal privado de sistema regulador central”[1], a fortaleza reside nas bases da pirâmide social, sendo a unidade “nacional” – amiúde anónima e quase sempre tática, circunstancial e fugaz – o elo mais débil da cadeia social e identitária. Bem o sabia Manuel Mandianes, quando ao refutar o mito da submissão galega, reclamava que se deslocasse o foco do nacional para o paroquial e o comarcal, onde se podiam observar um semfim de resistências à assimilação. Não se trata de idealizar nem de condenar, senão de compreender esta realidade, tão refratária – para bem e para mal – ao Estado-Nação e ao partido-nação, à hora de inventar formas próprias de organização e práxis política, necessariamente mais confederais do que as clássicas da esquerda leninista.
Debate, espaço público e indigência teórica.
No terreno político Facal aborda sem concessões a crise do soberanismo, da qual diz que, se tivesse que “atribuir a manifesta incapacidade do nacionalismo galego para seduzir a consciência social do país a um motivo principal, eu apontaria sem vacilar para a indigência e a desatualizaçom do discurso político que vem proclamando” (p.171). Assim mesmo, demonstrando uma atenção ao independentismo pouco comum entre o nacionalismo, comenta em termos elogiosos o comunicado de autodissolução de AMI, valorizando a honestidade de não perpetuar uma ferramenta já não operativa como um fim em si próprio.
Quanto à denunciada indigência teórica. Antom Santos deu várias razões deste deficit num trabalho de há anos [2], quando comparava “as obras de referência autóctones da década de 70-80 com a pobreza (ou ausência) da produçom intelectual de hoje”. Alguns dos motivos da falta de desenvolvimento teórico são:
- a esclerose dos espaços próprios, físicos (centros sociais, ateneus, escolas…) e simbólica (meios de comunicação, tecido cultural independente), sem os quais o debate afoga, nas desputas partidárias e as posições mais comprometidas se tendem a clandestinizar;
- o falseamento do debate que produziu um processo nunca declarado de aggiornamento, além de ocultado polo avanço eleitoral, “mui habitual em todos os reformismos, e especialmente naqueles inspirados na sua origem por certo estalinismo”, onde “quanto mais se fai um esforço desesperado por recriar a “pureza” interna e por reforçar toda a panóplia simbólica mais errática, imediatista e temerosa do velho revolucionarismo é a linha política real”;
- em paralelo, nesse afastamento da luita real os intelectuais de partido “mantivêrom e mantenhem a instituiçom unida com umha utilizaçom surpreendentemente eficaz da mitologia interna. A retórica, a inflamaçom verbal em contraste com a pobreza dos factos e a literaturizaçom do discurso som cortinas de fumo para ocultar impotência e incapacidades”. Underground o filme de Kusturica é um exemplo deste tipo de processos.
Pola contra, Facal procede do setor do nacionalismo que praticou um autonomismo pragmático, sincero e consciente. Aliás, sem ser independentista, comparte com nós certa homologia estrutural: em tanto que excêntrico no campo soberanista e também no cultural (por reintegracionista): razão pola qual converge com independentistas em projetos, como a construção de espaços próprios para a cultura dissidente. É mui satisfatório ver como Roteiros sem percurso frequenta esses espaços livres: a apresentação do último livro de Ignacio Castro numa editora alternativa como Corsárias, ou a do Galiza, um povo sentimental? de Helena Miguelez-Carballeira no C.S. Pichel (livro, não o esqueçamos, desbotado polas grandes editoras e publicado pola Através no nosso modelo autogerido de língua). Não estranha logo, no meio deste nascente ecossistema, que Facal relativize a cacarejada crise da cultura galega. “Afinal vai resultar que o que esmorece é a cultura baixo pálio” (p. 189).
Reintegracionismo, Sul e lusofobia
Esta cultura galega que não recebe subsídios do PP mas também não do bipartido – veja-se o caso do Novas da Galiza – dá, porem, mostras de saúde. Por exemplo a fraternidade com a que, ao parecer, se desenvolveu o último debate normativo na AGAL. Embora com uma compreensível amargura, Lopes Facal dá a sua opinião, expõe as suas boas razões e normaliza as divergências, cousa radical numa cultura política que adorando o consenso tem pouco menos que criminalizado o dissenso.
Para além dum “ã” a mais ou a menos, Facal sustém que “o português global é o nosso inevitável aliado paea romper o mesquinho papel de embaraçoso requisito curricular prescindível outorgado para promovê-lo à categoria de veículo de capacitaçom e progresso” (p. 110). O autor vê-o claro: “a língua já demanda por sinais manifestos um pouco de sol e sul” (p.12). Não se pode passar por alto tão-pouco a reivindicação do detetive Pepe Carvalho como ícone do reintegracionismo.
Por último, não deixo sem comentar a deliciosa anedota relatada por Facal, de quando os seus filhos estudavam nas Escolas Labaca da Corunha e algumas mães lhe perguntavam “se eram filhos de portugueses. Uns rapazinhos asseadinhos, que falavam entre eles era digno de atençom, o sotaque era admirável, mesmo habitual, mas, o galego, por que falavam em galego?” (p.23). A estória vai à raíz profunda de lusofobia, analisado por Josep J. Conill [3] como um caso de “coalizões triádicas”onde “a variedade regional de língua é instrumentalizada em contra do português padrão”, num peculiar “mecanismo de transferência que faz recair sobre ele a hostilidade reprimida” cara o galego erigido em língua nacional, tornando-se o “principal catalisador da tensão que o tema da normalização linguística suscita numa parte da população”. Tudo sucede como se quando o galego sobrepassa o corsé regional se tornasse português, o seu uniforme de combate. O anedotário é nutrido, mas vaia aqui um exemplo pouco conhecido de Augusto Assia, “o senhor de Xanceda”:
Era el año 1955. Yo regresaba de los Estados Unidos hablando gallego como hablé siempre, pero produciendo un gran estupor a mi alrededor, pues nuestro idioma había caído al menos en las ciudades en un desuso desolador. Por entonces se había establecido el primer surtidor de gasolina en la carretera de Madrid, a la salida de La Coruña, y yo solía aprovisionarme allí, atendido por un despierto y simpático chico de unos quince o dieciséis años, de pelo rojo y pecoso, que, un día, cuando éramos ya casi amigos, me interrogó:
– “Usté e portugués?” (¿Es usted portugués?)
– “Que che fai pensar que eu poida ser portugués, hom? (¿Qué es lo que te hace pensar que yo pueda ser portugués?)
– “Como sempre fala galego… ” [4]
Cárcere de Villabona, 22 de janeiro de 2017
NOTAS:
[1] Marshall Sahlins, Tribesmen, New Jersey, Prentice Hall, Inc., Englewood Cliffs, 1968.
[2] Antom Santos, “Reflexons sobre a Construçom Nacional Galega. História e perspectivas” em AGÁLIA, 75/76 (2003): 55-84.
[3] Josep J. Conill, “Três textos e um só discurso, ou o peixe que morde a própria língua (I)”, Boletim da AGLP, 2 (2009): 81-103.
[4] Augusto Assia: “El respeto a las lenguas nativas”, La Vanguardia, 6/1/1976, p. 6.