La Sacrosanta

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Conta Asimov que na França de Luís XVI apenas um 14 % da população teria o francês como primeira língua ou língua de uso quotidiano, sendo imensa maioria da população do reino incapaz de falá-la. Existia então a nação francesa? Bom, é uma questão de como queiramos definir os termos, mas, caso chegarmos à conclusão de que existia, a definição não seria a mesma antes e depois de 1793, ano no que o último rei da dinastia Bourbon foi decapitado.

Antes da Revolução Francesa o conceito romântico de nação como organismo essencialista com continuidade história não alcançara ainda uma dimensão política legal e ficava restrito ao domínio das artes. O reino, por definição, estava constituído pelos súbditos do monarca, na sua infinita e irrelevante diversidade. Mas, ao decapitar o símbolo da unidade, os revolucionários encontram-se com um problema, o de como preservar a unidade do reino, agora república. É nesse momento histórico que o conceito de nação, com as conotações essencialistas que hoje tem como comunidade homogénea de indivíduos com um destino comum e raízes na pré-história, faz o assalto às esferas política, legislativa e educativa. A seguir, o processo de construção da nação, enquanto processo de uniformização e homogeneização, foi, como sabemos, brutal.

A Revolução Francesa faz parte dos processos de substituição da aristocracia pela burguesia como classe social dominante. Não foi o primeiro, mas como os primeiros disfarçaram-se de guerras de religiões, são mais difíceis de caracterizar. Porém, a Reforma fracassou na França, o que obrigou à burguesia francesa a desenvolver uma ideologia política propriamente dita e, portanto, mais explícita. De maneira paralela e interdependente com este processo político que desemboca no derrubamento do antigo regime, decorre o processo de industrialização, o qual envolve a migração maciça dos camponeses para as cidades, onde devem procurar um emprego e, portanto, submeterem-se completamente aos valores da nova classe dominante. Isto, junto com a escolarização pública obrigatória, acelera o processo nacionalizador (uniformizador).

As correntes liberais francesas chegam aos reinos da Espanha a começos do século XIX com a invasão napoleónica e, paradoxalmente, a Constituição de 1812. Os Bourbons espanhóis, vendo as barbas dos seus parentes cortar, apontam-se às reformas liberais e também, de maneira tímida, pois isto requereria de investimentos substanciais, às correntes nacionalizadoras (homogeneizadoras). Assim, o decreto real de Javier de Burgos de 1833, sendo rainha Isabel II e regente a sua mãe (e prima) Maria Cristina, dissolve oficialmente os reinos que foram anexados à Coroa de Castela e divide-os em províncias. Cria-se assim o Reino de Espanha e começa a invenção da nação espanhola.

“A noção moderna de nação enquanto estado-nação é um conceito muito recente e totalmente artificioso”

Por que esta longa digressão? Para virarmos conscientes de que a noção moderna de nação enquanto estado-nação é um conceito muito recente e totalmente artificioso. Não nos estamos a referir a tal ou qual nação em particular, mas à nação como tal. A burguesia, na sua pugna pela hegemonia e o controlo, vai empregar o patriotismo obrigatório como sucedâneo da fidelidade ao monarca.

E assim chegamos até hoje, momento histórico no que a maioria do pessoal acha que as nações existiram sempre, que são algo natural e consubstancial ao ser humano. E, porém, mália a sua juventude, o conceito de nação já está em crise porque, para o capitalismo global, o patriotismo passou de ser uma virtude ou mal necessário a virar mormente um obstáculo.

Por isso, não deixa de ser irónico que sejam precisamente as estruturas supra-nacionais criadas para ir diluindo os estados-nação, as que possibilitem a existência de micro-estados que anteriormente seriam inviáveis pela tendência dos antigos reinos, e dos estados-nação que nasceram das suas ruínas, a acharem-se em perpétuo estado de guerra. E não apenas viraram viáveis, como também mais prósperos e democráticos (pensemos em Luxemburgo, Dinamarca, Holanda, Noruega, Suíça, Islândia, Irlanda, Bélgica, Estónia, Eslovénia, etc.).

Como consequência de todas estas dinâmicas, estamos a assistir a conflitos e tensões absolutamente fascinantes. Por uma parte temos os globalistas puros que desejam a desaparição das nações; por outra, os globalistas nacionalistas que não desejam que desapareçam as suas respetivas nações; a seguir, temos nacionalistas com estado que têm medo da, e opõem-se à, globalização; depois, temos ainda nacionalistas sem estado cientes de que os micro-estados que anseiam criar apenas podem existir no contexto da globalização e integrados em estruturas supra-nacionais; e, finalmente, há nacionalistas sem estado anti-globalização. Por se não for suficiente, temos também políticos oportunistas que adaptam o discurso segundo convier e que são, ou pretendem ser, por exemplo, globalistas em Bruxelas e nacionalistas (espanhóis) durante as campanhas eleitorais.

SIN IRA, SIN LIBERTAD

Como os mais perspicazes terão adivinhado, tudo isto vem a conto da questão catalã. Nós, não temam, não nos vamos pronunciar agora sobre a conveniência ou não de criar novos estados-nação a estas alturas do século XXI. Como perdemos a fé há muitos anos, para nós tudo se reduz a uma questão puramente utilitarista. Sendo os nossos valores fundamentais a democracia, a liberdade e a prosperidade, a análise de qualquer possível estratégia política vai depender de como a dita estratégia viria previsivelmente afetar esses parâmetros em diversas escalas temporais. Quer isto dizer que a conveniência ou não de criar um novo estado dependerá, não de questões dogmáticas, identitária ou sentimentais, se não das conclusões duma profunda análise que cumpriria avaliar no caso por caso e que poderia previsivelmente evoluir consoante mudassem as circunstâncias.

O mais interessante do debate catalão é, para nós, neste momento, a análise dos discursos e contra-discursos empregues para justificar as distintas posturas encontradas e, nomeadamente, a dissecação do relato do nacionalismo espanhol. Mas, vaiamos por partes.

“Como bem explica o Quico Cadaval num dos seus monólogos, ter orgulho dum feito acidental como é o de nascer num determinado lugar é completamente absurdo”

O primeiro elemento a analisar poderia ser o conceito de patriotismo, noção que caiu em desuso nos anos da Transição Espanhola, mas que agora volta ser esgrimido sem complexos por todos os partidos do espectro nacionalista espanhol, desde a extrema direita até as novas esquerdas. Como explicamos acima, o patriotismo veio substituir a fidelidade pessoal ao monarca durante as revoluções burguesas, independentemente do signo delas. Esta noção combina o orgulho de pertencermos a uma determinada nação com a disposição a fazer sacrifícios por esta. Como bem explica o Quico Cadaval num dos seus monólogos, ter orgulho dum feito acidental como é o de nascer num determinado lugar é completamente absurdo. Podemos compreender o orgulho de alcançar determinadas metas através do esforço coletivo, como por exemplo, virarmos líderes em inovação ou em respeito do meio ambiente e dos direitos humanos. Mas o orgulho de ter nascido num lugar é simplesmente chauvinismo, por definição. A priori, fazermos sacrifícios pelo bem comum é uma atividade louvável e até indispensável para podermos viver harmoniosamente em sociedade e construir civilizações prósperas e livres. Porém, quando um estado exige sacrifícios contínuos e excessivos do cidadão sem que haja uma reciprocidade, isto é, ignorando sistematicamente os interesses e necessidades desse cidadão, esse patriotismo converte-se em submissão a um regime totalitário. Vem isto dizer que se um estado quer ser respeitado pelos seus cidadãos deve, por sua vez, pôr-se realmente ao serviço desses cidadãos. Do contrário, viraria legitimo questionar a sua existência.

Outro elemento relativamente arbitrário é o referente às identidades coletivas, particularmente da maneira na que são elas entendidas na Espanha, numa dimensão eminentemente sentimental. De acordo com estas identidades sentimentais, o Centro de Investigaciones Sociológicas (CIS) espanhol divide a população entre os que se sentem só espanhóis, mais espanhóis do que catalães, tão espanhóis quanto catalães, mais catalães do que espanhóis ou só catalães. Esta classificação baseada no sentimentalismo deixa fora os racionalistas (com erre). E os que temos dias (é piada, e não é). Da mesma maneira, entendendo as identidades e os sentimentos como algo intrínseco, também divide as pessoas entre independentistas e não-independentistas. Es usted independentista? Eu, ser, não sou nada, eu, analisando as circunstâncias de forma fria e objetiva, posso chegar à conclusão de que a independência é conveniente neste momento ou não. Se calhar poderiam aproveitar a versatilidade da língua castelhana e perguntar, está usted independentista? Na verdade, hoje, o que estou é com sono.

Neste sentido, o relato hegemónico dos políticos e os media de Madrid (e províncias) viria sendo que os independentistas estão a rachar a convivência ao enfrentar a metade dos catalães contra a outra metade. Para deslegitimar a opção independentista, esgrimem que não se pode declarar unilateralmente a independência com o apoio de apenas a metade da população. Assim visto, semelharia um argumento justo. Mas tem dois pequenos problemas. O primeiro é que para saber realmente quantos catalães desejam a independência, haveria que convocar uma consulta, coisa que a Constituição proíbe e, portanto, nunca poderemos saber exatamente qual é a percentagem de pessoas que votariam a favor da eventual constituição duma República Catalã. Catch-22. Temos por tanto uma Constituição-prisão que não se adequa à realidade catalã de hoje em dia. Porém, dizem-nos, a Constituição é sagrada e imutável e, portanto, a culpa de rachar a convivência só pode ser dos independentistas por ousar pôr a questão acima da mesa. Questão que seria intrinsecamente ilegítima porque não cabe dentro da Constituição e, por tanto, é uma quimera. Catch-22. O segundo, e mais importante, dos problemas é que, os mesmos inquéritos que assinalam que apenas a metade dos catalães desejam a independência, também assinalam que bem mais do 80 % apoia o direito a decidir, isto é, quer ser consultado à margem do que iria votar no referendo. Por outras palavras, a imensa maioria dos catalães desejam que Catalunha, o povo catalão, seja sujeito de direito político. Então, sem rigor nenhum e a modo meramente ilustrativo, se temos um 50 % de nacionalistas/independentistas e um 85 % de pessoas que querem votar, teríamos, quando menos, um 35 % de não-nacionalistas/não-independentistas que simplesmente estão a demandar mais democracia. Mais uma vez, a visão sentimental, a Constituição-Catch22 e a propaganda interessada excluem propositadamente o racionalismo (com erre) da equação. Do que se trata é de procurar qualquer pretexto para evitar as pessoas votarem, independentemente do resultado, pois uma consulta criaria um perigoso precedente, à margem do resultado.

“Enquanto texto legal, a Constituição Espanhola foi, em grande medida, o resultado da coação e da extorsão e não dum contexto de democracia e liberdades plenas”

A seguir, dá-se uma circunstância engraçada, tendo demonizado durante anos o nacionalismo periférico, os nacionalistas espanhóis costumavam a auto-definirem-se coletivamente como não-nacionalistas por oposição aos nacionalistas periféricos. Como uma identidade definida por exclusão é menos aglutinante do que uma identidade definida em positivo, recentemente vêm de mudar o auto-apelativo pelo de constitucionalistas. Isto é, aqueles que defendem a imutabilidade da Constituição Espanhola, a qual teria sido o produto dum alargado consenso e garante da convivência. Antes de mais, quando alguém se agacha de maneira dogmática atrás da infalibilidade e imutabilidade dum texto criado pela mão do homem, seja este o que for, podemos suspeitar com quase total certidão da sua intencionalidade censuradora. Nomeadamente se se tratar dum texto legal, pois, num estado de direito, o marco legal deve estar ao serviço das pessoas e não ao invés e, portanto, não pode nunca ser sagrado nem imutável. Para mais, achamos que não faz falta recordar que a Constituição de 1978 foi consensualizada com elementos dum regime fascista que ainda gozava dum grande poder (como poria de manifesto no simulacro de golpe de estado de 1981, através do qual enviou um lembrete de que os limites tinham imposto eram de facto infranqueáveis). Quer isto dizer que, enquanto texto legal, a Constituição Espanhola foi, em grande medida, o resultado da coação e da extorsão e não dum contexto de democracia e liberdades plenas. Para mais, este marco legal foi referendado precisamente sob a promessa implícita de que era apenas um primeiro passo cara uma democracia mais genuína (y si no la hay sin duda la habrá). Em resumo, como vemos, consenso, pois daquela maneira, e, garante da convivência, também estamos a ver que não está a ser o caso em Catalunha. Mais uma vez, o dogma interessado prevalece sobre os valores democráticos.

De facto, em troques de avançar na democratização do Reino da Espanha, o que estamos a observar é que, em questão políticas nas que existe um consenso do constitucionalismo, a separação dos poderes executivo, legislativo, judicial e mediático, a verdadeira medida da qualidade democrática, brilha pela sua ausência, atuando os quatro a uníssono, como um rolete esmagador de qualquer discrepância. A abusar do poder, ao substituir o estado de direito pelo estado da picaresca, a impor castigos exemplares e a tecer um relato demagógico do que ninguém se pode desviar nem um milímetro. Já não é questão de sensibilidades, de identidades nem de ideologias, é muito difícil para qualquer um que queira viver em liberdade e democracia sentir-se a gosto num tal regime.