A ideologia contra o sentidinho

Partilhar

PRELÚDIOfronteiragalizaportugal

Antes de marchar de férias em Junho prometi escrever um artigo. O tema era analisar a conveniência de uma massa crítica de galegos declararmos-nos minoria portuguesa na Espanha.

A verdade é que não consigo. Não consigo. Não sei nem por onde começar. Se calhar é porque o percurso que me levou a essa conceber essa estratégia como possibilidade viável foi demasiado longo e tortuoso para ser explicado em poucas palavras. Se calhar é porque o meu pensamento ainda não teve tempo de se decantar, de se estruturar. Ultimamente parece não decantar-se nunca. É um alvo em movimento. Tenho virado, como diz a cantiguinha, uma metamorfose ambulante. Se calhar, por último, é simplesmente porque é uma parvada, uma má ideia…

Desde que voltei à Galiza desde Rússia há quase um ano estou com vontade de ir embora. De voltar ao exílio, lá onde a doma e castração não me alcance. Sinto-me como Frodo quando volta de destruir o anel no vulcão de Mordor e diz para Sam, a modo de justificativo da sua vontade de navegar para as costas do além com os elfos: Salvamos o Shire, mas não para mim, não para mim. Eu já não sou daqui. Nem de sítio nenhum. Não pertenço. Sou nómada. Eis a minha “identidade”, o que quer que isso venha sendo. Isto nem é uma escolha, é um diagnóstico.

O meu galeguismo sentimental abrolhou na minha primeira infância, influído pelo crego da minha paróquia, teólogo da libertação e ativista do PSG de Beiras. Organizava meetings do partido no local paroquial e rematou por fazer-se expulsar, que diriam os franceses, e casar em Madrid. Mas agora há outro que tal baila. A minha paróquia natal, no Ferrol operário, semelha ser uma sorte de purgatório para cregos dissidentes.

Depois, já o meu galeguismo político deve-lhe muito a A Nosa Terra, que na altura era a folha paroquial do Bloco. Como seria hoje o Nós Diario, mas com uma diferença fulcral, para além do design, o Nós Diario representa fundamentalmente os valores da esquerda pós-moderna, versão espanhola, porquanto A Nosa Terra brigava ainda, desde aquele pretenso materialismo dialético, contra esse pós-modernismo hoje hegemónico.

Bom, o tema é que, em definitiva, hoje superei isso tudo como superei o sarampelo. Superei o sentimentalismo e o identitarismo. Hoje acho que a ideologia é a filha bastarda da religião e que o galeguismo que renasceu durante o franquismo está enganado em quase tudo. Dessa esquerda pós-moderna supersticiosa e totalitária já nem falar, que venho de comer o pequeno-almoço e não quero que me faça mal.

Há uns meses criei um site, sentidinho.eu, para ver de nuclear um novo galeguismo mais parecido com o povo galego. Coronavirus made me do it, mas acho que dei no cravo. Por que é que acho isso? Pois porque nenhum galeguista se interessou pelo tema. Acham descafeinado. Sem sentido. Porém, entre a gente do comum “não politizada” sim que teve uma boa acolhida. Deduzo logo que, se as fábulas de Iriarte destilam qualquer sabedoria, bem poderia ser esse o bom caminho.

Há uns meses criei um site, sentidinho.eu, para ver de nuclear um novo galeguismo mais parecido com o povo galego. Coronavirus made me do it, mas acho que dei no cravo. Por que é que acho isso? Pois porque nenhum galeguista se interessou pelo tema. Acham descafeinado. Sem sentido. Porém, entre a gente do comum “não politizada” sim que teve uma boa acolhida. Deduzo logo que, se as fábulas de Iriarte destilam qualquer sabedoria, bem poderia ser esse o bom caminho.

O povo galego, como toda comunidade rural não adulterada (leiam L’Arrache-cœur), é eminentemente materialista, pragmático, empirista e positivista. A vaquinha pelo que vale. Por isso o fanatismo religioso das esquerdas galega e espanhola não conecta connosco. A mim enganaram-me um tempo, mas…

A forma mais elevada desse materialismo, pragmatismo, empirismo e positivismo, chama-se, por muito que lhes doa a alguns, ciência. Não por acaso foi Portugal, nomeadamente a Academia das Ciências de Lisboa, o precursor disso na Europa, embora seriam os países protestantes quem a desenvolveriam até as suas mais refinadas expressões. No entanto, Portugal era neutralizado pelo Vaticano e a sua carne para canhão reacionária, o Império Castelhano com as suas dinastias sempre forasteiras.

Mas Portugal está, de maneira muito decidida, a retornar ao seu natural e se calhar era tempo para nós, os galegos, voltarmos também a esse ronsel Atlântico do que fomos brutalmente amputados de maneira muito precoce. Ou talvez já estamos traumatizados demais e é já tarde…

REINTEGRATAS

Não sei se este preludio esclareceu alguma cousa ou ainda acrescentou mas confusão a respeito de quais foram as minhas teimas ao longo dos últimos anos a respeito das estratégias reintegracionistas.

Transversalidade. O reintegracionismo deve apresentar-se como um movimento transversal desligado do nacionalismo político e de qualquer outra ideologia (qualquer) pois é portador duma value proposition que é muito positiva e conveniente para o conjunto do povo galego. Não devemos cair na tentação de fazer “pacotes” do tipo “ou tudo ou nada”.

Pragmatismo. A estratégia do reintegracionismo até tempos recentes estava muito ligada ao identitarismo galeguista e consistia em convencer o povo galego de que fala português e, portanto, deve escrever doutra maneira. Esta aproximação missionária resultou ser um lastro ineficiente. Na verdade, qualquer caminho que conduza ao contacto dos galegos com a língua portuguesa é bom. Já for o binormativismo e/ou a introdução do português como língua “estrangeira”. Cumpre priorizar a que for mais viável em cada momento, ou todas a um tempo. Fazendo pedagogia desde a racionalidade pura (incluídos fatores economicistas, embora a alguns lhes produzam urticária) e sem essencialismos.

Diplomacia. Os galegos somos feirantes. Quem regateia desde uma posição de inferioridade tem de ceder alguma cousa para ganhar alguma cousa. Tudo avanço substancial no bom sentido bem-vindo seja. As cousas estão a mudar e tem muito pessoal que está a querer mudar. Se os ofendemos, se os tratamos de inimigos ou de traidores e os pomos contra as cordas, não estaremos a deixar que a mudança de produza. A nossa olhada deve estar sempre no futuro, no horizonte, no que podemos ganhar e em como podemos acelerar e maximizar esse ganho. Devemos, não esquecer, mas sim deixar de estar sempre a reparar, quem disse tal ou quem fez qual. É mais efetivo focar o discurso nos passos positivos, isso é o que vai catalisar a transição. Difundir a ideia implícita de que a tal transição é um facto irreversível e que muitos estão já a aderir, para que ninguém queria ficar fora. Ponte de prata.

A SOLUÇÃO FINAL

Desculpem a frivolidade retranqueira. Mas tencionava sublinhar o facto de que esta proposta não é para agora. É para quando achemos que tudo está perdido. Se calhar a próxima geração.

Está baseada no pragmatismo extremo, não há ideologia de qualquer tipo nem tenciona construir uma identidade nem um estado. Trata-se simplesmente de instar aos organismos internacionais a que obriguem o Reino da Espanha a respeitar os direitos humanos. Neste caso os nossos.

A solução está baseada no pragmatismo extremo, não há ideologia de qualquer tipo nem tenciona construir uma identidade nem um estado. Trata-se simplesmente de instar aos organismos internacionais a que obriguem o Reino da Espanha a respeitar os direitos humanos. Neste caso os nossos.

Para mais, é uma proposta extremamente arriscada e audaciosa que racha com toda a tradição galeguista e reintegracionista. Numa primeira leitura, vai até parecer delírio. Se alguns optarmos por esse percurso numa determinada altura, seremos nós a ser considerados inimigos e traidores. Por todos. Não tenhamos dúvida. O escárnio e repressão poderiam ser brutais.

Não faz falta dizer que, vier acontecer o que vier acontecer, também deve ser sempre escrupulosamente pacífica. Gandhiana.

Cumpre acrescentar aliás que, se alguma vez a proposta chega a ser apresentada internacionalmente, teria que ser absolutamente coerente, sem nuances e sem fissuras. Tem de ser e parecer genuína e legítima e não uma simples tática maquiavélica para avançarmos um projeto “nacional” para a Galiza.

De facto, a Galiza e “os galegos” ficam fora da equação completamente. Já não se trata de convencê-los e de levá-los ao rego. Não é uma projeto para todos. Não é um projeto para a Galiza. É um projeto de sobrevivência duma minoria num entorno hostil.

Na verdade, nem sequer estaria geograficamente restringido às quatro províncias galegas. Qualquer um poderia aderir. A adscrição ao censo seria puramente voluntária, por auto-identificação.

Como avancei acima, a ideia seria juntar uma massa crítica, uns poucos milhares, e declararmo-nos minoria (étnica) portuguesa no Reino da Espanha.

O termo “étnica”, sou consciente, é incómodo e absurdo mas provavelmente (provavelmente) tenha de ser assim para sermos perfeitamente coerentes e podermos invocar os precedentes legais internacionais.

Os factos são claros e, fora do contexto político espanhol, indisputáveis: Somos cidadãos do Reino da Espanha, nascidos nesse reino, falamos português (muitos desde o berço), todos ou quase todos os nossos ancestrais também nasceram nesse reino e também falaram português desde o berço. Podemos remontar-nos a tempos históricos muito anteriores à criação desse reino, sejam quais for os critérios historicistas empregues para estabelecer a data da constituição do Reino da Espanha como estado.

Assim sendo, onde estão os nossos direitos como minoria portuguesa na Espanha?

Já não seria um problema regional espanhol, como é agora, ultrapassaria essa condição de “conflito interno” para virar uma questão de dimensão internacional.

Fazendo bem as cousas, e cumpre sermos muito cautelosos e atuar com inteligência, ainda sendo muitos poucos podemos conseguir infantários, escolas, liceus, uma universidade, meios de comunicação…

Sem convencer ninguém, sem ir contra ninguém e sem desafiarmos o status quo político e institucional. Sem esperar a que baixe do céu o Espírito Santo da “consciência nacional”. Amanhã mesmo.

O que achais?