Everybody expects the Spanish Inquisition

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And now I know how Joan of Arc felt
Now I know how Joan of Arc felt

Bigmouth Strikes Again, The Smiths, 1986

Num dos mais conhecidos e hilariantes esquetes dos Monty Python, um Graham Chapman no role de ajudante do muinheiro queixa-se perante a inquisitiva atitude da senhora da casa de que “não aguardava a Inquisição Espanhola”. A infortunada expressão invoca a súbita aparição de três inquisidores, os quais procedem a operar o mais trangalheiro Auto de Fé na boa da mulher beneficiando-se precisamente desse fator surpresa, pois, por palavras do Inquisidor Geral, “ninguém aguarda a Inquisição Espanhola!”.

Claro que aquela farsa foi originalmente concebida em 1970 e já muito tem chovido desde aquela. Paradoxalmente, neste começo do século XXI as pessoas vieram se acostumar a esperar a Inquisição Espanhola. É o normal. Pum, abres a boca e materializa-se. Não faz falta nem invocá-la. Pouco importa quão mesurada, bem intencionada ou bem documentada seja uma opinião, sempre haverá quem a encontre ofensiva e sempre haverá quem reclame a ostracização do opinante e a sua privação de direitos. Demissão, despido, prisão, censura, amordaçamento, guilhotina, lapidação… Todas são dignas de admiração. Pero dejadme, ah, que yo prefiera, la hoguera, la hoguera, la hoguera.

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Com efeito, um número de estudos desde distintos âmbitos confirmam que vivemos num período de crescente polarização social e, segundo alguns especialistas, o advento da Internet e das redes sociais poderia ter sido e estar a ser um fator determinante da génese e propagação desde fenómeno. Embora o invento nos permita potencialmente comunicar-nos em tempo real com milhares de milhões doutros seres humanos em tudo o mundo, embora possa pôr diante dos nossos olhos, ao instante, um oceano de informação nunca antes sonhado e embora existam ferramentas de análise livres e gratuitas de fácil utilização, as pessoas semelham ter uma forte preferência por confirmarem-se nos seus preconceitos antes do que por contrastarem e analisarem a informação.

Assim, o pessoal vai-se fechando em guetos de indivíduos que pensam como eles. Que confirmam e reforçam os seus preconceitos. O dogma vai-se afortalezando e medrando por acumulação de preconceitos convergentes. As pessoas, reconfortadas por esta liturgia auto-confirmatória quotidiana e por uma comunidade afim, vão virando cada dia mais radicais e intolerantes, é o que o grupo espera, até se constituírem finalmente numa autêntica quadrilha de linchamento. O grupo não apenas radicaliza os seus membros como também os imuniza, vacina-os, põe etiquetas no “inimigo”, o qual seria intrinsecamente abjeto, cria anticorpos para reconhecê-lo, faz uma exegese do seu discurso para que, toda vez digerido e regurgitado pelos gurus, saibamos o que realmente ele quer dizer, para além do que diz. Para que nos sintamos pessoalmente atacados e ofendidos.

“O pessoal vai-se fechando em guetos de indivíduos que pensam como eles, que confirmam e reforçam os seus preconceitos”

Como é óbvio, o sistema aprendeu a utilizar habilmente as quadrilhas de linchamento no seu próprio benefício, isto é, para recortar direitos democráticos, impor a censura e a auto-censura, argalhar caças de bruxas e restringir o alcance do discurso dos livre-pensadores. Pouco importa que as quadrilhas sejam de esquerdas, de direitas, religiosas, magufas, LGBT, ecologistas, animalistas, feministas, veganas, constitucionalistas, pró-vida ou o que for. Podem-se utilizar ao gosto quando convier. O caso é que alguém se ofenda, odeie, pataleje e berre. Se se ofenderem por motivos errados ou num momento inoportuno, igoramo-los ou estigmatizamo-los, se o fizerem no bom momento, utilizamo-los. Estamos na era da pós-verdade, do panfleto, de encirrar a metade dos pobres contra a outra metade. Os mesmos grupos financeiros possuem meios de comunicação “de esquerda” e “de direita” de maneira simultânea. A engenharia social funciona.

Temos de compreender que quando, consciente ou inconscientemente, reclamamos a restrição de direitos humanos básicos como a liberdade de pensamento e de expressão ou a presunção de inocência, quando solicitamos ser vigiados em tudo momento ou meter um policial nas nossas camas, quando tencionamos censurar por todos os meios as opiniões divergentes, estamos a abortar a democracia antes de ela ter nascido. Estamos a involuir cara os períodos mais escuros da história da humanidade. Tanto faz quanta razão achemos que temos e quão vil nos pareça o rival.

“Tanto faz quanta razão achemos que temos e quão vil nos pareça o rival. Reconheçamos que ninguém está em possessão da verdade absoluta (e se calhar nem da relativa)”

Reconheçamos que ninguém está em possessão da verdade absoluta (e se calhar nem da relativa). Tentemos compreender antes do que julgar e condenar. Numa sociedade tão altamente sofisticada e tecnológica a única via para avançarmos no caminho da liberdade, a democracia e o verdadeiro conhecimento é a honestidade intelectual. As liberdades de pensamento e expressão são um pré-requisito para a mesma. A seguridade psicológica (psychological safety), isto é, a confiança das pessoas em que não vão ser linchadas nem ostracizaçadas por expressarem uma opinião ou agirem livremente, é um pré-requisito para a mesma. A nossa boa disposição para sermos convencidos, para mudarmos de opinião e para encontrar pontos de encontro e soluções de consenso é também um pré-requisito. Reaprendamos a respeitar o outrem, a escutar e a aceitar a diferença como algo natural e positivo.

Eu pessoalmente estou convencido, e diversos estudos assim parecem confirmá-lo, de que as comunidades humanas estão evolutivamente programadas para produzir uma determinada diversidade neurológica (e, portanto, psicológica, com os seus corolários “ideológicos”), pois isso melhora significativamente a sua capacidade de adaptação. Tentemos pois integrá-la de maneira construtiva sem suprimir o outrem.

Para rematar, deixemos que seja um outro cómico britânico quem o explique melhor: