História dos peixes

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O Atlântico da minha infância era o espaço dos peixes. A minha cartografia chegava aonde os pescadores chegavam, mais além da Marola, ao Grand Sole, à Terra Nova. Havia ainda histórias como ficções, as dos nomes escritos na fachada da escola de Náutica da Crunha, Magalhães, Elcano, que na altura me pareciam de alguma história comum ao Jim da Ilha do tesouro ou ao capitão Nemo das 20000 léguas submarinas. A cidade real era uma estreita margem em que o oceano repetia as suas imagens dramáticas, como marca deixada pola maré: o cargueiro romeno naufragado nas penas da Ilha Redonda, junto ao monte de São Pedro, a baleia varada na Ponta Hermínia, as choupanas onde se guardavam os aparelhos e se resistia à ferrugem, o peso dos afogados que o mar não devolveu. E ainda havia a imagem da dorsal atlântica do mapa dos fundos marinhos em um livro da casa. De aquelas imaginações ficaram-me os peixes e as baleias que teimam em navegar no meu pensamento, a fantasia do oceano sem terra, e o cismar na dorsal atlântica, como na procura de alguma história intermédia entre a geologia e a humanidade.

Há meses que não vejo o mar. Para abafar as saudades costumo ouvir o “Ys” de Alan Stivell, música que me acompanha já há tantos anos nas minhas voltas por este extremo atlântico da Península Ibérica que vem sendo a minha geografia vital. Os sons pintam a imagem das ondas a submergir a florescente cidade de Ys no leito oceânico. A cidade, os dous milhões e meio de almas que tenho à volta, tudo desaparece no fundo atlântico. Tudo é ilusão à volta, só é verdade a força das ondas e o seu bruar, o mundo a respirar. Um horizonte de ilhas se espelha no vidro do meu escritório que lentamente navegam com o tempo dos seixos. Abro a janela à procura de algum resto do recendo do mar que venha ao encontro de tão intensas imagens interiores. Tantas saudades tenho do mar que dou em pensar que se respiro bem fundo sentirei alguma nota de sal marinho na luz azul de esta manhã. É só fechar os olhos e vejo as redes que a espuma faz, a xerfa, a contínua respiração do oceano. Mas Lisboa está mais longe do mar do que os mapas mostram.

Sobre qualquer cidade paira a profecia da catástrofe. Quando os nomes de lugar eram transparentes ninguém duvidava de que Paris era a Par-Ys, condenada a sofrer o mesmo destino da bretã Ys. Assim o brasão de Paris é a imagem do barco que é a própria cidade-ilha no meio do Sena, com a promessa da sua legenda: é sacudida pelas ondas, mas não afunda. “Fluctuat nec mergitur” é frase que os parisienses têm recuperado depois dos atentados como mensagem de resistência. Também Lisboa tem uma nau por brasão e a ameaça constante do cataclismo. São visíveis em toda a cidade as marcas do terramoto de 1755, o maremoto e os incêndios que se seguiram. Na altura foi origem de não poucos ensaios filosóficos sobre os limites da vontade humana e sobre as intervenções divinas na história, de Kant, de Voltaire, de Rousseau. Também foi útil para o programa político do marquês de Pombal, para eliminar adversários políticos na turbulência que se seguiu, para criar uma cidade nova, com a quadrícula da Baixa e a Praça do Comércio como cenário teatral do império, a praça em que dois séculos depois Salazar se mostrava às massas.

 

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Há dias atravessei o Ribatejo. Na contemplação da larga terra à beira do Tejo, ao que dão o belo nome de lezíria, foi-me acompanhando um verso de Avilês de Taramancos, uma das companhias mais fiéis que levo no meu cartafol poético: “que a terra me conforte, a terra fresca que os meus pais lavraram…”. O elemento terra perturbou-me durante anos. Não sei se foi o caminhar ou o ser estrangeira que me foi tirando este pavor. Preocupada como estou por que a palavra tenha uma âncora moral nos outros, dou em pensar que não consigo comunicar se não toco terra. E, ao mesmo tempo, nunca senti tão aguda saudade da minha margem oceânica. Liberdade é cousa que se sonha. Do que nunca me libertei é do imaginário que o mar me fez entrar pelos olhos na varanda da Couraça, entre as praias de Riazor e do Orção. Aceito a terra como o mar aceita a fatalidade do litoral. Mas o meu centro está nos fundos, em essas montanhas submersas que movem o mundo à superfície.

Galega oceânica, amante do incerto, buscadora incansável da ilha no horizonte, o meu coração não sossega na quietude, mas na profundidade. Pergunto-me constantemente se me foi dado algum território. Não sei se o Atlântico é casa, não sei. Creio que não me foi dado mais do que um ancoradouro para ter família e o começo de uma viagem, a ilha do farol com a teimosia anacrónica das sonhadoras e das guerreiras. Mas… “I must go to the seas again…” e entregar o pensamento à contemplação da estrela. Há mulheres e homens assim, que facilmente percorrem a sua genealogia de peixes, baleias, sereias e homens marinhos, treinadas na aceitação do naufrágio, na visão dos barcos a apodrecer lentamente na lama verde da beira-mar, nos mundos sob as ondas, como nos quadros de Lugris, no mar absoluto, como nos versos de Marinhas del Valle, como no verso da Eneida, céu por toda a parte e portos em nenhures.

A cidade, qualquer construção, o sonho de país de nome Galiza, é estreita margem de ilha em que cuidamos das naus durante o inverno, em casas medidas pela largura de um remo, em que acalmamos o desacougo do movimento no recendo do pão de lenha, na visão das avelaneiras em flor de janeiro, nos sons de esta língua que vivemos cantando. Mas é pelo mar que continuamos e transitamos. “Tra mor, tra britons”, frase que Murguia deixou algures escrita trasladada a nós, enquanto houver mar haverá galegas. Condenadas como somos à ignorância de nós mesmas, das continuidades das que fazemos parte, não nos vemos em este espaço oceânico da dorsal profunda que vertebra a humana história, a comunidade da que fazemos parte, ainda que para tão dramático cenário nos fosse dado este anfiteatro de montanhas que descem como em arquibancada até se perderem no oceano Ocidental, na bela alegoria com que começa a História dos peixes de Joseph de Cornide.

Porque resisto e amo as naus e as mulheres e homens que em elas vão, celebro hoje o dia da nossa alma de Fisterra amante dos mundos e a irmandade, celebro os montes e os seus cumes namorados da alva, as rias como teatro do paraíso que destruímos quando nos falta o amor e a poesia, celebro os mitos profundos que nos contam como rede que prende todas as rotas, celebro os nomes do aquém o do além, a natureza do vento, o espelho e a lâmpada de ver e alumiar os mares, celebro o deus a cavalo que navega as ondas, a deusa da vieira que emerge como ilha do mar que se desdobra de tanto desejar, celebro um estrangeiro que vem a nós, celebro os que demandais essa Ilha dos Amores sonhada que se chama Galiza, na frequência emocional do mistério da legenda do nosso brasão.

 

Máis de Maria Dovigo