Heterodoxos espanhóis

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Uma das leituras mais proveitosas da minha formação em Filologia Hispânica foi a Historia de los heterodoxos españoles de Marcelino Menéndez Pelayo, publicada pola primeira vez em 1880. Não aprecio o livro polas opiniões do cântabro, antes bem pola transparência dos argumentos nacionalistas que o fundamentam. Já tem sido apontada a influência de Menéndez Pelayo no pensamento e na ação políticos do estado espanhol no século XX, apesar do atual esquecimento. Quem não reconhece os ecos do argumento da legitimidade do recurso à força para eliminar a heterodoxia, o uso da categoria heterodoxia indistintamente para o religioso e o político, ou, dito de outra maneira, a transferência constante entre o religioso e o nacionalista ou a identificação entre catolicismo e espanholidade? Argumenta Menéndez Pelayo, louvando a “noble y salvadora intolerancia” espanhola, que “o espírito latino protegeu-nos contra o individualismo teutónico. Por isso não vincou o protestantismo”.

Nas centenas de páginas da Historia descobrem-se as biografias de múltiplas maneiras de ser na Península Ibérica, que ele condena como “extravagancia y errores particulares”, a notícia de gente de variados credos ou de muito ceticismo, notícia das religiões indígenas e da história das artes mágicas, gentes entre as que também inclui portugueses como Gil Vicente ou Damião de Góis, pois Menéndez Pelayo tem a curiosa tese de que “é lei da civilização peninsular que ao mesmo tempo e polos mesmos passos venham sempre em ambos os reinos as revoluções políticas e religiosas”.

Esta Historia e a tão diversa Erasmo y España de Marcel Bataillon muito me fizeram reconsiderar os conceitos que a escola me deu sobre a história cultural, espiritual e política Península Ibérica a partir da observação da trágica biografia de muitos de aqueles que ousaram ter ideias divergentes do poder. De caminhos perdidos da Ibéria, ou de genealogias espirituais decepadas, fala o livro de Bataillon, ao que o próprio autor se refere como “realidade espiritual sepultada, e duplamente apagada da superfície da história”. Bataillon publicou a primeira edição da sua investigação em 1937. No seu prólogo fala de “esta hora trágica” que vive a Espanha e agradece muito especialmente a colaboração que o corpo de arquivistas e bibliotecários deu para a sua investigação: “permita-se-nos unir todos fraternalmente na nossa gratidão, chefes e subordinados, mortos e vivos, sem atender a hierarquias”. O seu agradecimento também vai para Jaime Cortesão e António Sérgio, que com ele colaboraram na Torre do Tombo e na Biblioteca Nacional de Lisboa, cidade em que residiu quatro anos. Contra os relatos únicos, com erudição e paciência de arquivista, fornece um vasto repertório de dados que mudam o relato ortodoxo da hispanidade, com biografias de gente curiosa, erudita e viajada que viveu nos inícios do século XVI nos vários reinos peninsulares. O discurso de Bataillon dá-nos o reverso da interpretação de Menéndez-Pelayo, ainda tendo personagens em comum: não há uma maneira de ser fatídica, um desígnio nacional, há uma sistemática máquina repressiva e uma tradição de ocultação e desmemória no exemplo destes erasmistas relatado em novecentas intensas páginas. A história dos heterodoxos está colada à história da violência e o exílio.

Que exista uma “lei de civilização peninsular” é cousa das crenças metafísicas de D. Marcelino. Eu fico com a necessidade de analisar o que se passa politicamente nos dous estados ibéricos movendo-me entre eles. Nestes dous últimos anos a questão do “procès” catalão tem originado diversos debates nos meios de comunicação e conversas do dia-a-dia como nunca tinha ouvido em Portugal. Interessante não é só analisar o que se diz sobre a Catalunha ou sobre o estado espanhol, mas interpretar o que cada um diz sobre a sua visão de Portugal e, sobretudo, os seus “marcos”. Os detratores do “procès” criticam, entre outras questões, o facto de no discurso político soberanista se utilizar o termo “colónia”, por ser um termo historicamente inapropriado, dizem, para a relação entre a comunidade autónoma da Catalunha, a “região autónoma” como por cá se costuma usar, e o estado espanhol. Outros reduzem a questão a um confronto entre emocionalidade e racionalidade, cabendo-lhe ao estado o monopólio da racionalidade. Outros falam da questão do soberanismo ser uma reação de elites insolidárias com o resto das “regiões espanholas”. A questão da defesa da Constituição de 78 passa um pouco ao lado. Também há claros defensores do direito a decidir. E ainda há os que mudaram de atitude e mesmo de opinião quando viram as imagens de violência usada no dia do referendo de 1 de outubro.

Outra questão é o nacionalismo português, que ora justifica a ação do estado espanhol, ora se solidariza com a Catalunha, invocando até que foi no contexto da insurreição de 1640 que Portugal recuperou a sua independência. Do meu ângulo galego vejo que o nacionalismo português, a maneira ortodoxa de relatar a portugalidade, a ideia de um desígnio nacional português, mesmo o messianismo e uma certa corrente esotérica, não têm sido bastante contestados. Uma esquerda sem discurso identitário ou comunitário, um PCP patriótico, uma leitura da continuidade conceptual entre nação, estado, cultura e língua sem grandes brechas e a realidade dum estado profundamente assimétrico. Já não é pouco que continue a empresa que partiu dos “galegos rebeldes”, na denominação de Emílio González López. Afortunadamente, vão-se encontrando jovens com força, motivação e formação para a empresa de criar outro relato sobre o que é ser português. Sinto é que ainda é uma discussão académica e de elites que, por enquanto, mal chega à sociedade (ou a sociedade vai-se conformando com o relato tradicional). Os manuais escolares são prova desta inércia.

O que se passa é que os fenómenos sociais, políticos, culturais… não acontecem isoladamente, mas em interferência. E assim, este relato nacionalista está intrincado com um imaginário profundamente patriarcal, que atribui um estado “infans” ao povo que o atual presidente da república sabe muito bem usar. Não sei se esse fundo imaginário pode ser uma espécie de explicação ao facto de em Portugal já ter acontecido um regicídio e o assassínio do que Pessoa chamou presidente-rei, Sidónio Pais, por esse acentuado personalismo do estado encarnado na figura do rei, pai, patriarca, fundador sem intermédio de fêmea humana. Alguma cousa se vai fazendo para abrir o monolitismo do relato nacionalista, incorporando os olhares dos negros, dos gays e lésbicas, das mulheres… Falta-me, sempre me falta, a leitura poliédrica da comunidade que está latente neste território tão heterogéneo abrangido pelo estado português. A minha preocupação é que as organizações políticas deixem espaço para a variedade humana, cousa que não acontece. E que os movimentos emancipatórios, tão desequilibradamente metropolitanos em Portugal, entendam a variedade cultural, territorial, e ainda a ponham em diálogo com a histórica defesa dos direitos, da realização de todas essas possibilidades atrofiadas dos heterodoxos. Já os movimentos de mulheres abriram caminho no questionamento da universalidade. Não é fácil pensar em direitos universais e comunidades culturais simultaneamente, mas é necessário, porque a convivência tem de ser estimada e os direitos não são a propriedade individual que a lógica capitalista instaura e que vai minando tanta história de vida em comum. Contudo, há ainda um marco invisível do pensamento em Portugal que se me fez visível nos anos mais agudos da crise e sem a qual já não entendo como se pensa, quando se pode pensar, nos territórios do estado português: a violência económica que limita a liberdade, a ativação contínua do imaginário da precariedade, da carência, a memória da fome que não permite se não subsistir. Quando a terra é tão abundante…

E na Galiza, na terra do heterodoxo Prisciliano? O anátema lançado contra o reintegracionismo nos anos oitenta, com esse ensaio em que se nos chamou de “herexes”, foi um corte com a tradição da galeguidade que inventou o ditado “Deus é bom, mas o demo não é mau”, ideia que me parece revolucionária, ainda sem ser perfeita. Se nos levássemos a sério, e esse levar-nos a sério não exclui o rir-nos de nós próprios, se nos respeitássemos como não fazemos, havíamos de cumprir aquele verso de Diaz Castro de levarmos a “imortal ferida de alterar a história dos vivos e dos mortos” aplicando tal ditado. Entre outras cousas, deixaríamos de precisar de relato panegírico para nos legitimarmos e poderíamos contar com todos os nossos heterodoxos, com todos os nossos extravagantes e errantes, e não com a reduzida nómina de ortodoxos galegos do relato oficial sobre a cultura galega.

Atravessa-se no pensamento o demo dos cantares populares, o demo que tem netas que se escondem em furadinhos o nos dão um mal caminho indo para a feira de Anlhões, o demo que tem mãe polas terras de Chantada, o demo que tenta ao marinheiro que está em perigo de naufrágio para ver se é desta que consegue atravessar o mar em corpo de cristão, o demo que gosta de fazer contas e que conta as favas dos pratos… E penso na muita energia que vamos perdendo por essa inquisição que da nossa vida coletiva não arreda pé, porque a temos instalada no pensamento, sempre julgando o que pode e o que não pode, condenando a contradição e marcando para alguns uma fronteira intransponível na vida social entre o ser e o estar. Penso e vejo que, sobretudo, a defesa da ortodoxia condenou a convivência e o respeito pelos outros. Penso no muito que poderíamos aprender os galegos da nossa tradição literária, tão miscelânica, na invenção e nas formas genéricas, misturando lírica, humor e erudição, escrita como se fosse dita, em círculos e comunidade.

Desses choques semânticos que me deu a escola lembro o que aprendi nas aulas de catecismo às sextas-feiras à tarde, restos da formação nacional-católica que ainda me atingiram apesar de ter sido escolarizada em 1977, aquilo de que os inimigos do homem eram o demo, o mundo e a carne. O do demo parecia óbvio. A carne intuía porquê, até porque cedo percebi quanta violência contra as mulheres passava pola intimidade. Mas o do mundo… o mundo mais além dos vidros da escola no bairro dos Quatro Caminhos da Crunha, os agros da minha Agra do Orção, ainda com a refinaria em fundo e essa ambiência distópica, tão distante da Galiza de locus amoenus dos poetas, eram belos, dramáticos até à epopeia, com o mar em fundo por onde barcos iam e vinham com lento movimento e as flores dos tojos e as gestas em maio, a chuva, o orvalho da manhã, o recendo da erva de Santa Maria e o sabor do pão que cada dia vinha dos fornos de Arteijo e de Carral… Lá fui percebendo com os anos as tentações mundanas que nos afastam dos ideais, a soberba, a cobiça, a ganância. Eu gosto dos infernos das mitologias porque não associam o inferno ao mal, gosto do deus escuro por quem Perséfone se apaixona, do imaginário da roda do ano, o tempo escuro e o tempo luminoso, como este entre São João e Santiago em que estamos. A língua não é só morfossintaxe, por se pouco fosse, é semântica, é metáforas fossilizadas, é genealogias de pensamentos, é marcos que ninguém moveu e que contêm toda a energia dos minerais escondidos. Defendo que se houvesse algum mandamento da galeguidade, fosse só um: a necessidade da heterodoxia para o bem da comunidade, da circulação secundária, dos múltiplos centros, das errâncias e das extravagâncias. Devemos, porque podemos, continuar a nossa procissão de heterodoxos, inadaptados, à demanda dos mágicos destinos. Porque é da multiplicidade de caminhos que a cultura galega se fez e pode ter futuro, como Ulisses, a quem Homero chamava polytropos.

Máis de Maria Dovigo