Génio indomável

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No ano 1997 o realizador Gus Van Sant lançou o filme Good Will Hunting, que na nossa língua foi traduzido para Génio Indomável ou O Bom Rebelde. Ben Affleck e Matt Damon são as estrelas principais e também roteiristas, pelo que, digamos, esta fita foi uma das minhas imprescindíveis sendo eu uma adolescente na década de 90. Neste drama os dois atores dão vida a uns rapazes de bairro social. O protagonista desta história é o Will Hunting, jovem de origens economicamente humildes, com um trabalho descomplicado, amigos e poucas ambições. Ele e o seu grupo andam sempre de bebedeira ou metidos em sarilhos com a polícia. O seu ambiente, as suas relações e a forma em que cresceu conformam a sua visão do mundo e a maneira em que ele é capaz de ver-se a si próprio. 

O Will tem uns estudos básicos. Nunca foi à universidade, mas trabalha limpando salas de aulas de uma faculdade de Matemática em Boston. Sem ter conhecimentos regrados ou técnicos, um dia descobre que é capaz de chegar à solução de um problema matemático que o próprio professorado levava dois anos sem resolver.

Na linguagem cinematográfica não aparece explicitamente indicado, mas podemos supor que na escola o Will nunca foi tratado de génio. Ele próprio terá tido que fazer algumas descobertas sobre si mesmo e o seu talento para os números. 

Na Galiza poucas vezes somos expostos a conteúdos em português na escola, mas quando chegamos a eles, temos um comportamento muito parecido com o do Will: sabemos que podemos decifrá-los, mesmo sem termos muitos conhecimentos prévios. Algumas vezes esse contacto é por acaso, é produzido tardiamente e também fora do ambiente escolar. Desconhecemos muito de nós mesmos.

Sabemos que o Will está em liberdade condicional desde os primeiros minutos de metragem. Um dos professores da faculdade consegue resolver mais ou menos os problemas com a justiça do protagonista, com a condição de o Will fazer terapia e começar estudos de matemática avançada. A jovem promessa do cálculo visita muitos psicólogos, mas nada parece funcionar. Sempre na defensiva, digamos que foi educado a ouvir que era uma pessoa pouco válida e de tanto ouvir aquilo, terminou por se sentir pequeno, dizimado. Não consegue mudar de estratégia de vida.

Na Galiza poucas vezes somos expostos a conteúdos em português na escola, mas quando chegamos a eles, temos um comportamento muito parecido com o do Will: sabemos que podemos decifrá-los, mesmo sem termos muitos conhecimentos prévios.

Um dos melhores amigos do Will, Chuck, faz um dia pirar a sua mente. Numa conversa de coração aberto mostra-lhe ver que tem um dom que é o seu talento para os números. Não posso agora reproduzir as palavras exatas, mas mais ou menos diz-lhe que ter essas aptidões e não tirar partido delas é como ter o prémio na lotaria e ter medo de pegar no dinheiro. 

Nós crescemos a ouvir um relato muito concreto sobre a língua galega, que conforma aos poucos também o nosso relacionamento com ela. A conversa motivacional do Chuck poderia ser levada para o nosso caso. Imagino-o a pegar-nos pelos colarinhos e a dizer com firmeza que temos uma aptidão, uma vantagem competitiva para aprender português como galegos e galegas e que seria absurdo não aproveitarmos aquilo ao máximo.

Como reintegracionista conheço bem as críticas ao movimento. É fácil vê-las em redes sociais. Uma delas diz que querer ver o galego como uma língua espalhada pelo mundo e com uns 250 milhões de falantes é ter uma visão muito imperialista do assunto. Atrevo-me a dizer que as pessoas que vivemos no reintegracionismo não estamos nesta prática pelo peso mundial de falantes ou por acharmos que isso nos faça melhores. Estamos porque quando somos cientes dessa sorte somos capazes de aproveitar uma vantagem e viver a nossa língua de maneira plena. 

Evidentemente não há línguas melhores ou piores. Mas é de justiça que nada nos seja oculto e que possamos conhecer bem todas as possíveis versões de nós mesmos.

[Este artigo foi publicado originariamente no Nós Diario]